Resumo: aborda-se a relação entre o Direito Administrativo – no que refere aos atos normativos editados para o desempenho da função administrativa – e os modelos de administração gerencial e burocrática. São analisadas, também, as figuras jurídicas concebidas pelo ordenamento jurídico como instituições da sociedade civil que atuam em colaboração com o Estado, em espaços originariamente ocupados pelo Poder Público.
Palavras-chave: Direito; Administração; Estado; Terceiro Setor; sociedade.
O modelo de Administração burocrática preconizado por Max Weber consubstancia-se numa reação às práticas verificadas no momento histórico que lhe precede, marcado pelo assenhoramento da coisa pública pelos detentores do poder. Daí ACUNHA afirmar que o “modelo burocrático visava, em suma, a defender a sociedade contra o poder arbitrário. Não é possível entendê-lo sem que se tenha em mente o patrimonialismo anterior.” (2012, p. 28).
Assim, a administração burocrática é marcada por uma veemente preocupação em se controlar as pessoas que participam dos negócios do Estado, sejam os servidores públicos e os agentes políticos, sejam os particulares que mantém alguma forma de relacionamento com a Administração. Em suma, para preservar o patrimônio público e garantir a correta utilização dos recursos públicos arrecadados no seio da sociedade, é necessário, antes, controlar as pessoas que possuem alguma forma de ingerência sobre esses bens.
O arquétipo idealizado por Weber pode ser definido como um modelo de dominação racional-legal, ou seja, é estruturado em procedimentos formais descritos em atos normativos de caráter geral e abstrato, que estabelecem as competências que devem ser exercidas pelo agente no desempenho da função pública inerente ao cargo que ocupa, competências essas sujeitas a um rígido controle hierárquico, com previsão de sanções para o caso de descumprimento ou desvirtuamento de seus mandamentos.
Citando Weber, MARTINS (2012, p. 20), elenca o que seriam as características do modelo burocrático indicadas pelo sociólogo alemão, que podem ser assim sintetizadas: a) todo o direito deve ser estabelecido de modo racional e observado por todos os membros da comunidade; b) o direito deve ser estruturado em normas gerais e abstratas aplicadas pelo órgão (judicatura) com competência para tal; c) que todos, inclusive os detentores do poder político (soberano), obedeçam aos mandamentos do direito; d) que os membros da comunidade obedeçam tão somente às normas de direito, e não as ordens pessoais do soberano, ressalvadas aquelas que estejam em conformidade com ordenamento jurídico; e) que o cargo público não pertence ao funcionário, que apenas o ocupa na medida em que deve realizar as respectivas funções segundo a forma e o limite designados pelo direito.
Os controles estatuídos na Constituição podem ser visualizados em dois planos: os que se destinam aos agentes políticos e os que referem aos servidores estatutários. Em relação aos servidores públicos, têm-se as disposições veiculadas nos artigos 37 e seguintes da Constituição Federal, tais como a previsão de concurso público de provas ou de provas e títulos como requisito para investidura em cargo público efetivo, forma e limite da remuneração, regra de proibição de acumulação de cargos públicos, estabilidade no serviço público, prescrição da ação de ressarcimento ao erário em razão de ato ilícito, entre outros, bem como a previsão de um Tribunal de Contas autônomo, com competência para fiscalizar os atos relacionados à execução da despesa praticados pelos gestores públicos, a exigência de licitação para realização de compras e contratações de serviços pela Administração, etc.
Quanto aos agentes políticos, pode-se citar as regras referentes ao processo eleitoral para escolha dos ocupantes dos cargos eletivos, o dever do Chefe do Executivo de prestar contas e sua respectiva apreciação pelo Congresso Nacional com auxílio do Tribunal de Contas da União (esfera federal), as regras relativas a uma responsável execução orçamentária, além de outras fórmulas relacionadas aos mecanismos de freios e contrapesos, tais como o veto do Executivo aos projetos de Lei, a indicação pelo Executivo dos membros do STF, e a respectiva aprovação pelo Legislativo, etc.
O modelo burocrático trouxe significativos avanços para a Administração Pública brasileira. Dentre eles, promoveu a profissionalização do serviço público e contribuiu para uma melhor compreensão do significado da expressão “patrimônio público”. Conforme registra ACUNHA (2012, p. 28), o arranjo weberiano significou “um flagrante avanço em relação a práticas anteriores (coronelismo, clientelismo), que, obviamente, não foram eliminadas, mas encontraram nos princípios de organização burocrática seu primeiro contraponto efetivo na gestão da coisa pública no Brasil.”
