I) Introdução
A regra geral comumente difundida pela doutrina assegura a impossibilidade de bloqueio de verbas públicas, com fundamento em normas de direito orçamentário e de direito administrativo, ressalvadas as hipóteses expressamente previstas no ordenamento jurídico.
Ocorre, porém, que algumas situações demonstram a necessidade de o Poder Judiciário não aplicar essas normas no caso concreto, conferindo observância a outros princípios de estatura constitucional, sob pena de denegação da própria tutela jurisdicional e do efetivo acesso à justiça.
Nesse sentido, revela-se bastante importante o recente entendimento consignado pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do Recurso Especial nº 1.069.810, julgado sob o rito do art. 543-C, do Código de Processo Civil.
II) Desenvolvimento
À luz do ordenamento jurídico pátrio, não é concebível, em regra, o bloqueio de verbas públicas para o cumprimento de decisões judiciais. Tal raciocínio afigura-se essencial para que a Administração Pública possa cumprir suas políticas públicas e haja respeito às normas de direito administrativo e de direito orçamentário.
Sucede, contudo, que há situações nas quais o descumprimento da ordem judicial pode acarretar lesões tão graves ao jurisdicionado que é preciso sopesar aquela garantia estabelecida para a Fazenda Pública com outras normas de envergadura constitucional, a fim de aplicar o direito à espécie.
É bastante comum na praxe forense o ajuizamento de ações judiciais cujo objeto consista no fornecimento de medicamentos pela Fazenda Pública. Nesses processos, em alguns casos, constata-se que o ente estatal deixa de cumprir ordens judiciais que determinam o fornecimento da medicação, o que é alvo de frequentes embates nos tribunais, em razão de constantes pedidos de bloqueio de verbas públicas.
O Superior Tribunal de Justiça possui julgados contrários ao bloqueio de verbas públicas nesses casos, conforme excerto a seguir transcrito:
PROCESSUAL CIVIL. TUTELA ANTECIPADA. MEIOS DE COERÇÃO AO DEVEDOR (CPC, ARTS. 273, §3º E 461, §5º). FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS. IMPOSSIBILIDADE. 1. É cabível, inclusive contra a Fazenda Pública, a aplicação de multa diária (astreintes) como meio coercitivo para impor o cumprimento de medida antecipatória ou de sentença definitiva de obrigação de fazer ou entregar coisa, nos termos dos artigos 461 e 461A do CPC. Nesse sentido é a jurisprudência do STJ, como se pode verificar, por exemplo, nos seguintes precedentes: AgRg no Ag 646240/RS, 1ª T., Min. José Delgado, DJ de 13.06.2005; RESP 592132/RS, 5ª T., Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ de 16.05.2005; AgRg no RESP 554776/SP, 6ª T., Min. Paulo Medina, DJ de 06.10.2003; AgRg no REsp 718011/TO, 1ª Turma, Min. José Delgado, DJ de 30.05.2005. 2. Todavia, não se pode confundir multa diária (astreintes), com bloqueio ou seqüestro de verbas públicas. A multa é meio executivo de coação, não aplicável a obrigações de pagar quantia, que atua sobre a vontade do demandado a fim de compeli-lo a satisfazer, ele próprio, a obrigação decorrente da decisão judicial. Já o seqüestro (ou bloqueio) de dinheiro é meio executivo de sub-rogação, adequado a obrigação de pagar quantia, por meio do qual o Judiciário obtém diretamente a satisfação da obrigação, independentemente de participação e, portanto, da vontade do obrigado. 3. Em se tratando da Fazenda Pública, qualquer obrigação de pagar quantia, ainda que decorrente da conversão de obrigação de fazer ou de entregar coisa, está sujeita a rito próprio (CPC, art. 730 do CPC e CF, art. 100 da CF), que não prevê, salvo excepcionalmente (v.g., desrespeito à ordem de pagamento dos precatórios judiciários), a possibilidade de execução direta por expropriação mediante seqüestro de dinheiro ou de qualquer outro bem público, que são impenhoráveis. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, improvido. (STJ. 1ª Turma. REsp 770.295. Rel. Min. Teori Albino Zavascki. Publicado no DJ de 10/10/05 – grifou-se).
Nesse mesmo sentido já se manifestou o Tribunal Regional Federal da 5ª Região[1]:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. 1. Agravo de instrumento manejado contra decisão em ação civil pública, na qual o representante do Ministério Público Federal pretende obter pronunciamento judicial que garanta o fornecimento do medicamento LARONIDASE (ALDURAZYME), enquanto não disponível no mercado nacional, nos quantitativos que se façam necessários, de acordo com prescrição médica, para o tratamento da menor. Determinou a decisão agravada o bloqueio da quantia de R$ 58.572,00 (cinqüenta e oito mil, quinhentos e setenta e dois reais), solidariamente, das contas do Estado do Rio Grande do Norte e da União, quantia essa necessária para a compra do medicamento supramencionado. 2. Esta Eg. Terceira Turma tem entendimento pacífico no sentido de que há responsabilidade solidária da União, Estados e Municípios para fornecimento de medicamentos. 3. Com efeito, a recalcitrância da Administração ensejou a interrupção do tratamento da menor, configurando a um só tempo desrespeito à dignidade da pessoa humana além de descumprimento de ordem judicial. 4. No entanto, inexiste previsão legal que empreste esteio à determinação judicial do bloqueio em comento. Sob essa ótica, é duvidosa a compatibilidade da providência determinada de regras do ordenamento jurídico. 5. Agravo de instrumento provido. (TRF-5. 3ª Turma. AG 106.026. Autos nº 00058995120104050000. Rel. Des. Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima. Publicado no DJ de 06/07/2010).
