RESUMO: O presente trabalho comentará o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997), tipo penal conhecido como embriaguez ao volante, segundo as alterações trazidas pela Lei 12.760, de 20 de dezembro de 2012. Assim, considerando as inovações trazidas pela referida lei, importa-nos estudar, criticamente, as novas composições jurídicas envolvendo a conduta típica da embriaguez ao volante, segundo as composições permitidas pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Código de Trânsito Brasileiro; Lei 12.760/2012; Embriaguez ao volante; Alteração da capacidade psicomotora.
1 INTRODUÇÃO
As constantes alterações legislativas exigem estudo aprofundado sobre o campo de abrangência por estas tutelado, sobretudo aquelas substancialmente modificativas das condutas típicas descritas nas diversas leis previstas em nosso sistema jurídico.
Nesse sentido, o primeiro capítulo deste trabalho manifestará sobre a importância da elaboração normativa em intrínseca correlação às necessidades do povo, elemento que confere legitimidade ao poder estatal.
Nas considerações seguintes, brevíssimos comentários sobre a Lei 12.760, de 20 de dezembro de 2012, bem como as novas relações e situações sociais às quais a referida lei pretendeu regulamentar.
No próximo passo, com os estudos já alicerçados por outras áreas do conhecimento, bem como breve comparação com as redações anteriores, trabalhar-se-á com os conceitos referentes à “capacidade psicomotora”, “álcool” e “substância psicomotora que determine dependência”, itens descritos no novo tipo do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro.
Por fim, após as considerações acima expostas, em atendimento ao que prevê a própria doutrina e as recentíssimas decisões dos órgãos jurisdicionais brasileiros, concluir-se-á por quais caminhos e em quais casos as sanções penais serão impostas, determinando limites à atuação do Estado-Judiciário na resolução do caso concreto.
2 POVO: ELEMENTO LEGITIMADOR DO PODER ESTATAL
A produção legislativa demonstra, nas democracias modernas, verdadeira correspondência às necessidades da coletividade. Por esse motivo, a Constituição da República de 1988, promulgada após efetiva manifestação da sociedade contra o arbítrio e o estado de exceção, reservou atenção especial ao “poder público”, unicamente expresso com base na vontade suprema do povo.
In verbis, o art. 1º da Constituição da República de 1988, inaugurando o Estado Democrático de Direito, aglutinação de poder legitimado pelo povo e vinculação das funções estatais ao ordenamento jurídico legalmente composto, expressa:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Em outros estudos já elaborados, manifestamos sobre a intrínseca relação entre povo e poder estatal, vez que o primeiro, como elemento de legitimidade, garante a subsistência e o exercício de um poder democrático, com competências devidamente instituídas em lei.
Para Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (2011), citando Jellinek, o Estado pode ser considerado sob dois aspectos: o primeiro, jurídico; o segundo, social, visto como fenômeno consistente em relação de variedade de pessoas vivendo em mesmo território. Esse fenômeno, certamente, perpassa a noção de povo, constituído por pessoas que habitam ou transitam em mesmo território (o que origina a ideia de cidadãos natos, naturalizados e estrangeiros).
Assim, o poder do Estado, organizado em funções fundamentais previamente expressas no texto constitucional, encontra subsídio nas intrínsecas manifestações do povo sobre a atividade e manutenção desse mesmo poder. É o povo quem vincula ser e dever-ser, fato e norma, em íntima subordinação do valor às atividades estatais. Pensá-las longe da satisfação dos anseios dos indivíduos constituidores da coletividade, consideração cada vez mais exigente no Estado Democrático de Direito, destrói o próprio conceito de legitimidade arraigado na valoração da legalidade.
3 LEI 12.760 DE 20 DE DEZEMBRO DE 2012
Em 20 de dezembro de 2012, após sanção da Presidente Dilma Rousseff, entrou em vigor a Lei 12.760/2012, alterando as disposições da Lei 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro, especificamente os art. 165, 262, 276, 277 e 306.
Após grande pressão popular acerca das diretrizes sobre as condutas lesivas na direção de veículos, eventos cada vez mais presentes no trânsito das grandes cidades, o legislador objetivou amenizar os resultados de tantas marcas negativas, oferecendo nova tutela penal às tais condutas.
Outra grande valia da Lei 12.760/12 fora a correção de possível erro pretérito do legislador, ao permitir, com a nova redação, a responsabilização jurídico-penal do agente com mais certeza, reduzindo a sensação de impunidade quanto aos crimes cometidos na condução de veículo automotor.
