Resumo: Questões de políticas públicas podem ser levadas a análise do Poder Judiciário, e este tomando uma atitude ativista decide pela efetividade do direito fundamental, constitucionalmente garantido, afastando o argumento da Teoria da Reserva do Possível, quando não devidamente comprovada à insuficiência de recursos financeiros.
Palavras-chave: 1. Políticas Públicas. 2. Reserva do Possível.
Abstrat: Public policy issues can be taken to analyze the Judiciary, and this taking an activist attitude decides the effectiveness of the fundamental right constitutionally guaranteed, the argument away from the Theory of Possible Reserve, when not properly proven to insufficient financial resources.
Keywords: 1. Public Policy. 2. Possible Reserve.
Sumário: Introdução. 1. Da Teoria da Reserva do Possível; 2. A origem, os fundamentos e a aplicação brasileira da Teoria da Reserva do Possível; 3. Reserva do Possível e a Judicialização das políticas públicas. Posição jurisprudencial; Conclusão. Referências.
Introdução: A partir do paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito o sistema jurídico ganhou novos contornos, com o reforço da ideia de segurança jurídica aliada a de justiça. Ampliou-se a visão capitaneada pelo positivismo jurídico, formando um ordenamento complexo, concretizado a partir de um direito constitucionalizado e integrado. A Constituição deixou de ser um mero instrumento garantidor do status quo e passou a englobar um plano de determinações voltado ao Estado e a comunidade. O Judiciário transformou-se de um poder distante da realidade social para um efetivo co-autor na construção do futuro da sociedade.
Neste contexto, surgiu o fenômeno da judicialização, traduzindo profundas e significativas mudanças na atuação e na responsabilidade do Poder Judiciário, obrigando-o a assumir uma postura mais politizada e ativa, de verdadeiro garantidor de direitos fundamentais, já constitucionalmente assegurados.
É certo ainda que, a aplicabilidade dos direitos fundamentais possui inúmeros custos de ordem econômica e, nesse contexto, é imperioso reconhecer a teoria da “reserva do financeiramente possível”, já que inúmeros são os direitos que exigem a ação financeira do Estado para serem implementados, mas os recursos são limitados. Estudaremos a origem e os fundamentos desta teoria, desvendando sua transformação no ordenamento jurídico brasileiro, e, a partir de suas novas características, confrontaremos esta teoria com o instituto da judicialização das políticas públicas, a partir da análise do atual posicionamento jurisprudencial em nosso sistema jurídico.
1. Da Teoria da Reserva do Possível
A aplicabilidade dos direitos possui inúmeros custos de ordem econômica e, nesse contexto, é imperioso reconhecer a Teoria da Reserva do Financeiramente Possível.
Quando o assunto é a concretização judicial dos direitos fundamentais a esta teoria ganha importância, isto porque há forte entendimento, arraigado em nossa sociedade, de que os direitos de segunda geração (econômicos, sociais e culturais) são custosos e os direitos de primeira geração (individuais) são gratuitos.
Trata-se, contudo, de argumento falacioso e ideológico, pois a implementação de quaisquer direitos demanda a disposição de valores dos cofres públicos, independentemente de sua categoria. Como exemplo temos o dispêndio do dinheiro estatal para a garantia do direito à segurança pública ou no aporte de verba pública para a prevenção e combate ao crime, em respeito ao direito individual à vida.
Segundo a teoria da Reserva do Possível, a efetividade dos direitos fundamentais, em especial os sociais estaria condicionada às possibilidades financeiras dos cofres públicos. Como não há recursos disponíveis para suprir todas as demandas sociais existentes, é necessário eleger as políticas públicas a serem perseguidas, tarefa a ser realizada pelos órgãos de representação dos cidadãos e não pelo Judiciário, via de regra. Ou seja, cabe aos governantes e aos parlamentares – numa expressão do poder discricionário – a decisão acerca da disponibilidade dos recursos financeiros do Estado, por meio da escolha das políticas públicas a serem implementadas na sociedade.
Nesse diapasão, a Reserva do Possível passou a ser utilizada como justificativa para ausência Estatal, um forte argumento do Estado para não cumprir com o papel que a própria Constituição lhe conferiu, qual seja, de provedor das necessidades da sociedade, representadas pelos direitos fundamentais ali descritos.