Contudo, o imenso aparato criado pela burocracia tornou-se um fim em si mesmo. Era necessário pensar uma Administração na qual “o que se faz” seja mais importante do que o “como se faz”. Era preciso abandonar a desconfiança em prol do estabelecimento de uma fidúcia nas pessoas que de alguma forma se relacionam com o Estado. Descentralizam-se as decisões para obter uma gestão mais dinâmica e eficiente. Eficiência: essa é a palavra de ordem. “À avaliação sistemática, à recompensa pelo desempenho, e à capacitação permanente, que já eram características da boa administração burocrática, acrescentam-se os princípios da orientação para o cidadão cliente, do controle por resultados, e da competição administrada.” (BRASIL: 1995, ).
O marco temporal da Reforma Administrativa é a Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998. Por meio dela inseriu-se a “eficiência” no rol dos princípios que regem a Administração Pública, conforme se verifica na atual redação do artigo 37, caput, da Constituição Federal. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2005, p. 84), o princípio da eficiência possui duas facetas. Uma refere-se ao agente público, que deve se dedicar para realizar a função pública que lhe é confiada com seriedade e comprometimento, de forma a alcançar os melhores resultados. A outra está relacionada à própria organização da Administração, que deve ser estruturada sempre com o objetivo de melhor servir à sociedade.
A mesma Emenda Constitucional nº 19 também tratou de uma série de outras medidas relacionadas aos agentes públicos, inclusive no que tange ao limite de despesas com pessoal, à forma de criação de empresas públicas, seu funcionamento e administração, e as formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade, entre outras, que visam a uma profunda alteração da forma de gestão administrativa então praticada, mediante a descentralização das instâncias decisórias e o estabelecimento de uma maior autonomia às entidades administrativas.
É nesse cenário que surgem as agências executivas, as agências reguladoras, os contratos de gestão, firmados entre entidades administrativas ou entre o Poder Público e pessoas jurídicas privadas, as denominadas “organizações sociais”, e, também, os termos de parceria firmados entre a Administração e as “organizações da sociedade civil de interesse público”.
Em relação aos servidores públicos, são inspiradas no modelo de administração gerencial as disposições normativas relacionadas ao estágio probatório, a instituição de remuneração por produtividade – as gratificações de desempenho –, a capacitação profissional como requisito para promoções na carreira, etc.
Assim, no modelo de administração gerencial busca-se substituir o critério da aplicação inflexível do regramento positivado por uma fórmula em que a atividade administrativa seja guiada pela perseguição de metas e objetivos pré-estabelecidos, mediante a realização de tarefas e a mensuração dos respectivos resultados.
Não obstante os avanços empreendidos pelos idealizadores da denominada “Reforma Administrativa”, fato é que se verifica na Administração Pública brasileira características de vários modelos de gestão. Conforme acentua ACUNHA (2012, p. 30), “[É] certo que inovações gerenciais de dinamização convivem com fundamentais institutos burocráticos (profissionalização, concurso, legalidade) e com indesejáveis resquícios de patrimonialismo”.
Em contrapartida, a sociedade contemporânea exige uma Administração dinâmica, eficiente, conduzida por profissionais qualificados, capaz de atender às demandas complexas da pós-modernidade. Conforme anotou José dos Santos Carvalho Filho (2012: p. 347), “as antigas fórmulas vêm indicando que o Estado, com o perfil que vinha adotando, envelheceu. Para enfrentar as vicissitudes decorrentes da adequação aos novos modelos exigidos para melhor execução de suas atividades, algumas providências têm sido adotadas e outros rumos foram tomados”.
É nesse contexto que surgem as entidades do denominado “Terceiro Setor”, conceituadas por Hely Lopes Meirelles (2012: p. 430) como “pessoas jurídicas de Direito Privado dispostas paralelamente ao Estado, ao lado do Estado, para executar cometimentos de interesse do Estado, mas não privativos do Estado.” Dentre as espécies de entidades que se enquadram nessa nomenclatura, há consenso na doutrina em relação às Organizações Sociais, tratadas na Lei nº 9.637/98, e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, de que cuida a Lei nº 9.790/99. Atendidos os requisitos legais, o Estado celebrará contrato de gestão com a primeira, e Termo de Parceria com a segunda. Como é fácil intuir, não se tratam de novas entidades administrativas criadas pelo Estado, mas apenas a outorga de status, acompanhado de determinadas facilidades, às pessoas jurídicas privadas criadas pela sociedade civil, que atendam aos requisitos estabelecidos em Lei.
Sobre o controle da atividade, o contrato de gestão firmado entre a Administração e as organizações sociais, bem como a execução do objeto do Termo de Parceria firmado com as OSCIPs, terão sua execução fiscalizada pelo órgão ou entidade púbica supervisora da respectiva área de atuação. Além disso o Estado participará do Conselho de Administração da entidades classificadas como organizações sociais. Em relação a ambas as figuras jurídicas, OS e OSCIP, cabe ao Ministério Público e à Advocacia-Geral da União as medidas judiciais vocacionadas à defesa dos bens e recursos públicos porventura geridos por tais entidades privadas, aplicando-se, da mesma forma, as disposições da Lei de Improbidade Administrativa.