Quanto à vigência, percebe-se que a Lei 12.760/12 passou a viger na data de sua publicação, possuindo, desde então, força imediata para tutelar as relações nela compreendidas. Percebe-se claramente o desejo, àquela época, na ausência de vacatio legis, de permitir a aplicação da referida lei já nas festas de fim de ano, evitando fatos ainda mais danosos e idêntica sensação de impunidade permitida pelas disposições anteriores.
No que se refere às novas condutas tipificadas na lei descrita alhures, compete-nos, para aos fins deste trabalho, analisar a nova composição do delito descrito no art. 306, qual seja, a embriaguez ao volante. Como se verá no tópico seguinte, trata-se de descrição que não pôs fim ao debate sobre a direção embriagada, com algumas localizações ainda lacunosas, relativizando a utilização de alguns institutos jurídicos.
4 O ART. 306 DA LEI 12.760/12
O crime embriaguez ao volante sofreu, desde a sua publicação original, com o Código de Trânsito Brasileiro, duas e significativas alterações. Em sua primeira redação, a conduta típica descrita no art. 306 era abordada da seguinte maneira, in verbis:
Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:
Assim, a primeira conduta capitulada nesse artigo referia-se a crime de perigo concreto, devendo, para a devida responsabilização do agente, a inequívoca exposição de dano à segurança de outrem.
O legislador percebera a dificuldade em se aferir o dano concreto de tal exposição e, ao determinar critérios objetivos para a conclusão do perigo da direção embriagada, convertida a Medida Provisória nº 415/2008 na Lei 11.705, de 19 de julho de 2008, novamente alterou o art. 306, nos seguintes termos:
Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência
Nessa definição, o crime de perigo concreto passa a se constituir crime de perigo abstrato, não exigindo, do agente, outra condição ou conduta senão dirigir com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6dg (ou, ainda, sob a influência de substância psicoativa causadora, no individuo, de dependência).
Em que pese a segunda alteração, o cumprimento da referida diretriz restou-se, para alguns juristas, frustrada. Isso porque nenhum indivíduo, em tese, poderá ser compelido a oferecer material para produzir prova contra si mesmo; não somente por interpretação sistemática do direito fundamental ao silêncio, conforme descreve o art. 5º, LXIII da Constituição da República de 1988, mas também ao art. 8º, 2, g do Pacto San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário:
Artigo 8º - Garantias judiciais
(...)
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
(...)
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
Assim, quanto ao novo art. 306, objeto deste trabalho, vale destacar a pretensão do legislador em preservar os interesses do próprio cidadão, quando de suas ações voluntariamente expressas, em razão de redação anterior.
Com efeito, qualquer ato capaz compelir o indivíduo em realizar determinada tarefa, sem que este manifestasse própria vontade em assim agir, é inconstitucional, razão pela qual o legislador optou não somente pela prova direta produzida pelo cidadão, mas também outros sinais perceptíveis e devidamente comprovados pela autoridade.
Em momento posterior, outras considerações sobre tal prescrição legal, qual seja, a produção de provas em detrimento às vontades do indivíduo acusado, serão necessárias para finalizarmos, com fidelidade e integridade acadêmicas, a análise do referido delito.
4.1 O novo art. 306 e seus desdobramentos jurídicos
O recente art. 306 do Código de Transito Brasileiro, com as alterações legislativas já salientadas, recebera a seguinte redação:
Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Inicialmente, urge a necessidade de analisarmos o caput do art. 306. De acordo com o pretendido, é crime conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão de ingestão de bebida alcoólica ou de outra substância psicoativa que determine dependência.
Tem-se por veículo automotor, conforme Anexo 1 (Dos Conceitos e Definições) da Lei 9.503/97, sem possibilidade de interpretação extensiva, ante o princípio da legalidade,
todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibus elétrico).
Estariam, assim, excluídos todos os veículos cujo funcionamento não depende de força originada por motor de propulsão, por exemplo, aqueles que dependem exclusivamente de força física do homem (propulsão humana), como as bicicletas e os carrinhos-de-mão.
Em segundo lugar e, talvez, o mais importante, diz respeito à alteração da capacidade psicomotora. Qual seria o conceito mais apropriado deste componente do tipo penal, ante a ausência de previsão legal? Importa, assim, analisar pormenorizadamente os componentes do tipo, a fim de entender responsabilidade jurídico-penal do agente que, suspostamente, tem sua conduta subsumida no tipo legal.
