Resumo: aborda-se a temática da independência das instâncias administrativa, cível e criminal, com destaque para as hipóteses de interferência da decisão judicial proferida nesta última no processo administrativo disciplinar federal, à luz dos preceitos legais que regem a matéria e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Administração; independência das instâncias; absolvição; disciplinar.
Encontrar uma definição para a expressão Administração Pública não é tarefa simples. Trata-se de vocábulo que pode ser utilizado nas mais diversas situações, para exprimir significados distintos. Desconsiderando o seu conteúdo vulgar, que não interessa a este ensaio, tem-se, em termos técnicos, duas acepções encontradas na doutrina. Administração Pública, grafada com iniciais maiúsculas, é o próprio Estado, enquanto faceta do Poder Executivo, não obstante o exercício de atividade administrativa pelas outras funções do Poder. Já administração pública, escrita em letras minúsculas, refere à própria dinâmica da atividade ou função administrativa. [i]
Também tem sido adotados critérios para a atribuição de conceitos ao vocábulo. GASPARINI[ii] destaca os três que entende mais pertinentes. Pelo critério residual ou negativista, o conceito de administração pública seria encontrado por exclusão, isto é, aquilo que não se referisse a atividade legislativa ou judiciária poderia ser caracterizado como atividade da Administração.
Pelo critério formal, Administração é o conjunto de órgãos e entidades responsáveis pela realização das funções administrativas. Por isso também é conhecido como orgânico ou subjetivo, pois se refere às pessoas jurídicas e órgãos despersonalizados criados para a consecução dos fins do Estado.
Já em relação ao critério material, administração é a própria atividade administrativa. É também denominado critério objetivo, na medida em que não se refere diretamente às pessoas jurídicas administrativas.
E se existem órgãos e entidades (acepção formal/subjetiva) que desenvolvem uma atividade administrativa (conceito material/objetivo), é possível reconhecer um espaço jurídico próprio em que essa se desenrola. É no âmbito administrativo, pois, que atuam os agentes púbicos, seres humanos que dão vida e fazem funcionar o complexo organismo administrativo, composto por órgãos e entidades.
Em princípio, qualquer pessoa que possua alguma espécie de relação com o Estado pode ser designado agente público. “Quem quer que desempenhe funções estatais, enquanto as exercita, é um agente público”. [iii] A designação agente público refere ao gênero. Importa, para este ensaio, distinguir a espécie servidor público.
Servidores públicos, nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro[iv], são “as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos”. A autora os classifica em três categorias, a saber: 1) os servidores estatutários, que ocupam cargo público; 2) empregados públicos, contratados sob regime da legislação trabalhista; e 3) os servidores temporários, contratados por tempo determinado para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público, nos termos do art. 37, IX, da CF e da Lei 8.745/93.
Os servidores públicos, assim como qualquer agente público, estão sujeitos a praticarem atos ilícitos. Eventuais irregularidades eventualmente perpetradas no desempenho da função pública podem e devem ser apuradas no âmbito da própria Administração. Assim é que, ao lado das clássicas espécies de responsabilidade civil e penal, encontra-se a figura jurídica da responsabilidade administrativa.
No que toca ao servidor público federal, regido pelo regime estatutário, estabelece o art. 121 da Lei 8.112/90 que ele responderá civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.
O art. 125 do estatuto do pessoal civil da Administração Federal ressalta a independência das instâncias apuratórias, ao prescrever que “as sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si”.
As sanções relacionadas à responsabilidade administrativa estão previstas no art. 127 da Lei 8.112/90, e os ilícitos administrativos referem aos deveres (art. 116) e proibições (art. 117), bem como as hipóteses previstas no art. 132 do estatuto.
A responsabilidade civil do servidor relacionada ao desempenho de suas funções é aquela decorrente de ato omissivo ou comissivo, doloso ou culposo, que acarrete prejuízo ao erário ou a terceiro, sendo que, no último caso, o servidor responderá perante a Fazenda Pública, em ação de regresso. Refere ao dever atribuído ao causador do dano de indenizar o lesado[v]. Para os casos dolosos, a lei prevê a possibilidade de desconto em folha, como forma de cobrança do valor da indenização, referente ao prejuízo causado à Administração. [vi]
A responsabilidade penal é a que resulta de ato omissivo ou comissivo praticado no desempenho do cargo ou função. [vii] É preciso ressaltar que no sistema constitucional pátrio somente o Poder Judiciário pode infringir condenação criminal à pessoa que figure como ré, no âmbito do devido processo judicial, com a observância das respectivas garantias processuais. [viii]
Há situações, contudo, em que a instância criminal interfere na administrativa. Assim é que, nos termos do art. 126 da Lei 8.112/90, a responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.
