O Direito da Criança e do Adolescente é uma área de especialização jurídica ainda recente, que nasceu como sucessora do antigo Direito do Menor e tem como principal alicerce a chamada Doutrina da Proteção Integral. Até que se chegasse à adoção dessa doutrina, entretanto, foi preciso trilhar um longo caminho.
A primeira vez em que os menores de 21 anos foram alvo de tratamento legislativo no Brasil foi no Código Penal de 1830, na época do Império, seguindo-se, após, pelo Código Penal de 1890, já no período republicano. As primeiras normas sobre o assunto no Brasil, portanto, estavam atreladas ao Direito Penal, centradas na delinqüência praticada pelo menor. Nesses diplomas legais, a proteção da infância foi adotada sob uma perspectiva que ficou conhecida como doutrina do discernimento ou doutrina do direito penal do menor. Sob esse ângulo, incumbia ao juiz o papel de avaliar, diante de cada caso concreto, se aquele indivíduo era ou não capaz de ter uma conduta dolosa, é dizer, se possuía ou não a consciência de que agiu ilicitamente. Para aferir isso, ele recorria a certos critérios de análise, tais como a linguagem do acusado, a sua vida pregressa, etc.
Em 1899, os Estados Unidos criaram o primeiro Tribunal de Menores do mundo - o Tribunal de Illinois –, idéia que se disseminou por vários países da Europa e chegou ao Brasil em 1924, com a fundação do primeiro Juizado de Menores do país. Nesse passo, veio o primeiro Código de Menores do Brasil, no ano de 1927, o qual ficou conhecido como Código Mello Matos e representou um marco fundamental no que toca ao tratamento da criança, com preocupações inéditas até então, com o seu estado físico, moral e mental, bem como com a situação social, moral e econômica de seus pais.
Com a edição do Código de Menores de 1979, retirou-se a criança do sistema penal e passou-se a dar-lhe um tratamento diferenciado, calcado na chamada doutrina do menor em situação irregular, e inaugurando a área de especialização do “Direito do Menor”. O nome dado à doutrina se deve ao fato de que, nesse Código, houve uma normatização das situações em que os menores eram considerados em uma situação irregular. Era o caso, por exemplo, do menor vítima de maus-tratos, do menor privado das condições essenciais de subsistência, do menor privado de representação ou assistência legal, daquele com desvio de conduta, e ainda do menor autor de infração penal. Não tinha tal doutrina, contudo, um caráter preventivo. Muito pelo contrário: o Juiz de Menores, ali, atuava na repressão de condutas, atuando quando o conflito já estava instalado. Era o juiz quem decidia, subjetivamente, através de seu bom senso, aquilo que era “melhor” para o menor, o que o levou a assumir a figura do “Juiz-pai”. “Por mais de dez anos, as decisões tomadas em nome da lei, tantas vezes arbitrária, eram fruto de critérios subjetivos do Juiz, marcados pela discriminação, desinformação, ou ainda, pela falta de condições institucionais que melhor viabilizassem a apreciação dos conflitos”[1].
Em nível internacional, no mesmo ano em que entrou em vigor o Código de Menores de 1979, a Polônia propôs perante a ONU a elaboração de uma Convenção sobre os direitos da Criança. Em que pese já existisse uma Declaração anterior (1959) sobre o assunto, sentia-se a necessidade de criar normas que tivessem força cogente, vinculante para os países signatários, de modo a tornar efetivos os direitos da criança que estavam ali dispostos. Após dez anos de elaboração, em 1989, finalmente entrou em vigor a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, tendo sido assinada por todos os países do globo (192, no total), à exceção da Somália (que não possuía governo reconhecido) e dos Estados Unidos (que só aboliram as penas perpétua e de morte para menores de 18 anos em 2005). Ao ratificar essa Convenção, cada país se comprometeu a adaptar a sua legislação, de modo a torná-la compatível com a norma internacional, sob pena de sofrer sanções diplomáticas.
Foi a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança que instituiu e consagrou a Doutrina da Proteção Integral, a qual veio dar uma proteção jurídica efetiva à infância, pondo de lado, definitivamente, a velha doutrina da situação irregular. A partir de então, todas as crianças e adolescentes passaram a estar sob a égide das mesmas leis, ao contrário do que ocorria nas leis da doutrina da situação irregular e do direito penal do menor, em que havia duas infâncias: as “crianças normais” de um lado, reguladas pelo Direito de Família, e de outro as crianças delinqüentes/em situação irregular. O Juiz da Infância, a seu turno, perdeu o espaço para a tomada de decisões arbitrárias, estando limitado pelas garantias processuais e pelas próprias garantias conferidas às crianças. Outros documentos foram também elaborados, no afã de formar um corpo normativo calcado na Proteção Integral: as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (conhecidas como Regras de Beijing – 1985), as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade (1990) e as Diretrizes de Riad (Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil – 1990).