Contudo, a conotação essencial da Teoria da Reserva do Possível deve ser compreendida sob a visão dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade entre a pretensão deduzida, qual seja a efetividade dos direitos constitucionais, e as possibilidades financeiras do Estado.
Por outro lado, para sua utilização como limitadora de um direito constitucional, se faz imprescindível uma motivação pormenorizada que justifique o não atendimento das necessidades essenciais do ser humano, bem como a definição do que seria o mínimo existencial.
O mínimo existencial seria o conjunto de prestações materiais indispensáveis ao exercício das liberdades básicas, correspondendo aos direitos fundamentais de concretização obrigatória a ser efetivada pelo legislador e administrador público. No que se refere ao mínimo existencial a teoria da reserva do possível não pode ser aplicada.
2. A origem, os fundamentos e a aplicação brasileira da Teoria da Reserva do Possível.
Na lição de Andreas Krell apud Sarlet (2008, p. 29), a construção da Teoria da Reserva do Possível teve origem na Alemanha, notadamente a partir dos anos 1970. Com essa nova visão que surgia à época, a Corte Constitucional Alemã proferiu célere decisão que assinalou a aplicação da Teoria da Reserva do Possível, conhecida como o caso numerus clausus, dado que discutia a limitação do número de vagas nas universidades públicas alemãs.
In casu, a Corte alemã proferiu decisão em demanda judicial ajuizada por estudantes que não haviam sido aceitos em universidades de medicina de Hamburgo e Munique, em razão da política de limitação de vagas em cursos superiores imposta pela Alemanha na época. Conforme Fernando Mânica (2007, p. 169), a pretensão dos estudantes baseou-se no artigo 12 da Lei Fundamental Alemã, segundo o qual “todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação”.
Para decidir a querela, a Corte Constitucional compreendeu – aplicando a teoria inovadora da Reserva do Possível – que o direito à prestação positiva (o número de vagas nas universidades) encontrava-se dependente da reserva do possível, firmando posicionamento de que o cidadão só poderia exigir do Estado aquilo que razoavelmente se pudesse esperar. A decisão da Corte Alemã confrontou o tema abordando acerca da razoabilidade da pretensão requerida frente às necessidades da sociedade.
Nas palavras de Ingo Sarlet (2003, p. 265), o Tribunal alemão entendeu que “[...] a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado de recursos e tendo poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável”.
Observa-se, portanto, que a Teoria da Reserva do Possível, na sua origem, não se relaciona exclusivamente à existência de recursos materiais/financeiros suficientes para a efetivação dos direitos sociais, mas, sim, à razoabilidade da pretensão proposta frente à sua concretização.
Ademais, a Corte Alemã derrubou por completo a ideia de que o Estado deveria estar obrigado a oferecer a quantidade suficiente de vagas nas universidades públicas que atendesse a todos os estudantes.
No Brasil, por outro lado, a interpretação e introdução da teoria, ao ser adequada à realidade pátria, transformou esse postulado em uma Teoria da Reserva do Financeiramente Possível, sendo considerada como limite à efetivação dos direitos fundamentais prestacionais.
Andreas Krell apud Sarlet (2008, p. 30), explica que a efetividade dos direitos sociais materiais e prestacionais estaria condicionada à reserva do que é possível financeiramente ao Estado, posto que se enquadram como direitos fundamentais dependentes das possibilidades financeiras dos cofres públicos.
A possibilidade financeira e a previsão orçamentária tornaram-se argumentos dessa distorção da teoria Alemã. Corrobora com essa posição Ingo Sarlet (2003, p.286), senão vejamos:
Sustenta-se, por exemplo, inclusive entre nós, que a efetivação destes direitos fundamentais encontra-se na dependência da efetiva disponibilidade de recursos por parte do Estado, que, além disso, deve dispor do poder jurídico, isto é, da capacidade jurídica de dispor. Ressalta-se, outrossim, que constitui tarefa cometida precipuamente ao legislador ordinário a de decidir sobre a aplicação e destinação de recursos públicos, inclusive no que tange às prioridades na esfera das políticas públicas, com reflexos diretos na questão orçamentária, razão pela qual também se alega tratar-se de um problema eminentemente competencial. Para os que defendem esse ponto de vista, a outorga ao Poder Judiciário da função de concretizar os direitos sociais mesmo à revelia do legislador, implicaria afronta ao princípio da separação dos poderes e, por conseguinte, ao postulado do Estado de Direito.
