Resumo: Acordo de Leniência. Fundamentos. Autoridade e pertinência. Regra da razão. Direito econômico. Kelsen. Estrutura jurídica aceitável. Validade e legitimidade. Filosofia utilitarista. Maior felicidade a um maior número de pessoas. Adequação.
Introdução
Buscar-se-á conceber uma sistemática que confira aceitabilidade ao ajuste que permite ao infrator participar de uma investigação, com o fim de prevenir ou reparar dano de interesse coletivo em troca da extinção da ação punitiva ou redução da pena.
No Brasil, este ajuste recebeu o nome de Acordo de Leniência, concebido como uma das inovações na área do direito da livre concorrência, então previsto no artigo 35-B da Lei nº 8.884/94, acrescentado pela Lei nº 10.149/00, ganhou novos contornos com a superveniência da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, a qual revogou o diploma vestibular.[1]
Não raro vê-se a análise do Acordo de Leniência à luz da regra da razão, a qual cerceia grande parte do Direito Econômico. Todavia, o alcance de sua aceitabilidade passa, dentro de certo período histórico, pela observância de duas qualidades, pelo menos no que se refere a seus fundamentos, quais sejam: a) autoridade e b) pertinência.
Em observação histórica, mesmo os grandes revolucionários (ou reacionários a seu tempo) só obtiveram êxito em seus trabalhos em momento e conjuntura diversa daquelas de suas criações, porque lhes faltou autoridade para sustentar seus fundamentos à sua época ou porque não era pertinente a opção por suas idéias naquele tempo.
Deve-se registrar, então, que não se obteria aceitabilidade, no momento, uma avaliação que partisse de pressuposto, ainda que pertinente, sem autoridade. Assim, além de se recorrer, imediatamente, a regra da razão, que cerceia grande parte do Direito Econômico, importa, para fins deste artigo, expor um sistema jurídico hipotético que recepcione quanto à validade, eficácia, legitimidade e fins aquela regra da razão.
Trata-se, como finalidade deste artigo, mais de expor a percepção de direito que valide o instrumento do Acordo de Leniência do que a de sistema jurídico propriamente dito, pois se recorre ao normativismo Kelseniano para conceber estrutura jurídica aceitável e à filosofia utilitarista para expor posição pertinente ao nosso tempo.
Neste contexto, vê-se por inafastável o positivismo de Kelsen, segundo o qual valido é o sistema autorizado por outra norma válida, que resolveu denominar, sem admitir sua existência, mas tão-só trabalhando com o pressuposto indiscutível, de Norma Fundamental. O pressuposto da Norma Fundamental, pela aceitabilidade e autoridade adquirida no cenário científico, será considerado nos moldes em que trabalhou seu criador, como justificativa superior. Assim, é válida por si mesma, independentemente de sua existência, a Norma Fundamental, pressuposto de trabalho.
Portanto, sem incorrer no erro dos jusnaturalistas, aqui, do “dever ser” surge o “dever ser”, sem o conflito (problemática) de se admitir do “ser” o “dever ser” a qual foi, primeiramente, explicitada por Kant.
É a validade, conceito estritamente normativo, que confere a obrigatoriedade das normas jurídicas, não se podendo, então, confundir-se o obrigatório com o realizável de certa forma, invariavelmente, por coação. É dessa percepção de validade, que se confunde com vigência e que é conferida por autoridade de outra norma, que se adentra à discussão da legitimidade.
A legitimidade está ligada, ainda que de forma indireta, à autoridade da norma que confere a alguém uma posição legítima, e de forma direta à validade da norma, que por sua vez é observável por sua vigência em determinado sistema.
Kelsen tratou de suas pressuposições, porque baseadas em pressuposto que não se discute, como Teoria Pura do Direito, em parte porque aplicável a qualquer sistema jurídico e em parte porque apartada de valores. Contudo, Kelsen deixa aberta a porta de interferência dos valores em sua Teoria Pura ao afirmar que não há limites jurídicos para a Constituição, mas há limites políticos, práticos e reais, os quais opta-se por atrelar, neste trabalho, a filosofia utilitarista.
