RESUMO: A nova versão das marchas da “Família com Deus pela Liberdade” representaria o direito à liberdade de expressão, de forma pacífica e ordeira em defesa dos valores tradicionais das elites pela propriedade. Contraditoriamente usa da democracia para pedir a repressão e o autoritarismo. Por isso, o ideal da tradição, família, fé, liberdade e propriedade simbolizam não o direito; mas, o próprio privilégio do mais forte. Daqueles que se acham acima das leis e do próprio Estado. Portanto, a manifestação não é legítima. Por reafirmar a violência e desigualdades materiais que atentam contra o próprio Estado Democrático de Direito.
Palavras-Chave: Marcha; Liberdade; Estado Democrático de Direito; Elite; Autoritarismo.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Repressão: um fantasma do passado e do presente. 2. A luta pelo Estado Democrático de Direito em face ao autoritarismo e conservadorismo de setores da elite paulistana. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Em 01 de abril completamos 50 anos do golpe de 1964, que culminou com o cerceamento das liberdades civis e políticas com o AI-5. Mediante a ditadura e a perseguição, prisões e torturas dos anos de chumbo. Intelectuais, militantes, operários, e mesmo padres progressistas pedem a Deus um mundo em que todos sejam livres e tenha preservada sua dignidade e não apenas meia dúzia possa fazê-lo. Que os anos de chumbo fique na história como um período da Guerra Fria, em que o fantasma da ameaça “comunista” representou uma batalha ideológica entre os países alinhados com os Estados Unidos da América (capitalista) e do outro a ex-URSS (socialista).
No Brasil a Comissão Nacional da Verdade representa uma tentativa de resgatar a memória e a verdade das atrocidades cometidas no período das ditaduras no Brasil. Torturados que não cansam de prestar depoimento sobre esse tenebroso período do nosso Estado de exceção. Embora sob a égide do direito do mais forte, da força bruta das armas, e da indignação de tantos que morreram silenciados pelo autoritarismo na mão dos militares.
O papel do resgate da memória e da verdade é no sentido de que os direitos humanos fundamentais sejam respeitados para todos e que não se repitam novamente a violação aos direitos do cidadão. Embora ainda hoje a violência permaneça na mão de militares que agem contra lei e milícias que apostam na violação de direitos fundamentais transformando a justiça pública em privada como produto desse período histórico-social a serviço das elites conservadoras. O ranço da ditadura está impregnado em setores que não sofreram quaisquer punições e que acabam por promover a violência como referencial de que seria “legítimo” agir ao arrepio da lei pela idéia de impunidade. Como vemos todos os dias na mídia os abusos cometidos contra pessoas pobres, pretos e mestiços das periferias nas grandes cidades. Mas recentemente dois episódios um no Rio de Janeiro de um menor preso a um poste sob suspeita de furto. E outro de uma moradora arrastada por um camburão da polícia, quando era conduzida a um hospital após ser vitimada pela própria polícia. Em última análise por trás desses episódios está a omissão do Estado em garantir o respeito a lei e ao Direito para todos.
Mas será que a repressão era prejudicial para todos os brasileiros e estrangeiros durante a ditadura civil-militar? Eis que a resposta está nas condições do que somos hoje, um País que fala em democracia plena associada a privilégios para poucos. A marcha é o símbolo do Brasil que insiste em negar aos seus filhos o direito à educação, água, transporte, moradia e saúde de qualidade. Haja vista a concepção de família tradicional patriarcal está superada pelo processo histórico-social de pluralidade constitucional passando pela união afetiva. Também hoje cada vez mais mulheres assumem o papel de chefe de família ou solteiros optam por ser feliz assim. As mulheres promoveram ao longo das últimas décadas uma revolução silenciosa e buscam cada vez mais espaço na sociedade. As minorias em geral (negros, índios, homossexuais, mulheres) passam a lutar pela efetividade de direitos. Portanto o conceito de família e sociedade mudou e hoje temos uma realidade.