Para o mesmo autor, pode-se desdobrar a ideia da Teoria da Reserva do Possível em dois elementos: um fático e outro jurídico. O fático refere-se à disponibilidade de recursos financeiros suficientes à satisfação do direito prestacional, ou seja, ausência de recursos públicos frente à necessidade dos serviços e bens requeridos; e o jurídico relaciona-se à existência de autorização orçamentária, portanto legislativa, para o Estado despender os respectivos recursos. O Estado não pode infringir as leis orçamentárias, assim, mesmo que possua recurso público, limita-se às rubricas destinadas a cada matéria.
Nesse diapasão, a Reserva do Possível passou a ser utilizada como justificativa para ausência Estatal. Assim escreveu Ana Paula Barcellos (2002, p. 237) ao analisar a problemática “na ausência de um estudo mais aprofundado, a reserva do possível funcionou muitas vezes como o mote mágico, porque assustador e desconhecido, que impedia qualquer avanço na sindicabilidade dos direitos sociais”.
Contudo, a conotação essencial da teoria da Reserva do Possível, tal qual adotada na decisão alemã do Numerus Clausus, deve ser compreendida sob a visão dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade entre a pretensão deduzida, qual seja a efetividade dos direitos prestacionais constitucionais, e as possibilidades financeiras do Estado.
Andreas Krell apud Daniel Sarmento (2008, p.570), declarou que esta teoria seria “fruto de um Direito Constitucional equivocado”, dado que em países de terceiro mundo, como é o caso brasileiro, muitas das necessidades básicas da sociedade não são atendidas satisfatoriamente, o que comprometeria a aplicação da Reserva do Possível, que empregada em países desenvolvidos não conhece do conceito do mínimo essencial.
Nesse ponto específico, Daniel Sarmento discorda de Andreas Krell, considerando que o alto índice de pobreza nos países em desenvolvimento acentuaria a importância da aplicação da teoria, dado que a carência financeira e econômica torna latente a impossibilidade de efetivação concomitante de todos os direitos sociais.
O autor assevera que a Reserva do Possível no mundo fático deve ser conhecida como o entrelaçar da efetivação dos direitos sociais frente à razoabilidade da universalidade das prestações exigidas, sem desconhecer dos recursos financeiros disponíveis.
Nas palavras do autor: “entendo que a reserva do possível fática deve ser concebida como a razoabilidade da universalização da prestação exigida, considerando os recursos existentes.” E continua:
Por este critério, se, por exemplo, um portador de determinada doença grave postular a condenação do Estado a custear o seu tratamento no exterior, onde, pelo maior desenvolvimento tecnológico, a sua patologia tiver maiores chances de cura, o juiz não deve indagar se o custo decorrente daquela específica condenação judicial é ou não suportável para o Erário. A pergunta correta a ser feita é sobre a razoabilidade ou não da decisão do Poder Público de não proporcionar este tratamento fora do país, para todos aqueles que se encontram em situação similar à do autor. (2008, p. 572).
Para o mesmo autor a Reserva do Possível é matéria de defesa para o Estado, e como tal cabe a ele o ônus da prova de suas alegações, in verbis:
não basta, portanto, que o Estado invoque genericamente a reserva do possível para opor à concessão judicial de prestações sociais – como, infelizmente, tem ocorrido na maior parte das ações nesta matéria. É preciso que ele produza prova suficiente desta alegação.
Assim, a Teoria da Reserva do Possível deve ser aplicada a partir dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade entre a pretensão deduzida, qual seja a efetividade dos direitos constitucionais, e as possibilidades financeiras do Estado.
3. Reserva do Possível. Judicialização das políticas públicas. Posição jurisprudencial.
A escolha das políticas públicas a serem implementadas pelo Estado, via de regra, compete aos Poderes Executivo e Legislativo, seja por meio do planejamento público, com a decisão dos planos e programas governamentais a serem perseguidas, seja por intermédio das leis orçamentárias.
No Brasil tanto a iniciativa quanto a execução das leis orçamentárias são competências privativas do Poder Executivo. Disso decorre que a definição das políticas públicas e a escolha das prioridades orçamentárias cabem exclusivamente àquele Poder, não podendo o Judiciário, via de regra, interferir nessa atividade discricionária do administrador. Aqui reside a questão da alocação de recursos escassos frente à enormidade de necessidades da sociedade, decisão de competência dos Poderes Legislativo e Executivo.
