INTRODUÇÃO
Versa o presente estudo sobre a possibilidade, ou não, de pagamento de serviços efetivamente prestados por empresas contratadas pela Administração Pública que encontram-se em situação de irregularidade no SICAF e no CAUC.
DESENVOLVIMENTO
O SICAF é um registro unificado de fornecedores que tem como fim o cadastramento e habilitação de pessoas físicas ou jurídicas que desejam participar de licitações promovidas pelos Órgãos e Entidades da Administração Pública Federal, bem como acompanhar o desempenho dos fornecedores cadastrados e ampliar as opções do Governo Federal, visando a desburocratização e transparência do processo de cadastramento e habilitação parcial.
O instituto foi introduzido no ordenamento jurídico pela Instrução Normativa MARE nº 5, de 21 de julho de 1995, posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 3.722, de 09 de janeiro de 2001, a fim de dar cumprimento ao que dispõe o artigo 34, da Lei de Licitações e Contratos[1].
Referida Instrução Normativa dispõe que:
8.7. Quando das licitações, dispensa ou inexigibilidade deverá necessariamente, ser consultado, "ON-LINE", o SICAF, com vistas a instruir o respectivo processo relativamente à situação do licitante, para fins de sua habilitação nos termos dos artigos 27 a 32, da Lei n° 8.666/93.
(...)
8.8. Idêntica consulta deverá ser realizada previamente à contratação e antes de cada pagamento a ser feito para o fornecedor, devendo seu resultado ser impresso e juntado, também, aos autos do processo próprio.
(original sem grifos)
Da leitura dos dispositivos mencionados verifica-se que a única exigência referente ao pagamento é a realização de uma prévia consulta para fins de instrução do processo, com vistas à regularização das condições habilitatórias da empresa contratada. É de se observar que em momento algum a IN impõe a proibição de se realizar a efetuação de pagamento a quem se encontre suspenso ou inativo junto ao SICAF.
Assim, qualquer cláusula contratual que preveja a suspensão de pagamento até a regularização da situação de irregularidade no SICAF é ilegal, por não encontrar amparo na legislação que regulamenta o tema.
Ao revés, o que prevê a legislação é a vedação à retenção de pagamento, salvo ressalvas expressamente previstas. Nesse sentido dispõe os artigos 34 – A e 36, § 6º, da Instrução Normativa nº 3, de 15 de outubro de 2009, da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, que dispõe sobre regras e diretrizes para contratação de serviços, continuados, ou não, vejamos:
Art. 34 – A. O descumprimento das condições trabalhistas ou a não manutenção das condições de habilitação pelo contratado, deverá dar ensejo à rescisão contratual, sem prejuízo das demais sanções, sendo vedada a retenção de pagamento se o contratado não incorrer em qualquer inexecução do serviço ou não o tiver prestado a contento.
Parágrafo Único: A Administração poderá conceder um prazo para que a contratada regularize suas obrigações trabalhistas ou suas condições de habilitação, sob pena de rescisão contratual, quando não identificar má-fé ou incapacidade da empresa de corrigir a situação.
Art. 36 (...)
§ 6º A retenção ou glosa no pagamento, sem prejuízo das sanções cabíveis, só deverá ocorrer quando o contratado:
I - não produzir os resultados, deixar de executar ou não executar com a qualidade mínima exigida as atividades contratadas; ou
II – deixar de utilizar materiais e recursos humanos exigidos para a execução do serviço, ou utilizá-los com qualidade ou quantidade inferior à demandada.
Note-se que a normatização referente ao tema exige a prévia comunicação à empresa contratada para que esta tenha oportunidade de sanar a irregularidade antes que o contrato venha a ser eventualmente rescindido.
A regra pretende dar cumprimento ao princípio da proporcionalidade, de forma a identificar a providência menos onerosa ao interesse estatal e aos valores tutelados pela ordem jurídica. Realmente, não haveria sentido em se estabelecer uma solução por demais rigorosa para hipóteses de irregularidade sanável, em que a ocorrência de evento perfeitamente suprível viesse a ser considerada como causa automática para a rescisão do contrato.
Desse modo, nas contratações efetuadas pela Administração, não há que falar em suspensão de pagamento à empresa contratada por irregularidade perante o SICAF, notadamente no que tange ao repasse de valores decorrentes de serviços já executados, até porque, agir de modo contrário, configuraria enriquecimento ilícito por parte da Administração Pública.
Na hipótese de registro no SICAF, a Administração poderá comunicar ao órgão competente a existência de irregularidade para serem adotadas as providências adequadas. A retenção de pagamentos, pura e simplesmente, caracterizará ato abusivo, passível de ataque inclusive através de mandado de segurança, o que, em abstrato, pode acarretar a interrupção, ou, em casos, mais extremos, a rescisão do contrato pelo particular.
Com efeito, é cediço que a Administração, em face do regime jurídico público ao qual está submetida, apresenta vantagens em relação ao contratado, consubstanciadas nas chamadas “cláusulas exorbitantes contratuais”. Todavia, entende-se que tais prerrogativas não podem se sobrepor aos princípios balizadores da própria atividade estatal, tais como os postulados da indisponibilidade do serviço público e continuidade do serviço público, que servem como corolários da própria legalidade restrita à qual o administrador está vinculado.
