O que se espera apresentar é uma reflexão sobre o Direito e sua necessidade premente de transformação, nas palavras de DERRIDA - desconstrução.
O que se espera também é que a partir dos conceitos trabalhados para o direito, a justiça e a democracia, conforme pensamento de DERRIDA, seja clara a ideia de que é a partir da desconstrução que o direito possibilita a realização da justiça, mesmo que a justiça seja apenas uma experiência do impossível.
O presente artigo não tem a intenção de se aprofundar nas ideias de Jacques Derrida e sua teoria da desconstrução do Direito, descrita na obra “Força de Lei”. Ora, o pensamento derridiano é bastante complexo e não se encaixa nos limites acadêmicos desse estudo.
Todavia, a leitura de alguns textos, especialmente do capítulo 1 da obra “Força de Lei”, intitulado “Do direito à justiça”, serviu para despertar o interesse na possibilidade de utilização do discurso desconstrutivo do direito, mas construtivo de um campo possível à abertura de sentido e transformação.
Inicialmente, vale afirmar que a obra “Força de Lei: o fundamento místico da autoridade” consiste em uma palestra ministrada na Benjamin N. Cardozo Law School, Faculdade de Direito norte-americana, por Jacques DERRIDA, e é a partir dela que se inicia esse estudo.
Nessa obra, o grande tema a ser desenvolvido é a justiça, a divindade mais problemática do direito (OLIVEIRA, 2011, p 10)
Registra ainda OLIVEIRA (2011, p. 10) que na tradição do pensamento jurídico a justiça é concebida como uma estrutura, estando atrelada, desde os gregos, à lei e ao direito. A justiça representava o começo e o fim do direito e se manifestava nas prescrições e instituições legais. Ainda o mesmo autor assevera que no positivismo jurídico a justiça foi deslocada para fora do discurso jurídico, mas se manifestava por meio da legalidade, ou seja, a estrutura perde seu começo e seu fim, para se instituir sobre os meios.
Na perspectiva de DERRIDA (2010, p 27) a justiça é encarada como um acontecimento que rompe com a estrutura: “a desconstrução é a justiça”. E essa noção de justiça tem um caráter tão aberto, que chega a ser intangível.
Também é a partir do pensamento derridiano que alguns mitos do universo jurídico podem ser destruídos, podendo o direito se desconstruir, mas também lhe permitir uma nova configuração, bem como leituras que possam significar uma nova prática interpretativa (KOZICKI, 2004, p. 148).
DERRIDA (2010, p. 4) faz a seguinte pergunta:
(...) será que a desconstrução assegura, permite, autoriza a possibilidade de justiça? Será que ela torna possível a justiça ou um discurso conseqüente sobre a justiça e sobre as condições de possibilidade da justiça?
DERRIDA (2010, p 26) afirma que é na paradoxal situação de ser a justiça indesconstruível que reside a possibilidade da desconstrução propriamente dita:
Na estrutura que assim descrevo, o direito é essencialmente desconstruível, ou porque ele é fundado, isto é, construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis (e esta é a história do direito, a possível e necessária transformação, por vezes a melhora do direito), ou porque seu fundamento último, por definição, não é fundado. Que o direito seja desconstruível, não é uma infelicidade. Pode-se mesmo encontrar nisso a chance política de todo progresso histórico.
Com esse pensamento, o autor afirma que o direito pode ser construído e desconstruído (seja no tocante ao seu ato fundador, seja no tocante à autoridade que o originou ou ainda na interpretação que prevalece), mas a justiça, separada do direito, não pode ser desconstruída.
Para DERRIDA o direito pode ser sempre desconstruído e a desconstrução demonstra que qualquer ordenamento jurídico pode ser “desestabilizado” (KOZICKI, 2004, p. 149).
O direito deve ser aberto e ter textos com vários sentidos, de forma a permitir que toda leitura possa ser submetida a uma nova leitura, em um movimento que une presente e passado, futuro e presente. Explica-se: a leitura de um texto é um reescrever do texto passado, a sua tradução para o presente; ao mesmo tempo que o texto presente é ele mesmo um não texto, na medida em que existe apenas enquanto possibilidade para a construção futura de um novo texto, a qual se dará pela sua leitura (KOZICKI, 2004, p. 149).
Tornar o direito passível à desconstrução, pelo próprio homem que o construiu pode significar sua reavaliação, transformação e evolução, na medida em que uma prática desconstrutiva do direito pode significar um avanço no enriquecimento de seus conteúdos. Com a abertura o direito, novas interpretações podem ser obtidas, expondo o aparato jurídico e judiciário a novas formulações. A estagnação do direito, por outro lado, o afasta do presente e do futuro.