Esclarecidos, superficialmente, a noção que se admite de validade, autoridade da norma e legitimidade, bem como a relação entre as concepções, deve-se tentar obter o fim, pelo menos em seara de Direito Econômico, que se quer deixar configurado para tal sistema.
Admite-se, mais ou menos de forma geral, que o fim do sistema jurídico é a Justiça, mas a discussão do que é a Justiça parece ser interminável e demasiadamente instável até onde se concebe hodiernamente.
Conexa ao Direito Econômico está, intimamente, a Economia. Valem-se, em diversos seguimentos de estudo, ambas as ciências, da filosofia utilitarista, que em maior ou menor grau desaguou na regra da razão.
O utilitarismo, de acordo com Busse e Urmson, é a teoria empírica segundo a qual o valor ou correção das ações dependem das conseqüências que trazem consigo, do bem ou mal que produzem.
Quando observadas em coletividade ou enquanto objetos coletivos, as ações devem ser medidas pelo bem maior ou pelo maior número de benefícios. As ações são boas na medida em que se aproximam desta finalidade. Então, a correção de uma ação deve estar parametrizada pela contribuição que ela realiza para o aumento da felicidade e para a diminuição da miséria humana.
Em geral, as coisas trazem em seu âmago efeitos bons e ruins, o que se deve pesar é se os primeiros compensam os últimos. No caso do Acordo de Leniência, destarte o fato de se abrir mão da condenação de um infrator – aspecto negativo , por ele se obtém prova para alcançar os demais infratores de maior potencial ofensivo.
A teoria formulada por Hutcheson em 1726 pode ser sintetizada pela seguinte frase: “A melhor ação é aquela que produz a maior felicidade ao maior número de pessoas.”
Jeremy Bentham, em 1781, no final do capítulo IV de seu livro “Principles of Morals and Legislation”, que aborda o tema “Value of a Lot of Pleasure or Pain, how to be Mensuared” colocou os seguintes versos que majestosamente expressam a perspectiva utilitarista:
“Intense, long, certain, speedy, fruitful, pure –
Such marks in pleasures and in pains endure.
Such pleasures seek if private be thy end:
If it be public, wide let them extend.
Such pains avoid, whichever by thy view:
If pains must come, let them extend to few.”[2]
A crítica ao utilitarismo exsurge no sentido em que se concebe que em determinadas situações os sujeitos admitam certos sofrimentos imediatos por bens maiores ou mais duráveis. Consigne-se que se anula a crítica ao abordar o utilitarismo pela ótica em que o útil, em verdade, não é o imediato, mas aquilo que é mais útil, observa-se, então o valor da utilidade.
Dessa perspectiva, o problema de como medir a utilidade é inevitável, nesse sentido, Jeremy Bentham sugeriu uma forma de quantificar a utilidade em sete critérios: intensidade, duração, certeza, proximidade, fecundidade, pureza e extensão. Os critérios oferecidos, contudo, apresentam-se tão peculiares caracterizadores do valor da utilidade quanto tentar caracterizá-los por quaisquer outros.
Destarte, considera-se por determinação do valor diretamente pela regra da razão, recorrendo, em parte, ao estudo elaborado por José Inácio Gonzaga Franceschini, Edgard Antonio Pereira e Eleni Lagroteria da Silva, nos termos a seguir expostos.
A determinação dos benefícios frente aos custos sociais
Apesar de resguardar-se em não esbravejá-la, a consubstanciada asserção, imanente aos grupos sociais (mesmo em caso de se considerar os que exaltam as liberdades individuais) ligada ao valor de coletividade sobrepujando o individual.
A contribuição da obra, como afirmam seus autores, ipsis litteris, é postura paradigmática que: “Coloca em destaque a interação entre os condicionantes privados da decisão de apresentar denúncia de prática anticompetitiva e os custos sociais envolvidos na atuação do sistema de defesa da concorrência.”