João Batista Costa Saraiva, a propósito, conseguiu resumir brilhantemente as mudanças trazidas pelos citados instrumentos jurídicos internacionais: “Este conjunto normativo revogou a antiga concepção tutelar, trazendo a criança e o adolescente para uma condição de sujeito de direito, de protagonista de sua própria história, titular de direitos e obrigações próprios de sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, dando um novo contorno ao funcionamento da Justiça de Infância e Juventude, abandonando o conceito de menor, como subcategoria de cidadania”[2]. A doutrina da Proteção Integral veio, portanto, para colocar de lado a visão da criança como objeto passivo e consagrá-la como verdadeiro sujeito de direitos juridicamente protegidos, com direitos fundamentais salvaguardados (direitos humanos positivados, tais como direito ao nome, à identidade, à nacionalidade, etc), assim como os adultos. E essa doutrina nos leva para além disso: todas as crianças têm direito à proteção integral, dada a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, o que faz com que elas precisem de mais direitos que o adulto, de serem mais protegidas e respeitadas, de terem prioridade absoluta. Nesse contexto, pode ser reconhecida a existência de um direito fundamental à infância.
Segundo essa nova doutrina que se instalou, portanto, resta evidente a mudança de perspectiva no tratamento dado à criança e ao adolescente. A proteção a esses indivíduos deve ser aplicada erga omnes, isto é, em face de todos, inclusive de seus pais, e é papel da família, do Estado e da Sociedade garantir esses direitos, protegendo-os de qualquer forma de sofrimento e discriminação. Deve ser ela também integral, porquanto deve abranger todas as dimensões da vida daquele ser humano (em seus aspectos moral, físico, mental, cultural, espiritual e social), o qual tem uma série de direitos que lhe são próprios, tais como o direito de brincar, fundamental para a formação de sua personalidade.
A doutrina da Proteção Integral tem seu fundamento no princípio do melhor interesse da criança (Tender Years Doctrine). Esse princípio teve o seu nascedouro nos Estados Unidos, em 1813, quando a Corte da Pensilvânia, por ocasião do julgamento de uma ação de divórcio, em que a esposa foi considerada adúltera, decidiu que a conduta daquela mulher não possuía nenhuma relação com os cuidados que ela dispensava a sua criança e que, portanto, não perderia o direito de ficar com ela e educá-la, na qualidade de mãe. Começava a se delinear ali, destarte, a mudança da concepção de que a criança era uma “coisa pertencente ao seu pai”. De acordo com a idéia de procurar atuar sempre no sentido que atenda ao melhor interesse da criança, colocando as suas necessidades em prevalência sobre os interesses de seus pais, qualquer atitude a ser tomada em relação a ela tem sempre que procurar garantir-lhe o melhor possível. Passa a ser dever dos pais e responsáveis toda a proteção e cuidado, sendo a família reconhecida, via de regra, como o ambiente mais favorável para o bem-estar e o desenvolvimento pleno da criança. Tal princípio, inclusive, encontra-se apregoado no art. 3º da Convenção sobre os Direitos da Criança, que dispõe que “Todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança”.
A legislação brasileira, na tendência mundial dessa nova forma de tratamento à criança, incorporou a doutrina da Proteção Integral e o princípio do melhor interesse da criança, que foram não só recepcionados pela Constituição Federal (art. 227), ganhando status constitucional, mas também se tornaram a base fundamental da nova lei especial editada para a criança e o adolescente (e não mais Menores, portanto): a Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, a qual, já em seu artigo 1º, declara que seu objetivo é dispor sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
REFERÊNCIAS:
PEREIRA, Tânia da S. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Renovar.
SARAIVA, João Batista Costa. A Doutrina da Proteção Integral. O princípio do Superior Interesse da Criança e a Convenção dos Direitos da Criança: conteúdo e significado. Disponível em: http://www.oaang.org/simposio/doutrinaProteIntegral.pdf. Acesso em: 12 set. 2008.
[1] PEREIRA, Tânia da S. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Renovar.
[2] SARAIVA, João Batista Costa. A Doutrina da Proteção Integral. O princípio do Superior Interesse da Criança e a Convenção dos Direitos da Criança: conteúdo e significado. Disponível em: http://www.oaang.org/simposio/doutrinaProteIntegral.pdf. Acesso em: 12 set. 2008.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Larissa Suassuna Carvalho. A Doutrina da proteção integral e sua gênese Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 mar 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38735/a-doutrina-da-protecao-integral-e-sua-genese. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Patricia de Fátima Augusta de Souza
Por: André Luís Cavalcanti Chaves
Por: Lara Pêgolo Buso
Por: Maria Guilhermina Alves Ramos de Souza
Por: Denise Bueno Vicente
Precisa estar logado para fazer comentários.