Verifica-se inclusive, em diversos casos quando a escolha sobre a definição das políticas públicas passa do Executivo para o Judiciário, a violação do principio da igualdade, já que o grupo social que buscou o auxílio do Poder Judiciário se sobreporá aqueles que não o fizeram. Segundo Marcos Maselli Gouvêa (2000, p. 19) “em situações extremas, as despesas realizadas em função de direitos prestacionais judicialmente impostos inviabilizariam outros projetos estatais, eventualmente até projetos relacionados a outros direitos fundamentais”.
Felipe de Melo (2013, p. 14) nos esclarece inclusive que há “relatos de que em alguns hospitais e escolas da rede pública só se consegue admissão mediante ordem judicial, fato que representa grave distorção no acesso aos bens e serviços públicos, que se espera seja feito sem discriminação entre os cidadãos e de acordo com critério bem definido (...)”.
Assim, a discricionariedade do Poder Executivo – limitada constitucionalmente – ao definir as prioridades orçamentárias impõe obstáculos à intervenção do Poder Judiciário quanto à definição da política orçamentária. Nesse sentido verificamos muitas decisões jurisprudenciais, senão vejamos:
[...] Dessa forma, com fulcro no princípio da discricionariedade, a Municipalidade tem liberdade para, com a finalidade de assegurar o interesse público, escolher onde devem ser aplicadas as verbas orçamentárias e em quais obras deve investir. Não cabe, assim, ao Poder Judiciário interferir nas prioridades orçamentárias do Município e determinar a construção de obra especificada [...].
(STJ, REsp 208893/PR; Segunda Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ 22.03.2004)
Entretanto, como já dito antes, existem limites a essa atuação do Executivo, e nesse ponto reside à competência do Judiciário.
Em sede jurisprudencial, a questão ainda é muito controversa, e passa por uma profunda modificação de entendimento frente à busca pela máxima efetivação dos direitos fundamentais, especialmente os sociais.
Sendo esse o contexto, cabe trazer alhures julgado da lavra da Min. Eliana Calmon, no qual se permitiu a ingerência do judiciário sobre a discricionariedade administrativa, mas com observância ao planejamento orçamentário Estatal, in verbis:
[...] 1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador.
2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas [...]
(STJ, REsp 493811/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 15.03.04)
Régis Oliveira sintetiza com maestria a situação ao tratar da intervenção do Judiciário na implantação de políticas públicas, a partir do respeito a questão orçamentária, vejamos:
[...] descabe ao Judiciário decisão de tal quilate. No entanto, se o fizer, determinando, por exemplo, a construção de moradias, creches, etc., e transitada em julgado a decisão, coisa não cabe ao Prefeito que cumprir a ordem. Para tanto, deverá incluir, no orçamento do próximo exercício, a previsão financeira. Esclarecerá à autoridade judicial a impossibilidade de cumprimento imediato da decisão com trânsito em julgado, diante da falta de previsão orçamentária, e obrigar-se-á a incluir na futura lei orçamentária recursos para o cumprimento da decisão [...] (2006, p. 404).
O Ministro do STF Celso de Mello em decisão proferida no Agravo Regimental nº 47, esclarece a relação da discricionariedade administrativa e o Poder Judiciário, in verbis:
É certo – tal como observei no exame da ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF nº 345/2004) – que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Entretanto, pondera que ao que tange às políticas públicas fundadas na Constituição, também cabe ao Poder Judiciário a obrigação de implementá-las, mesmo que excepcionalmente, nas palavras do Ministro:
Impende assinalar, contudo, que a incumbências de fazer implementar as políticas públicas fundadas na Constituição poderá atribuir-se, ainda que excepcionalmente, ao Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional [...].
Ressalta o Ministro, ainda, na oportunidade, a posição de Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Procuradora Regional de República, ipis literis (2000, p. 59, 95 e 97):
Nesse contexto constitucional, que implica também na renovação das práticas políticas, o administrador está vinculado, às políticas públicas estabelecidas na Constituição Federal; sua omissão é passível de responsabilização e a sua margem de discricionariedade é mínima, não contemplando o não fazer.[...]