O termo capacidade, no sentido literal da palavra (Dicionário Aurélio, 2014), refere-se à aptidão do indivíduo em realizar certas atividades e por elas responder, em razão de conhecê-las previamente; é a própria competência aplicada na conclusão e satisfação dessas atividades.
Já a função psicomotora constitui-se por série de fatores, conforme se vê abaixo:
A área Psicomotora compreende: a Coordenação Motora ( utilização eficiente das partes do corpo), a Tonicidade (adequação de tensão para cada gesto ou atitude), a Organização Espacial e Percepção Visual (acuidade,atenção, percepção de imagens, figura fundo e coordenação viso-motora), a Organização Temporal e Percepção Auditiva (atenção, discriminação, memória de sons e coordenação auditiva-motora), a Atenção (capacidade de apreender o estímulo), Concentração (capacidade de se ater a apenas um estímulo por um período de tempo), Memória (capacidade de reter os estímulos e suas características), Desenvolvimento do Esquema Corporal (referência de si mesma) e a Linguagem (BH Online, 2014).
Entendemos, assim, ser a capacidade psicomotora a faculdade de o indivíduo responder física e psicologicamente a comandos e ordens estabelecidas, sejam voluntariamente expressas pela própria pessoa, sejam aquelas emanadas por terceiros. Tal possibilidade se dá por meio dos sentidos e de condições intrinsecamente favoráveis à manifestação dessa vontade, sem que haja perda ou prejuízo de qualquer exposição de sentimentos ou ações, para si ou para outrem.
Alterar a capacidade psicomotora, nos termos do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, é evento pelo qual o indivíduo perde as condições de manifestar-se inequivocamente, por abalo de sua capacidade pessoal, em razão de ingestão da bebida alcoólica ou outra substância psicoativa que lhe cause dependência.
Entende-se por bebida alcoólica aquela “substância depressora do Sistema nervoso central, obtida a partir da fermentação ou destilação de cereais, raízes e frutas” (BRASIL, 2014), presente na vida da sociedade brasileira por seu caráter lícito. Por outro lado, tem-se por substância psicoativa aquela
que, utilizada por qualquer via de administração, altera o humor, o nível de percepção ou o funcionamento cerebral, podendo ser legalmente usadas, prescritas ou ilícitas (ilegais). No entanto, não existe uma fronteira nítida entre o que seja um simples uso de drogas, um abuso ou mesmo uma dependência severa pois tudo isto se desenvolve em indivíduos singulares. A condição clínica resulta da interação da substância com a vulnerabilidade fisiológica e social de cada um (ABC da Saúde, 2014).
Nesse diapasão, a alteração da capacidade psicomotora se visualizará pela irrestrita observação do disposto no art. 306, §1º, I e II, da maneira em que:
§ 1o As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar;
II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.
§ 2o A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova. (Incluído pela Lei nº 12.760, de 2012)
§ 3o O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.
Conforme inciso I, bastaria a submissão voluntária do agente à utilização de etilômetro ou coleta sanguínea, verificadas as concentrações descritas em tal dispositivo, para concluir pela consumação da conduta descrita no caput do tipo penal. Aqui há evidente confusão quanto à presunção de alteração da capacidade psicomotora. Bastaria a constatação das concentrações descritas no inciso I para a responsabilização jurídico-penal do agente? A resposta, com base nesse estudo, se verá adiante.
Ainda nessa análise, o legislador reservou, no inciso II, forma diversa da voluntariedade do agente, no fornecimento de material, para aferir tal alteração da capacidade psicomotora.
Tal disposição, assim, encontra-se disciplinada pela Resolução nº. 432, de 23 de janeiro de 2013, do Conselho Nacional do Trânsito (CONTRAN) e, para a conclusão da alteração da capacidade psicomotora, servirão os seguintes procedimentos, in verbis:
Art. 5º Os sinais de alteração da capacidade psicomotora poderão ser verificados por:
I – exame clínico com laudo conclusivo e firmado por médico perito; ou
II – constatação, pelo agente da Autoridade de Trânsito, dos sinais de alteração da capacidade psicomotora nos termos do Anexo II.