Os benefícios porventura advindos dessa transferência de atividades não são aceitos pela unanimidade dos administrativistas pátrio. Celso Antônio Bandeira de Mello (2010: p. 223), com sua autorizada desconfiança, afirma que “Terceiro Setor é outra inventiva da criatividade dos administradores ou economistas do período do apogeu do neoliberalismo”, e que as respectivas figuras jurídicas, como as organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público, na condição de “componentes de uma pretensa reforma administrativa, são expressões de um movimento impulsionado pelo neoliberalismo”, que por sua vez pretendendo “a submersão do Estado Social de Direito, apresenta-o como praticante de um intervencionismo exacerbado, incompetente e economicamente inviável, propondo, então, uma ‘Reforma de Estado’.”
Outra espécie de entidade que pode ser classificada no “Terceiro Setor” são as organizações não governamentais, as ONG’s, que se afirmam desvinculadas do Estado, não obstante algumas receberem incentivos de organismos financeiros internacionais, que por sua vez estariam a serviço dos interesses de determinadas nações soberanas. STUTZ e BITTENCOURT FILHO (2012: p. 1-5, passim) denunciam que muitas dessas entidades “mobilizam pessoas para que produzam à margem, e não para que lutem pelo controle dos meios básicos de produção e de riqueza”. 0s autores citam ainda que o neoliberalismo atua também no âmbito político-cultural, por meio a promoção de organizações comunitárias de base, e promovem um discurso fundado numa ideologia antiestatal. “Bem intencionadas” no inicio (1970), disfarçadas de “defensoras de direitos humanos”, tais entidades se multiplicam no âmago da sociedade, mediante financiamento de dirigentes neoliberais. Assim, os “programas sociais” promovidos por essas entidades visam, em último plano, substituir a ação estatal. Os supostamente beneficiados pelas ações de auto-ajuda, tornam-se desinteressados pelos assuntos do Estado e pela política em geral. O povo, apático, não se mobilizaria para promover as alterações substanciais e estruturais que a sociedade necessita. O resultado, entre outros malefícios, seria uma quase extinção dos direitos trabalhistas e a descaracterização da coisa pública.
A verdade é que a invasão do espaço público pelo privado só ocorrerá em contextos em que o Estado se fizer omisso, negligenciando sua função primordial de promover o bem comum.
Da mesma forma que, no contexto administrativo, a apropriação do público pelo privado ocorrerá onde se fizerem ausentes instrumentos de controle, que devem ser instituídos pelo ordenamento jurídico e instrumentalizados pelos órgãos e entidades responsáveis pelo desempenho dessa função. Daí a necessidade de se combinar os modelos de administração gerencial e burocrático, visando uma fórmula teoricamente ideal, que embora inalcançável, em razão da dinâmica própria das exigências que a sociedade apresenta à Administração, não pode jamais deixar de ser perseguida.
Lembrando a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, o Direito Administrativo, que instrumentaliza o agir da Administração, não deve ser visto como “um direito aglutinador de poderes desfrutáveis pelo Estado em sua feição administrativa, ao invés de ser considerado como efetivamente é, ou seja, como um conjunto de limitações aos poderes do Estado ou, muito mais acertadamente, como um conjunto de deveres da Administração em face dos administrados” (BANDEIRA DE MELLO: 2010, p. 43).
Por derradeiro, não se pode perder de vista que os negócios do Estado e, por conseguinte, da Administração Pública, interessam a toda sociedade, não se restringindo, pois, aos agentes públicos. Cabe à comunidade fazer uso dos instrumentos de participação popular disponibilizados pelo ordenamento jurídico.
Referências:
ACUNHA, Fernando José Gonçalves. A Administração Pública brasileira no contexto do Estado Democrático de Direito. Brasília: CEAD/UnB, 2012.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
BRASIL: Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, 1995.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.
MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. A Noção de Administração Pública e os Critérios de sua Atuação. Brasília: CEAD/UnB, 2012.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
STUTZ, Eneá de. BITTENCOURT FILHO, Almeida José. Reflexões Jurídico-Sociológicas – Duas perspectivas de transformação social. Brasília: CEAD/UnB, 2012.
Procurador Federal. Bacharel em Direito e em Ciências Contábeis<br>Especialista em Direito Público e em Direito Processuaà l Civil. MBA em Gestão Pública.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RORIZ, Rodrigo Matos. O Direito Administrativo e os modelos de Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 abr 2014, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39048/o-direito-administrativo-e-os-modelos-de-administracao-publica. Acesso em: 23 dez 2024.
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