Asseverar-se-ia, assim, contribuição deveras particular, ainda que específica para a pesquisa a ser desenvolvida (pelo que se exaltaria sua contribuição), mas que, apartada dessas peculiaridades bem determinadas, mantém-se, ainda, digna de confiança ao estabelecer, objetivamente, método de determinação dos custos/benefícios sociais ao se punir ou não determinada prática que afronte a norma.
Admite-se, então, o seguinte:
P = probabilidade de punir determinada prática denunciada;
K = custos sociais processuais;
F = ganho social com a eliminação da prática.
Consignando que um sistema deve ser eficiente: a) K deve ser sempre menor ou igual a F; e b) os benefícios sociais devem ser superiores aos custos sociais.
Até o momento, então, poder-se-ia estabelecer 2 (dois) critérios para a determinação do valor da utilidade, o qual se extrai da relação custo/benefício em manter ou punir determinados atos. A saber:
1º - o valor da utilidade está no bem para o coletivo social, ou seja, privilegiam-se os benefícios coletivos aos individuais;
2º - por analogia aos trabalhos de Franceschini, bem como por dedução lógica, não é necessária a determinação de valores exatos de custo ou benefício em punir ou não certos comportamentos, mas, apenas, a constatação de relação de proporcionalidade entre eles em que se configure superioridade do benefício sobre o custo. A conseqüência lógica é a punição ou não da prática ilícita atrelando-a ao benefício social superior (valor da utilidade que se busca).
A verificação dos benefícios e custos, portanto, deve ser o mais ampla possível, executada por pessoal técnico capacitado, incluindo, por exemplo, nos benefícios, as ações judiciais que a coletividade poderia mover pela exposição de uma prática condenada. Contudo, não deve integrar a determinação do benefício/custo a especulação pretérita ou futura sem elementos fundantes razoáveis. Obtém-se, então, um terceiro critério:
3º - in casu, a averiguação do valor da utilidade, pela comprovação proporcional custo/benefício sobredita, deverá estar atrelada só ao tecnicamente demonstrável, resguardadas as especulações de incerteza tanto para o passado quanto para o futuro, a qual deverá ser executada pelo autorizado (competente) pela norma.
Conclusão sob a Perspectiva econômica
Pelo sistema exposto, bem como suas restrições, as quais admitir-se como pressuposto de sua existência em albergar o Acordo de Leniência, a análise e sua aplicação no mundo material, pelo viés do Direito Econômico, parece estar devidamente autorizado e pertinente.
A determinação de parâmetros genéricos e estáveis (ainda que não consistam em critérios exatos, mas variáveis conectas ao caso concreto) é decorrência a natureza mutável da ordem econômica, que não poderá estar vinculada a determinado comando legal, o qual não poderá, muitas vezes, acompanhar a flexibilidade e rapidez do mundo econômico.
Mas como ficaria o positivismo Kelseniano? Basta que o acordo seja enxergado como àquela delimitação de preceitos constitucionais em razão de fatores sócio-econômicos, objetivados pela pesquisadora ao adotar o utilitarismo. A legitimidade do acordo, neste contexto, seria oriunda da norma fundamental que a autoriza, que por sua vez é delimitada segundo o interesse coletivo instrumentalizado de forma objetiva pela regra da razão).
Observe que esse posicionamento não afronta ao positivismo kelseniano, enquanto razão de construção daquele, que poderá interiorizar a regra da razão.
Sinteticamente, conclui-se que o sistema jurídico normativo adequado a contemplar o Acordo de Leniência pode se caracterizar pela existência de uma norma autorizatória, validade, legitimidade, obrigatoriedade, valor da utilidade (coletivo social), custo/benefício que determinam punibilidade e a proporcionalmente do benefício deverá ser sempre superior ao custo.
[1] Art. 86. O Cade, por intermédio da Superintendência-Geral, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de 1 (um) a 2/3 (dois terços) da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte:
I - a identificação dos demais envolvidos na infração; e
II - a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação.