§ 1º Para confirmação da alteração da capacidade psicomotora pelo agente da Autoridade de Trânsito, deverá ser considerado não somente um sinal, mas um conjunto de sinais que comprovem a situação do condutor.
§ 2º Os sinais de alteração da capacidade psicomotora de que trata o inciso II deverão ser descritos no auto de infração ou em termo específico que contenha as informações mínimas indicadas no Anexo II, o qual deverá acompanhar o auto de infração.
Destaque para o inciso II. Aqui a Autoridade de Trânsito se valerá de sinais objetivos, previamente expressos na Resolução CONTRAN nº. 432/2013, consubstanciados pelos meios de prova admitidos em direito.
Percebe-se ainda, no §1º, a opção em determinar robusta produção de prova como instrumento hábil à conclusão da alteração da capacidade psicomotora, impedindo a manifestação de único sinal como fator desta conclusão.
Conforme Anexo II da Resolução CONTRAN nº. 432/2013, são sinais obrigatórios de observação pelo Agente de Trânsito, na condução dos procedimentos de investigação da situação do cidadão, com os devidos grifos, os seguintes:
a. Quanto à aparência, se o condutor apresenta:
i. Sonolência;
ii. Olhos vermelhos; iii. Vômito;
iv. Soluços;
v. Desordem nas vestes;
vi. Odor de álcool no hálito.
b. Quanto à atitude, se o condutor apresenta:
i. Agressividade;
ii. Arrogância;
iii. Exaltação;
iv. Ironia;
v. Falante;
vi. Dispersão.
c. Quanto à orientação, se o condutor:
i. sabe onde está;
ii. sabe a data e a hora.
d. Quanto à memória, se o condutor:
i. sabe seu endereço;
ii. lembra dos atos cometidos;
e. Quanto à capacidade motora e verbal, se o condutor apresenta:
i. Dificuldade no equilíbrio;
ii. Fala alterada
Por fim, parece-nos árdua tarefa a conclusão pela alteração da capacidade psicomotora do indivíduo por ingestão de bebida alcoólica ou influência de substância psicoativa que lhe cause dependência. Por esse motivo, o legislador, agora no art. 306, §2º, do Código de Trânsito Brasileiro, admite a ampla produção probatória, inclusive com a utilização de fotos e vídeos, para fechar por tal alteração.
Em nosso entendimento, tal conclusão somente se legitimará se, no decorrer do procedimento, o agente público responsável pela condução se valer de todos os meios de prova expressos em lei. Há clara intenção do próprio legislador em proteger o cidadão em sua integridade, optando por necessária burocratização desta aferição como meio de se evitar a imposição de subjetivismos ou imputações levianas.
Há de se pensar, ainda, pela relativização do disposto no art. 306, §1º, I, qual seja, condenação expressa unicamente pelas concentrações aferidas por etilômetro ou exame sanguíneo. A presunção de alteração da capacidade psicomotora com base nesse disposto sempre será relativa, seguindo a mesma ótica da redação anterior, carecendo de outras provas para a condenação do acusado.
Acreditamos, somente assim, haver perfeita conclusão pela alteração da capacidade psicomotora, passível de aplicação de sanção penal após o devido processo legal, em que se presume aplicação das garantias fundamentais descritas na Constituição da República de 1988.
5 JULGADOS RECENTES
Conforme salientado nas considerações acima, não basta ingestão de bebida alcoólica para a imputação da conduta típica descrita no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Antes de tudo, necessária se faz a comprovação inequívoca da alteração da capacidade psicomotora, visível pelos meios de prova admitidos em direito, para a elucidação do estado do condutor no momento em que fora abordado pela autoridade.