A concepção familiar tradicional e autoritária da marcha é a mesma que apóia a polícia repressiva de ontem e de hoje que agride e mata nas ruas e periferias pobres, pretos, desvalidos à própria sorte. Que arrasta e pune com as próprias mãos mediante os “novos pelourinhos” que colocam o pobre no seu lugar de marginalizado, excluído. A marcha é defendida por alguns setores da grande mídia mediante conteúdo jornalístico que incita a violência e a justiça com as próprias mãos com saudosismo dos anos de chumbo e como saída para resolver o contingente de miseráveis nos presídios e dar um recado aos que cometem pequenos furtos ou roubos. Essa mesma elite influencia setores da classe média cansados de pagar impostos e ver a ineficiência de governos centrais, mas esquecem que o problema da violência passa pelo poder de governos locais que insistem em negar políticas públicas que atenuem as desigualdades com vistas ao justo.
Em geral esses setores conservadores da marcha vêem aos pobres em geral associados com a marginalidade e ameaça a propriedade privada. Negam, portanto a sua função social prevista na Constituição Federal. Assim como os princípios fundamentais do art. 1º ao 4º da Constituição Federal construída sob a égide da democracia. Entre os quais a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político, e mesmo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a promoção do bem de todos sem preconceito de cor, origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação; a prevalência dos direitos humanos, do repúdio ao racismo, além da busca pela integração econômica, social, cultural e política dos povos da América Latina, visando a formação de uma comunidade latino-americana das nações. Está tudo previsto na nossa Constituição, portanto não é invenção comunista. Diz respeito às normas constitucionais do Estado Democrático de Direito.
1. REPRESSÃO: UM FANTASMA DO PASSADO E DO PRESENTE
No Brasil nunca deixou de existir repressão. Antes dos anos da ditadura e depois dele, pelo contrário apenas foi aperfeiçoada a técnica de tortura física e psicológica nos chamados “flagrantes de suspeitos” e “autos de resistência seguida de morte” e institucionalizada pela polícia repressiva nas ruas e avenidas das grandes cidades, nas periferias ou nos rincões do País. Sob as ordens dos militares a serviço do autoritarismo de elites conservadoras, as mesmas que engoliram a transição, lenta, gradual e segura, e que insistem em negar o direito à verdade e à memória dos que tiveram suas vidas e liberdades ceifadas em nome da “ordem e progresso” para poucos.
A marcha simboliza o “Estado de Direito” de outrora, o mesmo que violando a constituição instituiu um governo ilegal destituindo um presidente eleito democraticamente e que implantou um regime autoritário sob o “pretexto da legalidade”.
No presente foram-se os generais, entraram os coronéis, e seus soldados fardados para promover a paz na Terra, mas se o povo melhorar de vida que fique longe das elites conservadoras, não frequentem shoppings centres de luxo, nos chamados “rolezinhos” senão “entramos e retiramos à força” continuem sem estudo decente, sem moradia digna, sem direito a ter direitos, continuem pobres e excluídos, mas longe das “nossas portas”, clubes sociais e de compras. Não façam manifestações nas ruas e avenidas por melhores condições de vida, mobilidade, redução da passagem ou contra a Copa sob o risco de ser enquadrados como “associação criminosa”. Mas os ricos e seus simpatizantes podem marchar em paz e certamente daremos proteção e segurança que for necessário.
A marcha revela a visão da democracia como ameaça pela força do povo nas urnas e nas ruas em optar pelo que melhor lhes aprouver. Defendem o voto facultativo sob o pretexto de que o povo não sabe votar nos candidatos que representem os interesses de classe abastadas. Em última análise trata-se de uma utopia de civilidade medíocre, para “inglês ver”. Ao negar a sabedoria do nosso povo em participar seja no “rolezinho”, seja no voto nega-se a própria cultura, cor, sotaque de norte a sul, do centro a periferia, portanto, nega-se a própria identidade nacional, e o sentimento patriótico. Embora com o discurso de defesa patriótica.
2. A LUTA PELO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO EM FACE AO AUTORITARISMO E CONSERVADORISMO DE SETORES DA ELITE PAULISTANA
Ao mesmo tempo o inconformismo de elites conservadoras em não aceitar um País plural, mas apenas vertical e que apenas os mais “preparados” quase sempre que atendem seus interesses devem governar. Numa utopia de civilidade de quem se acha melhor, rico e “civilizado” pode mandar no País a serviço dos seus interesses mesquinhos. De continuar explorando à custa da miséria e pobreza de tantos condenados desde o nascimento a assim permanecerem por toda a vida.