Como se sabe, os serviços públicos são prestados no interesse da população, sob regime de direito público, não sendo adequada a sua interrupção, sob pena de ferir os interesses da coletividade e da própria Administração Pública. Nesse sentido, o legislador ordinário, ao elaborar a Lei nº 8.987/95, que regulamenta a prestação de serviços públicos, definiu, no § 1º do artigo 6º do mencionado instrumento legislativo, serviço adequado como sendo aquele que atenda ao requisito da continuidade[2].
Nessa linha, entende-se que a retenção de pagamentos devidos pela Administração, pode dar ensejo à suspensão, ou até mesmo, rescisão contratual, pelo contratado, impedindo a continuidade do serviço prestado.
Isso porque, o princípio da exceção do contrato não cumprido (“excepctio non adimpleti contractus”), positivado no artigo 476 do Código Civil[3], embora tenha aplicação restrita e mitigada no âmbito do direito público, pode incidir em algumas situações excepcionais expressamente previstas em lei[4]. Vale dizer, portanto, que, nesses casos, o contratado pode se recusar a cumprir sua obrigação enquanto não satisfeita a da Administração, que, no caso, consubstancia-se no pagamento referente aos serviços prestados.
Nesse sentido é o teor do inciso XV do artigo 78 da Lei 8.666/93, que assim dispõe:
Art. 78. Constituem motivo para a rescisão do contrato:
(...)
XV – o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destas, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normatizada a situação”.
Dessa forma, verifica-se que na hipótese de atraso de pagamento pela Administração por mais de 90 dias pode o contratado suspender, ou, até mesmo rescindir o contrato. Pela relevância do tema, cumpre trazer à baila trecho da lição de Marçal Justen Filho[5], vejamos:
É destituído de qualquer razoabilidade afirmar que o inadimplemento da Administração não acarretaria qualquer consequência. Isso representa negar a eficácia do princípio da legalidade e liberar a Administração para adotar condutas arbitrárias. É incompatível com o Estado Democrático de Direito. Além das severas punições aos agentes administrativos responsáveis pela infringência à lei, a Administração está obrigada a reparar estritamente todas as suas consequências de sua inadimplência.
(...)
A Lei nº. 8.666 autorizou a recusa do particular a cumprir seus deveres. Na legislação anterior, a situação era diversa e o contrato deveria ser executado normalmente.
Pelos mesmos motivos indicados a propósito do limite temporal para suspensão da execução do contrato, a lei impõe limite para o atraso no pagamento. O prazo se computa a partir do termo final para pagamento normal pela Administração. Para evitar dificuldades, o particular deve formalizar a exigência de pagamento e anunciar a suspensão da execução do contrato, reportando-se ao instante em que se iniciou o prazo do inc. XV.
A rescisão contratual não libera a Administração dos encargos de responder pela importância em atraso e pelas perdas e danos devidos. O efeito prático reside em dispensar o particular dos encargos ainda vigentes, especialmente a continuidade da execução da prestação. Mas o particular não ficará liberado no tocante a defeitos na prestação realizada. A Administração poderá exigir que o particular substitua a prestação defeituosa ou corrija os vícios existentes.
(...)
O particular pode optar por não invocar a previsão em tela. Não é obrigatória a rescisão. Se o desejar, o particular pode dar seguimento à execução do contrato, ainda que isso importe ampliação dos encargos em atraso. Poderá, também, suspender a execução dos serviços”.
Assim, a retenção ilegal, vale dizer, aquela sem respaldo na legislação ou referente a serviços já entregues, pode dar ensejo à aplicação do referido dispositivo, pois, nesses casos, o não pagamento configura mora da Administração na quitação das obrigações devidas e inadimplemento contratual.
A redação do mencionado art. 78, XV, da Lei nº 8.666/93 é taxativa ao prever que somente os pagamentos realizados em atraso permitem a suspensão e rescisão do contrato pelo contratado. Seguindo essa linha, é razoável considerar que os pagamentos ilegalmente retidos são considerados pagamentos não feitos, ou feitos em atraso, o que configura mora da Administração Pública, nos termos do art. 394 do Código Civil Brasileiro[6], que considera em mora o devedor que não efetuar o pagamento no tempo, lugar e forma que a lei, ou convenção, estabelecer.
CONCLUSÃO
Feita essa abordagem a respeito das regras vigentes, conclui-se que é ilegal a retenção de pagamentos devidos pela Administração, por verificação de irregularidade do contratado ou beneficiário no SICAF, sob pena de configuração de enriquecimento ilícito da Administração e violação dos princípios da indisponibilidade do interesse público e da continuidade do serviço público.
[1] Art. 34, “caput”, da Lei 8.666/93: “Para os fins desta Lei, os órgãos e entidades da Administração Pública que realizarem freqüentemente licitações manterão registros cadastrais para efeito de habilitação, na forma regulamentar, válidos por, no máximo, um ano”.
[2] Art. 6º, da Lei nº 8.987/1995. “Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”.
[3] Art. 476 do Código Civil Brasileiro: “Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”.
[4] Art. 54, Lei 8.666/93: “Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado”.
[5] “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, 13ª edição, páginas 822/823.
[6] Art. 394 do Código Civil: “Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer”.
Procurador-Chefe Nacional do DNIT. Pós-graduado em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Tiago Coutinho de. Possibilidade de pagamento de serviços prestados à Administração Pública por empresas cadastradas no SICAF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 abr 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39042/possibilidade-de-pagamento-de-servicos-prestados-a-administracao-publica-por-empresas-cadastradas-no-sicaf. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.