Como demonstrado no item anterior, o administrador público está vinculado à Constituição e às normas infraconstitucionais para a implementação das políticas públicas relativas à ordem social constitucional, ou seja, própria a finalidade da mesma: o bem-estar e a justiça social.[...]
Conclui-se, portanto, que o administrador não tem discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e conveniência de implementação das políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional, pois tal restou deliberado pelo constituinte e pelo legislador que elaborou as normas de integração.[...]
As dúvidas sobre essa margem de discricionariedade devem ser dirimidas pelo Judiciário, cabendo ao Juiz dar sentido concreto à norma e controlar a legitimidade do ato administrativo (omissivo ou comissivo), verificando se o mesmo não contraria sua finalidade constitucional, no caso, a concretização da ordem social constitucional.
As mais recentes decisões dos Tribunais de Superposição têm exigido além da alegação de inexistência de recursos, a comprovação dessa inexistência, ao que o Ministro Eros Grau chamou de exaustão orçamentária (1993, p. 59), para aplicação da teoria da reserva do Possível.
Na ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45/DF, o Ministro Celso de Mello tratou acerca da reserva do possível, entendendo ser possível a intervenção judicial sobre as políticas públicas, mas destacou a existência da cláusula da reserva do possível, em especial na implementação dos direitos sociais, econômicos e culturais, posto que estes exigiriam prestações estatais positivas do Estado.
Nesse sentido o Supremo Tribunal Federal se posicionou, in verbis:
[...] É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente usando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. [...] (STF, ADPF n. 45, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 29.04.04)
Esse argumento, base da ciência econômica, não deve ser olvidado na definição das políticas públicas, tampouco no momento das decisões judiciais, porém nestes casos há que se comprovar a insuficiência de recursos.
Assim, a Teoria da Reserva do Possível só pode ser usada como mecanismo limite para a efetivação dos direitos fundamentais, a partir da comprovação de insuficiência de recursos financeiros para tanto.
Conforme elucida Felipe de Melo (2013, pg. 92) “Reserva do possível não é presunção absoluta (ou mesmo relativa) de inexistência de dinheiro, nem fundamento autônomo de discricionariedade administrativa e/ou legislativa capaz de justificar a omissão ou adimplemento defeituoso de direitos fundamentais.”
A conotação essencial da Teoria da Reserva do Possível deve ser compreendida sob a visão dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade entre a pretensão deduzida, qual seja a efetividade dos direitos constitucionais, e as possibilidades financeiras do Estado, se fazendo imprescindível uma motivação pormenorizada que justifique o não atendimento das necessidades essenciais do ser humano, com sua respectiva comprovação objetiva a ser realizada pelo Estado, mas sempre com garantia de respeito ao mínimo existencial.
Conclusões
Instrumento de defesa da ampla discricionariedade administrativa em matéria orçamentária é a Teoria da Reserva do Possível, objeto de estudo do nosso trabalho.
Segundo a teoria da Reserva do Possível, a efetividade dos direitos sociais estaria condicionada às possibilidades financeiras dos cofres públicos. Como não há recursos disponíveis para suprir todas as demandas sociais existentes, é necessário eleger as políticas públicas a serem perseguidas, tarefa a ser realizada pelos órgãos de representação dos cidadãos e não pelo Judiciário, via de regra. Dessa forma, caberia aos governantes e aos parlamentares – numa expressão do poder discricionário – a decisão acerca da disponibilidade dos recursos financeiros do Estado.
Contudo, a conotação essencial da Teoria da Reserva do Possível deve ser compreendida sob a visão dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade entre a pretensão deduzida, qual seja a efetividade dos direitos constitucionais, e as possibilidades financeiras do Estado, se fazendo imprescindível uma motivação pormenorizada que justifique o não atendimento das necessidades essenciais do ser humano, com sua respectiva comprovação objetiva a ser realizada pelo Estado, mas sempre com garantia de respeito ao mínimo existencial.
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Procuradora Federal desde 03/03/2008, atualmente lotada na Procuradoria Federal Especializada do INCRA; Ex. Procuradora do Estado do Pará; Ex. Defensora Pública do Estado do Pará e Ex. Advogada do Banco do Estado do Pará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AVILA, Kellen Cristina de Andrade. A teoria da reserva do possível e as políticas públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 mar 2014, 12:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38524/a-teoria-da-reserva-do-possivel-e-as-politicas-publicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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