Voltando a ideia de DERRIDA (2010, p. 26), é essa estrutura desconstruível do direito ou, se preferirem, da justiça como direito, que assegura também a possibilidade da desconstrução. Por outro lado, a justiça nela mesma, se algo como tal existe, fora ou para além do direito, não é desconstruível.
Ou seja, sobressai desse pensamento a insistência na separação entre o direito e a justiça, transcendendo a justiça os limites do ordenamento jurídico tal como ele é construído (KOZICKI, 20044, p 150).
E podemos separar o direito da justiça? DERRIDA afirma (KOZICKI, 2004, p 150 e 151):
A justiça do direito, a justiça como direito não é justiça. Leis não são justas por serem leis. Nós não lhes obedecemos porque elas são justas, mas porque têm autoridade.” Justiça e direito são conceitos distintos e, na própria tentativa de confundi-los ou assemelhá-los, já é possível deparar-se com um dos mitos envolvidos na configuração do fenômeno jurídico.
Ainda o autor em sua obra descreve o que Montaigne (apud DERRIDA, 2010. p 21) fala sobre o fundamento místico da autoridade das leis:
Ora, as leis se mantêm em crédito, não porque elas são justas, mas porque são leis. É o fundamento místico de sua autoridade, elas não têm outro (..). Quem a elas obedece porque são justas não lhes obedece justamente pelo que deve.
Ou seja, Montaigne também distingue o direito da justiça e diz que as leis não são obedecidas porque são justas, mas porque tem autoridade, a partir de um crédito que lhe é dado, eis o seu único fundamento. E esse ato de fé não é um fundamento ontológico ou racional (DERRIDA, 2010, p 21).
Para DERRIDA, na base de todo direito reside um ato de força que não guarda a natureza de justo ou injusto, legitimo ou ilegítimo, nem pode ser avaliado de acordo com um sistema auto-regulador ou auto-referente, ou um recurso hipotético (como a norma hipotética fundamental de Hans Kelsen). Dessa forma, o ato que funda o direito seria um ato sem fundação, um ato instituinte que carece, ele próprio de fundação (KOZICKI, 2004, P. 151) e este ato, cuja origem não se sabe se justa ou injusta, não implica necessariamente a criação de uma ordem jurídica justa (KOZICKI, 2004, P. 151).
DERRIDA (2010, p. 7) se utiliza ainda da noção de enforceability of the law or contract ou to enforce de law para explicar a relação entre direito e força, apesar de considerar insuficiente a tradução dos termos em outra língua que não o inglês pois, quando se diz aplicar o direito ou o contrato perde-se a ideia da força interna ao direito, a qual lembra que o direito é sempre uma força autorizada, uma força que se justifica ou que tem aplicação justificada.
Nas palavras do autor (DERRIDA, 2010, p. 8):
A aplicabilidade, a “enforceability”, não é uma possibilidade exterior ou secundária que viria ou não juntar-se, de modo suplementar, ao direito. Ela é a força essencialmente implicada no próprio conceito de justiça enquanto direito, da justiça na medida e que ela se torna lei, da lei enquanto direito (...) A palavra “enforceability” chama-nos pois à letra. Ela nos lembra, literalmente, que não há direito que não implique nele mesmo, a priori, na estrutura analítica de seu conceito, a possibilidade de ser “enforced”, aplicado pela força.
Em suma, DERRIDA (2010, p. 9) afirma que existem leis não aplicadas, mas não há lei sem aplicabilidade, assim como não há aplicabilidade ou “enforceability” da lei sem força, seja essa força direta ou indireta, física ou simbólica, exterior ou interior, coercitiva ou reguladora, etc.
Insistindo na separação do direito e da justiça, DERRIDA (2010, p. 30) diz que
Aporía é um não-caminho. A justiça seria, deste ponto de vista, a experiência daquilo que não podemos experimentar (...) Mas acredito que não há justiça sem essa experiência da aporia, por impossível que seja. A justiça é a experiência do impossível. Uma vontade, um desejo, uma exigência de justiça cuja estrutura não fosse uma experiência da aporia, não teria nenhuma chance de ser o que ela é, a saber, apenas um apelo à justiça. Cada vez que as coisas acontecem ou acontecem de modo adequado, cada vez que se aplica tranquilamente uma boa regra a um caso particular, a um exemplo corretamente subsumido, segundo um juízo determinante, o direito é respeitado, mas não podemos ter certeza de que a justiça o foi. O direito não é a justiça. O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável; e as experiências tão improváveis quanto necessárias da justiça, isto é, momentos em que a decisão entre o justo e o injusto nunca é garantida por uma regra.
Na tentativa de se interpretar o que foi dito tem-se que, enquanto a justiça se caracteriza como infinita, incalculável, inatingível e avessa à simetria, o direito existe no âmbito da legalidade como um sistema finito, regulador e normativo, que tenta refletir certa estabilidade e alcançar sem garantias, a justiça (KOZICKI, 2004, p. 153).