Vale, assim, trazer o entendimento pioneiro no ordenamento jurídico brasileiro, exarado pelo Desembargador Nereu Giacomolli, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pela relativização do art. 306, §1º, I:
APELAÇÃO. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ALTERAÇÃO DA CAPACIDADE PSICOMOTORA. LEI 12.760/12. RETROATIVIDADE. Com a alteração do artigo 306 da Lei 9503/97 pela Lei 12.760/12, foi inserida no tipo penal uma nova elementar normativa: a alteração da capacidade psicomotora. Conforme a atual redação do dispositivo penal constitui conduta típica a condução do veículo com a capacidade psicomotora alterada (caput) em razão da concentração de álcool por litro de sangue superior a 6 decigramas (§ 1º, I) ou em razão do consumo de substâncias psicoativas (§ 1º, II). Assim, a adequação típica da conduta, agora, depende não apenas da constatação da embriaguez (seis dg de álcool por litro de sangue), mas, também, da comprovação da alteração da capacidade psicomotora pelos meios de prova admitidos em direito. Aplicação retroativa da Lei 12.760/12 ao caso concreto, pois mais benéfica ao acusado. Ausência de provas da alteração da capacidade psicomotora. Absolvição decretada. RECURSO PROVIDO. ABSOLVIÇÃO DECRETADA. (Apelação Crime Nº 70057207029, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 19/12/2013)
Em mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça, na lavra da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgou pela absolvição do acusado, em razão da ausência de conjunto probatório:
PENAL. HABEAS CORPUS. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ART. 306 DA LEI N.º 9.503/97. 1. EXORDIAL ACUSATÓRIA. REJEIÇÃO. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. JULGADO. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. INVIABILIDADE. VIA INADEQUADA. 2. DOSAGEM ALCÓOLICA. AFERIÇÃO. LEI N.º 11.705/08. 3. FATO ANTERIOR À ALTERAÇÃO NORMATIVA CRISTALIZADA NA LEI N.º 12.760/12. 4. SUJEIÇÃO AO BAFÔMETRO. AUSÊNCIA. EXAME DE SANGUE. INEXISTÊNCIA. ÍNDICE APURADO DIANTE DOS SINAIS CLÍNICOS E MANIFESTAÇÕES FÍSICAS E PSÍQUICAS DO AVALIADO. IMPOSSIBILIDADE. TIPICIDADE. INOCORRÊNCIA. 5. RESP N.º 1.111.566/DF. PRECEDENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. RECONHECIMENTO. 6. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional e em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem como substitutiva de recurso especial. 2. Com a redação conferida ao artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro pela Lei n.º 11.705/08, tornou-se imperioso, para o reconhecimento de tipicidade do comportamento de embriaguez ao volante, a aferição da concentração de álcool no sangue. 3. A Lei n. 12.760/12 modificou a norma mencionada, a fim de dispor ser despicienda a avaliação realizada para atestar a gradação alcóolica, acrescentando ser viável a verificação da embriaguez mediante vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova, de modo a corroborar a alteração da capacidade psicomotora. 4. Contudo, no caso em apreço, praticado o delito com a redação primeva da legislação e ausente a sujeição a etilômetro ou a exame sanguíneo, torna-se inviável a responsabilização criminal, visto a impossibilidade de se aferir a existência da concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas por uma análise na qual se atenha unicamente aos sinais clínicos e às manifestações físicas e psíquicas do avaliado. 5. Entendimento consolidado pela colenda Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, no seio do REsp n.º 1.111.566/DF, representativo de controvérsia, nos moldes do art. 543-C do Código de Processo Civil. 6. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, a fim de reconhecer a ausência de justa causa e trancar o Processo n.º 138/2009, da Vara Criminal da Comarca de Diamantino/MT. Grifo nosso. (HC 246.553/MT, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 08/10/2013, DJe 17/10/2013).
Em ambos os julgamentos, ao aplicar a lei nova em detrimento às considerações anteriores, mostra-se viável a condenação somente com farto conteúdo probatório. Na primeira, não basta elucidar as concentrações de álcool descritas no art. 306, §1º, I; na segunda, também não se visualiza condenação quando inexistir ampla produção probatória passível ao ensejo de tal alteração.
Nesse sentido, os órgãos jurisdicionais brasileiros deverão, na análise do caso concreto, determinar se há ou não alteração da dita capacidade psicomotora por meio de provas cabais desse evento. É necessária, antes de qualquer imputação, a verificação das condições em que a conduta ocorreu e se, de fato, a mesma ofereceu risco ou lesou, expressivamente, a própria sociedade.
É o que nos pede o Direito Penal moderno e o que permitirá a renovação do próprio fenômeno jurídico, enquanto instrumento de efetivação dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos contextualmente inseridos em coletividade.
A condenação pela conduta descrita no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro somente se visualizará quando, de maneira inequívoca, restar comprovada a alteração da capacidade psicomotora do agente, não somente pela concentração alcoólica descrita no §1º, inciso I ou pelos sinais desta redução, conforme Resolução CONTRAN nº 432/2013.