Assim, é possível que o servidor absolvido no processo crime não seja alcançado na esfera disciplinar. Contudo, na dicção legal, não é toda e qualquer anistia criminal que implica o afastamento da responsabilidade disciplinar do servidor. Há que ser a absolvição decorrente de negativa de autoria ou de ausência de materialidade.
A influência da decisão judicial criminal na seara administrativa é reconhecida pela doutrina, nos termos da restrição legal. É o que se verifica na lição de José dos Santos Carvalho Filho[ix]:
Se a decisão penal for absolutória, será necessário distinguir o motivo da absolvição:
a) se a decisão absolutória afirma a inexistência do fato atribuído ao servidor (art. 386, I, do CPP) ou o exclui expressamente da condição de autor do fato (ou, nos dizeres do novo inciso IV do art. 386 do CPP, reconheça “estar provado que o réu não concorreu para a infração penal”), haverá repercussão no âmbito da Administração: significa que está não poderá punir o servidor pelo fato decidido na esfera criminal. A instância penal, no caso, obriga a instância administrativa. Se a punição já tiver sido aplicada, deverá ser anulada em virtude do que foi decidido pelo juiz criminal;
b) se a decisão absolutória, ao contrário, absolver o servidor por insuficiência de provas quanto à autoria ou porque a prova não foi suficiente para a condenação (art. 386, V e VII, do CPP), não influirá na decisão administrativa se, além da conduta penal imputada, houver a configuração de ilícito administrativo naquilo que a doutrina denomina de conduta residual.
No mesmo sentido é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO. NULIDADE DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. INEXISTÊNCIA. PROVA DA MATERIALIDADE E DA AUTORIA. FALTA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA DO PREJUÍZO DA DEFESA ORIUNDO DAS IRREGULARIDADES INDICADAS. PAS DE NULLITE SANS GRIEF. INDICIAMENTO DO SERVIDOR. DESCRIÇÃO MINUCIOSA DOS FATOS E INDICAÇÃO DO LASTRO PROBATÓRIO.
1. Ao que se observa dos autos, a conclusão pela penalidade de demissão decorreu da configuração das infrações indicadas, comprovadas nos autos do processo administrativo disciplinar, diante de todo o lastro probatório produzido pela comissão processante.
2. Decorrendo a penalidade da prova do cometimento das infrações administrativas perpetradas pelo servidor e constando do relatório da comissão processante os motivos (fatos, provas e fundamentos) que justificaram a penalidade, não há falar em nulidade do processo administrativo.
(...)
7. Nos termos do entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça, as instâncias civil, criminal e administrativa são independentes entre si, havendo vinculação somente quanto à sentença penal absolutória que reconhece a inexistência do fato ou a negativa de autoria, o que não se vislumbra na presente hipótese, em que o acusado foi absolvido por falta de provas.
8. Segurança denegada.
(MS 14.780/DF, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/11/2013, DJe 25/11/2013)
ADMINISTRATIVO. POLICIAL MILITAR. DEMISSÃO. ABSOLVIÇÃO NO PROCESSO CRIMINAL COM FUNDAMENTO NO ART. 439, "C", DO CPPM. RESÍDUO ADMINISTRATIVO. REINTEGRAÇÃO AO CARGO. IMPOSSIBILIDADE. INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS PENAL E ADMINISTRATIVA.
1. É firme o entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que as esferas criminal e administrativa são independentes. Apenas há repercussão no processo administrativo quando a instância penal se manifesta pela inexistência material do fato ou pela negativa de sua autoria, o que não é o caso dos autos.
2. A absolvição na esfera penal fundada na alínea "c" do art. 439 do CPPM ("não existir prova de ter o acusado concorrido para a infração penal") é incapaz de desconstituir a punição administrativa aplicada em virtude do cometimento de infração disciplinar.
3. Hipótese em que o Tribunal a quo reconheceu a existência de resíduo administrativo (prática de outras transgressões disciplinares, que não as que foram alvo do processo-crime) a justificar a manutenção da decisão administrativa que culminou com a expulsão do agravante da corporação militar.