Uma constituição materializada nas desigualdades cotidianas em afronta ao texto constitucional que fala em dignidade da pessoa humana. Em superação de desigualdades, no combate a pobreza, na solidariedade, em igualdade, liberdade, propriedade e fraternidade para todos e não para poucos. No reconhecimento da diversidade.
No passado o inimigo era o “comunismo” como pretexto de combate as mudanças sociais, hoje temos o estereótipo: do manifestante pobre, preto ou mestiço como “suspeito ou marginal”. Basta ver a força policial nas recentes manifestações de Junho de 2013 e contra a Copa 2014.
Todos os dias a violência bate às portas das favelas nas periferias. Paradoxalmente resulta em violência nas portas dos condomínios de luxo como um produto socialmente alimentando mediante a “banalização do mal”. E a certeza de que a repressão e a violência institucional ou particular seja física, psicológica ou social gera mais violência e segregação.
Uns lutam pela sobrevivência, por espaço, dignidade, moradia, saúde, educação, outros em poder gastar livremente seu dinheiro e usufruir sua propriedade privada sem ser molestado, mesmo explorando e depreciando ao máximo o outro para obter mais riqueza e luxo, privilégio, prestígio social, não direito. Uns lutam pelo Estado Democrático de Direito, outros pelo “Estado de Direito” que serve aos seus interesses para que continuem a negar o que está previsto na constituição formal via princípios, direitos e garantias de vida digna para todos.
CONCLUSÃO
A marcha certamente representa com clareza a voz dissonante de uma elite autoritária que ecoa pelo País afora nas desigualdades, muros, segregação, injustiças, violência.
Essa mesma elite paulistana conservadora e retrógrada apóia governos ilegítimos que não sabem planejar a cidade e o País como os militares durante a ditadura e na contemporaneidade com a atuação repressão e violência da polícia que resultou no “massacre do Carandiru”. A mesma elite que hoje apóia representantes que não sabem gerir o Estado que resulta na crise do metrô por falta de investimento maciço em mobilidade urbana, o inadequado gerenciamento dos recursos hídricos com o esgotamento do sistema Cantareira, (como se a falta de chuva fosse a única causa da escassez de abastecimento). Outra questão grave é a moradia urbana em áreas de interesse social que precisa ser priorizada e é simplesmente deixada de lado aumentando o contingente de sem-teto e miseráveis pela cidade, bem como de moradores em situação de rua seriam 14.478 segundo o último censo de 2011 da FESPSP. (Disponível em: . Acesso em: 20 mar. de 2014)
A própria repressão contra manifestantes mediante a violência policial e criminalização revelam o despreparo de gestores capitaneados por essas elites que não sabem planejar e a administrar a coisa pública com vistas às políticas que priorizem a qualidade de vida de toda a população. Acostumados apenas com desenvolvimentismo retrógrado de grandes obras e altos custos para favorecer corporações nacionais e transnacionais despreocupadas com a função social da propriedade. Ou seja, apostam na velha política dos coronéis com lucro às empresas, aumento de arrecadação e assistencialismo ao povo.
Paradoxalmente à marcha, as elites conservadoras não gostam e não estão acostumadas com a Democracia participativa, exceto no discurso para tentar convencer o público a atender a seus interesses. Defendem o fim do voto obrigatório, porque não são eleitos seus representantes para atender a seus interesses. Um patriotismo protofascista.
Bem aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia. Que Deus nos livre do mal do autoritarismo, da repressão de hoje e sempre, amém.
Advogado, Membro da ABRAFI, membro do IBDH. Doutor em Direito - FADISP.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOBRINHO, Afonso Soares de Oliveira. A marcha da "família pela propriedade" e o estado democrático de direito: simbolismo da sociedade elitista e autoritária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 mar 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38820/a-marcha-da-quot-familia-pela-propriedade-quot-e-o-estado-democratico-de-direito-simbolismo-da-sociedade-elitista-e-autoritaria. Acesso em: 23 dez 2024.
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