§ 1o O acordo de que trata o caput deste artigo somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
I - a empresa seja a primeira a se qualificar com respeito à infração noticiada ou sob investigação;
II - a empresa cesse completamente seu envolvimento na infração noticiada ou sob investigação a partir da data de propositura do acordo;
III - a Superintendência-Geral não disponha de provas suficientes para assegurar a condenação da empresa ou pessoa física por ocasião da propositura do acordo; e
IV - a empresa confesse sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.
§ 2o Com relação às pessoas físicas, elas poderão celebrar acordos de leniência desde que cumpridos os requisitos II, III e IV do § 1o deste artigo.
§ 3o O acordo de leniência firmado com o Cade, por intermédio da Superintendência-Geral, estipulará as condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo.
§ 4o Compete ao Tribunal, por ocasião do julgamento do processo administrativo, verificado o cumprimento do acordo:
I - decretar a extinção da ação punitiva da administração pública em favor do infrator, nas hipóteses em que a proposta de acordo tiver sido apresentada à Superintendência-Geral sem que essa tivesse conhecimento prévio da infração noticiada; ou
II - nas demais hipóteses, reduzir de 1 (um) a 2/3 (dois terços) as penas aplicáveis, observado o disposto no art. 45 desta Lei, devendo ainda considerar na gradação da pena a efetividade da colaboração prestada e a boa-fé do infrator no cumprimento do acordo de leniência.
§ 5o Na hipótese do inciso II do § 4o deste artigo, a pena sobre a qual incidirá o fator redutor não será superior à menor das penas aplicadas aos demais coautores da infração, relativamente aos percentuais fixados para a aplicação das multas de que trata o inciso I do art. 37 desta Lei.
§ 6o Serão estendidos às empresas do mesmo grupo, de fato ou de direito, e aos seus dirigentes, administradores e empregados envolvidos na infração os efeitos do acordo de leniência, desde que o firmem em conjunto, respeitadas as condições impostas.
§ 7o A empresa ou pessoa física que não obtiver, no curso de inquérito ou processo administrativo, habilitação para a celebração do acordo de que trata este artigo, poderá celebrar com a Superintendência-Geral, até a remessa do processo para julgamento, acordo de leniência relacionado a uma outra infração, da qual o Cade não tenha qualquer conhecimento prévio.
§ 8o Na hipótese do § 7o deste artigo, o infrator se beneficiará da redução de 1/3 (um terço) da pena que lhe for aplicável naquele processo, sem prejuízo da obtenção dos benefícios de que trata o inciso I do § 4o deste artigo em relação à nova infração denunciada.
§ 9o Considera-se sigilosa a proposta de acordo de que trata este artigo, salvo no interesse das investigações e do processo administrativo.
§ 10. Não importará em confissão quanto à matéria de fato, nem reconhecimento de ilicitude da conduta analisada, a proposta de acordo de leniência rejeitada, da qual não se fará qualquer divulgação.
§ 11. A aplicação do disposto neste artigo observará as normas a serem editadas pelo Tribunal.
§ 12. Em caso de descumprimento do acordo de leniência, o beneficiário ficará impedido de celebrar novo acordo de leniência pelo prazo de 3 (três) anos, contado da data de seu julgamento.
Art. 87. Nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, a celebração de acordo de leniência, nos termos desta Lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência.
Parágrafo único. Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes a que se refere o caput deste artigo.
[2] “Intenso, longo, certo, frutuoso, puro – Tais marcos no prazer e na dor subsistem.
Tais prazeres busque, se privado for o fim: Se publico, sabedoria deixa-os se difundirem.
Tais dores evite, qualquer que seja a razão: Se a dor deve vir, deixe-a abranger poucos.”
Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília, especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes e especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Econômico, pela Universidade de Brasília. Exerce o cargo de Procuradora Federal desde 2006.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIVIA CARDOSO VIANA GONçALVES, . O Acordo de Leniência à luz do Normativismo Kelseniano e da Filosofia Utilitarista Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 abr 2014, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38960/o-acordo-de-leniencia-a-luz-do-normativismo-kelseniano-e-da-filosofia-utilitarista. Acesso em: 23 dez 2024.
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