4. Agravo Regimental não provido.
(AgRg no AREsp 371.304/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/10/2013, DJe 07/10/2013)
Todavia, em recente julgado, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a absolvição criminal por falta de provas também pode ensejar o indulto na esfera administrativa disciplinar. Confira-se a ementa do Acórdão:
Ementa: RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. ALEGAÇÃO DE CERCEAMENTO DE DEFESA. IMPROCEDÊNCIA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE PREJUÍZO. PENA DE DEMISSÃO. IMPOSIÇÃO. NÃO OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. ABSOLVIÇÃO DO RECORRENTE NO ÂMBITO PENAL. PENALIDADE DESCONSTITUÍDA. RECURSO PROVIDO. 1. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade devem nortear a Administração Pública como parâmetros de valoração de seus atos sancionatórios, por isso que a não observância dessas balizas justifica a possibilidade de o Poder Judiciário sindicar decisões administrativas. 2. A Lei 9.784/1999 dispõe que “Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”. (...) d) É consabido incumbir ao agente público, quando da edição dos atos administrativos, demonstrar a pertinência dos motivos arguidos aos fins a que o ato se destina [Celso Antônio Bandeira de Mello – RDP90/64]; e) Consoante disposto no artigo 128 da Lei n° 8.112/90, na aplicação da sanção ao servidor devem ser observadas a gravidade do ilícito disciplinar, a culpabilidade do servidor, o dano causado ao erário, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais. Em outras palavras, a referida disposição legal impõe ao administrador a observância dos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade na aplicação de sanções; f) A absolvição penal, que, in casu, ocorreu, nem sempre vincula a decisão a ser proferida no âmbito administrativo disciplinar, sendo certo que não há comprovação, no caso sub judice, da prática de qualquer falta residual de gravidade ímpar capaz de justificar a sua demissão; (...) h) Mercê de o delito acima, que é grave, não ter sido comprovado no âmbito Penal, não se tem notícia da prática de outros atos irregulares por parte do recorrente, podendo-se afirmar que se trata de servidor público possuidor de bons antecedentes, além de detentor de largo tempo de serviço prestado ao Poder Público; i) Ex positis, dou provimento ao presente recurso ordinário em mandado de segurança para desconstituir a pena de demissão cominada (...). 5. Recurso ordinário em mandado de segurança provido para desconstituir a penalidade de demissão imposta ao ora recorrente.
(RMS 28208, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 25/02/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-055 DIVULG 19-03-2014 PUBLIC 20-03-2014).
Numa análise do decisum, é possível constatar que o Supremo não ampliou as hipóteses de interferência da esfera criminal no processo administrativo disciplinar, que permanecem sendo as duas descritas no artigo 126 da Lei 8.112/90, quais sejam, a negativa de autoria e a ausência de materialidade.
O que o julgado ressalta é, isto sim, a necessidade de a Administração observar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade em todo o seu agir, inclusive quando profere decisão em processo administrativo disciplinar.
Assim, não há que se falar de absolvição automática na esfera administrativa, fora as hipóteses descritas no artigo 126 do estatuto do servidor público federal. O que persiste é, tão somente, considerar a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais, no momento em que realiza o enquadramento da conduta funcional do servidor nos tipos administrativos previstos nos artigos 116, 117 e 132 da Lei 8.112/90, bem como quando a comissão processante propõe, em seu relatório final, a aplicação de sanção administrativa a ser aplicada pela autoridade julgadora, que deve ser adequada e proporcional, tudo em conformidade com o que determina o art. 128 do mesmo diploma legal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.
[i] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 38ª ed. Atualizada por Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 85.
[ii] GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 43.
[iii]BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 245.
[iv]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, pp. 445-446.
[v]Art. 927 do Código Civil – “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
[vi]Art. 122, da Lei 8.112/90.
[vii]Art. 125, da Lei 8.112/90.
[viii]No mesmo sentido: “A matéria da responsabilidade penal é típica das áreas do Direito Penal é típica áreas do Direito Penal e Processual penal e exige que a solução final do litígio seja definida pelo Poder Judiciário.” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 758).
[ix]CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 761-762.
Procurador Federal. Bacharel em Direito e em Ciências Contábeis<br>Especialista em Direito Público e em Direito Processuaà l Civil. MBA em Gestão Pública.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RORIZ, Rodrigo Matos. Da interferência da esfera judicial criminal na seara administrativa disciplinar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 abr 2014, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38889/da-interferencia-da-esfera-judicial-criminal-na-seara-administrativa-disciplinar. Acesso em: 23 dez 2024.
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