Ainda, mais uma vez, DERRIDA separa o direito da justiça, utilizando-se da oposição entre o direito – que traz normas gerais e exige obrigatoriamente que seja feito um balanceamento entre o geral e o singular, entre o texto passado da norma e a exigência presente da justiça – com a justiça – que exige uma recriação da norma que deve atender a singularidade de cada caso.
Com efeito, a construção do sentido de uma norma e a sua aplicação deve significar uma busca incessante pela justiça, busca essa que representa um compromisso ético dos tribunais e aplicadores do direito com o próprio direito. Esse compromisso pode levar ainda à transformação do direito e a sua melhor adequação a uma sociedade democrática.
Em suma, para DERRIDA é no intervalo entre o direito e a justiça que a desconstrução encontra seu lugar, pois desconstruindo e desestabilizando o direito tradicional é que a justiça pode encontrar caminhos para sua expressão (KOZICKI, 2004, p. 154).
E para DERRIDA (2010, p. 37) é importante
nunca ceder a esse respeito, manter sempre vivo um questionamento sobre a origem, os fundamentos e os limites de nosso aparelho conceitual, teórico ou normativo em torno da justiça é, do ponto de vista de uma desconstrução rigorosa, tudo salvo uma neutralização do interesse pela justiça (...).
Ademais, a resposta, em DERRIDA, jamais se encontra no presente, devendo a justiça servir de guia, de elemento crítico, e por essa razão, a democracia é a forma política que melhor conduz a experiência da justiça. Não uma democracia realizada aqui e agora, mas a democracia entendida como possibilidade, como abertura para o futuro. Assim sendo, justiça e democracia se entrelaçam como representações que escapam ao aqui e agora, escapam ao presente, representando algo que está sempre por acontecer (KOZICKI, 2004, p. 156).
DERRIDA ressalta a questão da justiça como algo que nunca se apresenta, mas que representa uma responsabilidade inafastável e inadiável. Nesse sentido, DERRIDA separa a ideia de futuro e o que ele chama de àvenir/to come, ou seja, o futuro pode representar a mera reprodução do presente ou, quando muito, a sua evolução.
Já a ideia do porvir, que algo está para acontecer, pode representar a possibilidade de transformação, um recriar, repensar, reformular. Para KOZICKI (2004, p. 156), talvez essa seja a principal conclusão que se pode retirar da percepção de justiça, para DERRIDA: ou seja, o fato da justiça exceder as fronteiras do jurídico e do político, e não ser um elemento de cálculo, não pode servir como álibi para alguém negar a responsabilidade na busca da transformação das instituições que compõem a sociedade.
KOZICKI (2004, p. 157) ressalta ainda que:
Nesse sentido, a democracia seria a forma política mais apta a significar tal perspectiva de justiça. Perspectiva esta que não se esgota na ação política, mas pressupõe a ação política. Não se contém nos limites do ordenamento jurídico, mas pressupõe o direito como elemento de estabilização e prioriza o momento da decisão, ou melhor, do julgamento (significado este por um compromisso ético). Essa democracia pode ser significada pela busca infinita da justiça e representada por um compromisso com o outro. (...) A radicalização da democracia, compreendida pelo aprofundamento das relações democráticas; (...) Para que o direito possa significar um instrumento para viabilizar a justiça e a democracia é necessário que efetivamente exista um compromisso dos seus órgãos aplicadores com a justiça e a democracia.
Traçadas algumas linhas sobre o pensamento de DERRIDA, sobre a possibilidade de abertura e desconstrução do direito, e sobre a democracia como forma política mais apta e próxima da justiça, é necessário relacionar o direito com alguma manifestação democrática para que ele possa significar um instrumento de viabilização da justiça.
Com efeito, os órgãos e instituições aplicadores do direito também podem lançar mão da abertura do direito e da sua desconstrução para concretizarem a justiça.
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução: Leila Perrone-Moises – 2. Edição. São Paulo: Editora WMF Marins Fontes, 2010.
KOZICKI, Katya. O problema da interpretação do direito e a justiça na perspectiva da desconstrução. O que nos faz pensar n.°18, setembro de 2004.
OLIVEIRA, Manoel Carlos Uchoa de. Desconstrução e direito: uma leitura sobre “Força de Lei: de Jacques Derrida. Recife: O autor, 2011. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Direito, 2011.
Formada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB e em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Procuradora Federal desde 2004.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Helena Dias Leão. Desconstruindo o direto segundo o pensamento de Jacques Derrida Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 abr 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38951/desconstruindo-o-direto-segundo-o-pensamento-de-jacques-derrida. Acesso em: 23 dez 2024.
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