Não há, no nosso entendimento, possibilidade de presunção absoluta quanto à perturbação do indivíduo, relevante para qualquer construção jurídico-penal acerca da responsabilização nos casos de embriaguez ao volante. Na prática criminal, percebe-se a imposição da sanção penal sem o mínimo de provas necessárias à conclusão da alteração da capacidade psicomotora, elemento do tipo, seja pela desídia do agente de trânsito quando das diligências indispensáveis a esta elucidação, seja pelo desrespeito, já em juízo, ao devido processo legal.
Concordamos com a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a qual justifica o dever do agente público julgador em decidir sobre o mérito da causa somente em consonância com as provas colacionadas aos autos. É de se aplaudir, ainda, a decisão do Superior Tribunal de Justiça, orientando a irrestrita observação da prova como instituto de legitimação do próprio processo.
6 CONCLUSÃO
O povo, enquanto conjunto de pessoas dispersas em território delimitado, é o elemento de legitimação do Estado, sendo o último organizado em Administração Pública para efetivar direitos e garantias fundamentais do indivíduo socialmente inserido.
Nesse sentido, a produção legislativa também se manifesta pela vontade do povo, fator aplicado à promulgação da Lei 12.760/2012. Em virtude dos casos envolvendo a direção embriagada, bem como a sensação de impunidade por possíveis lacunas em redação anterior, o legislador alterou o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, por meio da referida lei, com o intuito de promover, com mais precisão, a responsabilidade jurídico-penal do agente envolvido em tal delito.
Com efeito, o art. 306 inova ao descrever, como conduta típica, a condução de veículo automotor com alteração da capacidade psicomotora, esta em decorrência da ingestão de bebida alcoólica ou utilização de substância psicoativa que cause dependência. Para aferir tal alteração, o legislador estabeleceu dois critérios: concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou constatação de sinais, pela autoridade, que indiquem, na forma disciplinada pelo CONTRAN, alteração da capacidade psicomotora.
Em ambos os critérios, concluímos ser impossível a verificação da alteração da capacidade psicomotora pelos fatores apresentados, mas, de forma inequívoca, por meio de farta composição probatória de que o ato do agente dirigia em estado crítico, causando evidentes danos à sociedade.
Destaca-se o precedente exposto pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual, corroborando com os apontamentos deste trabalho, não basta ingestão de bebida alcoólica para a condenação do acusado. Ainda que acuse em teste sanguíneo ou por sopro em etilômetro as concentrações previstas em lei, urge a necessidade de se comprovar, pelas provas admitidas pelo direito, a inequívoca alteração da capacidade psicomotora.
Nenhum dado pode ser analisado isoladamente, mas somente em conjunto probante estruturado, evitando a incisão de subjetivismos ou pressões alheias ao devido processo legal, eventos estranhos à técnica processual e à efetivação do próprio Estado Democrático de Direito.
Por fim, a situação advinda do art. 306, §1º, I, do Código de Trânsito Brasileiro, pugna pela presunção relativa de embriaguez. Ou seja, não basta a existência das concentrações descritas em lei para a conclusão alteração da capacidade psicomotora. Torna-se fundamental a reunião de outras provas, ponderadas e reiteradas em juízo, para o agente público julgador decidir pela responsabilização jurídico-penal do agente e conseguinte imposição da sanção penal.
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BRÊTAS C. Dias, Ronaldo. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 1ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
CONSELHO NACIONAL DO TRÂNSITO. Resolução CONTRAN nº 432, de 23 de janeiro de 2013. Dispõe sobre os procedimentos a serem adotados pelas autoridades de trânsito e seus agentes na fiscalização do consumo de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, para aplicação do disposto nos arts. 165, 276, 277 e 306 da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 – Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Disponível em <http://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/(resolu% C3%A7%C3%A3o%20432.2013c).pdf>. Acesso em 10 de janeiro de 2014.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Disponível em <http://www.dicionariodoaurelio.com/>. Acesso em 20 de janeiro de 2014.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos. Disponível em < http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/biblio tecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>. Acesso em 11 de janeiro de 2014.
Advogado Militante. Mestrando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Igor Alves Noberto. Comentários sobre o crime de embriaguez ao volante: as alterações pretendidas pela Lei 12.760/2012 e as novas percepções trazidas ao Código de Trânsito Brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 mar 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38668/comentarios-sobre-o-crime-de-embriaguez-ao-volante-as-alteracoes-pretendidas-pela-lei-12-760-2012-e-as-novas-percepcoes-trazidas-ao-codigo-de-transito-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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