O ordenamento jurídico brasileiro estabelece como regra um procedimento sujeito a prazos processuais recursais, cujo objetivo maior é a solução final do processo, com prolação de decisão que fará coisa julgada material, tornando imutável a pretensão jurisdicional buscada.
No entanto, em que pese a regra seja pela necessidade de interposição de recurso pela parte vencida para que a decisão proferida pelo juízo de primeiro grau seja apreciada pelo Tribunal respectivo, o legislador ordinário estabeleceu exceções, previstas atualmente no artigo 475 do Código de Processo Civil.
Por oportuno transcrever o artigo 475 do Código de Processo Civil, in verbis:
Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I - proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público; II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI).
§ 1o Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.
§ 2o Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.
§ 3o Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente.
De acordo com o dispositivo legal supracitado (artigo 475, inciso I, do CPC), a sentença desfavorável à Fazenda Pública será submetida ao duplo grau de jurisdição independentemente da interposição de recurso.
Trata-se do instituto do reexame necessário ou recurso de ofício, no qual em algumas situações previstas em lei, as decisões de primeiro grau proferidas em desfavor do Poder Público serão submetidas ao órgão jurisdicional de segundo grau para reapreciação.
Não obstante o reexame necessário também seja denominado de recurso de ofício, ele não possui natureza de recurso, mas sim de condição de eficácia da sentença, porquanto enquanto a questão levada a juízo não for submetida ao duplo grau de jurisdição, não haverá coisa julgada e, por consequência, a segurança jurídica almejada pelos litigantes.
Nesse sentido, cumpre destacar o ilustre doutrinador Nelson Nery Júnior que, ao abordar a natureza jurídica do reexame necessário, afirma que "essa medida não tem natureza jurídica de recurso. Faltam-lhe a voluntariedade, a tipicidade, a dialeticidade, o interesse em recorrer, a legitimidade, a tempestividade e o preparo, características e pressupostos de admissibilidade dos recursos”[1].
Tanto é assim que sequer há previsão do reexame necessário no rol taxativo do artigo 496 do Código de Processo Civil, que prevê todas as hipóteses de recursos existentes no ordenamento jurídico brasileiro processual.
De outro lado, cumpre destacar que somente haverá o reexame necessário nas hipóteses de sentenças, e não de decisão interlocutória, contrárias ao interesse da Fazenda, não sendo cabível diante das sentenças que lhe são favoráveis.
Entretanto, com o advento da Lei nº 10.352, de 26.12.2001, foram estabelecidas duas exceções nos parágrafos 2º e 3º do artigo 475 ao reexame necessário. Com isso, ainda que o órgão público tenha sucumbido à demanda judicial, a sentença não estará sujeita ao reexame necessário: 1- se o objeto controvertido for inferior a 60 (sessenta) salários mínimos; 2 - ou se a sentença tiver sido fundamentada em jurisprudência do Plenário ou súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior competente (Superior Tribunal de Justiça, Superior Tribunal do Trabalho ou Superior Tribunal Militar).
Desse modo, houve uma restrição às hipóteses jurídicas em que são submetidas ao reexame necessário em favor do Poder Público em relação do que era previsto antes de 2001, notadamente em relação às inúmeras ações judiciais que versam unicamente sobre matéria de direito, já decididas pelo Supremo Tribunal Federal e Tribunais Superiores.
Invariavelmente, o reexame necessário nos leva a uma análise sobre o instituto da reformatio in pejus. Uma vez submetida ao duplo grau de jurisdição a questão decidida em desfavor da Fazenda Pública, não pode o Tribunal reformar a decisão do juízo a quo em prejuízo ainda maior do órgão público, ou seja, agravando a situação do Poder Público, sob pena de restar caracterizada a reformatio in pejus, vedado pelo ordenamento jurídico vigente, conforme se observa da súmula 45 do Superior Tribunal de Justiça, in literis:
SÚMULA 45 /STJ. 1. "No reexame necessário é defeso ao Tribunal agravar a condenação imposta à Fazenda Pública"
Isso porque o reexame necessário das decisões contrárias à Fazenda Pública é mecanismo de controle das decisões judiciais em favor do ente público com o intuito de resguardar a supremacia do interesse público.
Inclusive, acerca desse assunto, cumpre transcrever a lição de José Carlos Barbosa Moreira, citado pelo Ministro Mauro Campbell Marques, no REsp 1233311 / PR, DJe 31.05.2011, in literis:
“....4. Destaca-se, no âmbito doutrinário, a lição de de José Carlos Barbosa Moreira: "A obrigatoriedade do reexame em segundo grau das sentenças contrárias à Fazenda Pública não ofende o princípio daisonomia, corretamente entendido. A Fazenda não é um litigante qualquer. Não pode ser tratada como tal; nem assim a tratam outros ordenamentos jurídicos, mesmo no chamado Primeiro Mundo. O interesse público, justamente por ser público — ou seja, da coletividade como um todo — é merecedor de proteção especial, num Estado democrático não menos que alhures. Nada tem de desprimorasamente 'autoritária' aconsagração de mecanismos processuais ordenados a essa proteção".
Por fim, cumpre ainda mencionar que muito se discutiu perante o Superior Tribunal de Justiça sobre a possibilidade de o Poder Público interpor recurso especial na hipótese em que a questão é levada ao Tribunal em razão do reexame necessário, ou seja, sem que tenha havido a interposição do recurso de apelação pela Procuradoria responsável, debatendo-se sobre a possível ocorrência de preclusão lógica.
Inicialmente o Superior Tribunal de Justiça tinha se pronunciado pela inadmissibilidade do recurso especial interposto pela Fazenda Pública quando não houve interposição do recurso voluntário anterior, sob o fundamento de que teria havido a preclusão lógica, visto que se tratava de condutas incongruentes da Administração Pública, que ora demonstrou interesse em não recorrer e após, no mesmo processo, agiu de forma interessada na interposição de recurso.
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 905.771/CE[2], de relatoria do Ministro Teori Albino Zavascki, em 26.6.2010, consolidou o entendimento no sentido de que não configura preclusão lógica mesmo quando a matéria levada ao Poder Judiciário não tenha ocorrido por meio de recurso voluntário, sob o fundamento de que a remessa ex officio tem o efeito de devolver ao Tribunal toda a matéria em que a Fazenda Pública sucumbiu.
Desse modo, observa-se que o instituto do reexame necessário, do modo como está consagrado no ordenamento jurídico brasileiro, teve seu campo de atuação reduzido, tornando mais equânime a posição do administrado e do Poder Público, sem perder, contudo, a vocação do instituto para salvaguardar o interesse público, notadamente nas causas de repercussão financeira de maior monta.
[1] NERY JUNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 55
[2] EDcl no AgRg no REsp 1106435 / SC
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL
2008/0258876-5; Ministro Humberto Martins, Segunda Turma; DJe: 18.10.2013.
Procuradora Federal atuante na Procuradoria-Seccional Federal em Santos. Exerceu a chefia de divisão de ações prioritárias, bem como a Coordenação-Geral de Cobrança e Recuperação de Créditos, ambas da Procuradoria-Geral Federal; atuou como tutora do Curso de Especialização em Direito Público da Universidade de Brasília-UNB/CEAD em parceria com a Escola da Advocacia-Geral da União-EAGU e pós-graduada em Direito Processual pela Universidade do Sul de Santa Catarina-UNISUL.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CANCELLA, Carina Bellini. Do reexame necessário no processo civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 mar 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38819/do-reexame-necessario-no-processo-civil. Acesso em: 23 dez 2024.
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