Em vertente diametralmente oposta, há entendimento também do STJ que admite a possibilidade de bloqueio de verbas públicas em tais situações, conforme ementa a seguir colacionada:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO A PESSOA HIPOSSUFICIENTE. DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS. MEDIDA EXECUTIVA. POSSIBILIDADE, IN CASU. PEQUENO VALOR. ART. 461, § 5.º, DO CPC. ROL EXEMPLIFICATIVO DE MEDIDAS. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À SAÚDE, À VIDA E À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PRIMAZIA SOBRE PRINCÍPIOS DE DIREITO FINANCEIRO E ADMINISTRATIVO. 1. Recurso especial que encerra questão referente à possibilidade de o julgador determinar, em ação que tenha por objeto a obrigação de fornecer medicamentos a hipossuficiente portador de Cardiopatia hipertensiva, medidas executivas assecuratórias ao cumprimento de decisão judicial antecipatória dos efeitos da tutela proferida em desfavor de ente estatal, que resultem no bloqueio ou seqüestro de verbas deste depositadas em conta corrente. 2. Depreende-se do art. 461, §5.º do CPC, que o legislador, ao possibilitar ao juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas assecuratórias como a "imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial", não o fez de forma taxativa, mas sim exemplificativa, pelo que, in casu, o seqüestro ou bloqueio da verba necessária à aquisição dos medicamentos objetos da tutela deferida, providência excepcional adotada em face da urgência e imprescindibilidade da prestação dos mesmos, revela-se medida legítima, válida e razoável. 3. Deveras, é lícito ao julgador, à vista das circunstâncias do caso concreto, aferir o modo mais adequado para tornar efetiva a tutela, tendo em vista o fim da norma e a impossibilidade de previsão legal de todas as hipóteses fáticas. Máxime diante de situação fática, na qual a desídia do ente estatal, frente ao comando judicial emitido, pode resultar em grave lesão à saúde ou mesmo por em risco a vida do demandante. 4. Os direitos fundamentais à vida e à saúde são direitos subjetivos inalienáveis, constitucionalmente consagrados, cujo primado, em um Estado Democrático de Direito como o nosso, que reserva especial proteção à dignidade da pessoa humana, há de superar quaisquer espécies de restrições legais. Não obstante o fundamento constitucional, in casu, merece destaque a Lei Estadual n.º 9.908/93, do Estado do Rio Grande do Sul, que assim dispõe em seu art. 1.º: "Art. 1.º. O Estado deve fornecer, de forma gratuita, medicamentos excepcionais para pessoas que não puderem prover as despesas com os referidos medicamentos, sem privarem-se dos recurso indispensáveis ao próprio sustento e de sua família. Parágrafo único. Consideram-se medicamentos excepcionais aqueles que devem ser usados com freqüência e de forma permanente, sendo indispensáveis à vida do paciente." 5. A Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas. Destarte, na aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais, para os princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante da República que destina especial proteção a dignidade da pessoa humana. 6. Outrossim, a tutela jurisdicional para ser efetiva deve dar ao lesado resultado prático equivalente ao que obteria se a prestação fosse cumprida voluntariamente. O meio de coerção tem validade quando capaz de subjugar a recalcitrância do devedor. O Poder Judiciário não deve compactuar com o proceder do Estado, que condenado pela urgência da situação a entregar medicamentos imprescindíveis proteção da saúde e da vida de cidadão necessitado, revela-se indiferente à tutela judicial deferida e aos valores fundamentais por ele eclipsados. 7. In casu, a decisão ora hostilizada pelo recorrente importa na disponibilização em favor do recorrido da quantia de R$ 542,64 (quinhentos e quarenta e dois reais e sessenta e quatro centavos), que além de não comprometer as finanças do Estado do Rio Grande do Sul, revela-se indispensável à proteção da saúde do autor da demanda que originou a presente controvérsia, mercê de consistir em medida de apoio da decisão judicial em caráter de sub-rogação. 8. Por fim, sob o ângulo analógico, as quantias de pequeno valor podem ser pagas independentemente de precatório e a fotiori serem, também, entregues, por ato de império do Poder Judiciário. 9. Recurso especial desprovido. (STJ. 1ª Turma. REsp 735378. Rel. Min. Francisco Falcão. Publicado no DJ de 08/06/2006 – grifou-se).
Admitindo a possibilidade de bloqueio de verbas públicas nesses casos, confira-se, dentre outros: STJ, 1ª Turma, REsp 828.202, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 29/05/06; STJ, 1ª Turma, REsp 811.552, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 29/05/06; STJ, 2ª Turma, REsp 857.502, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 30/10/06; STJ, 1ª Seção, AEREsp 796.509, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 30/10/06; STJ, 2ª Turma, AGA 747.806, Rel. Min. Herman Benjamin, DJ de 18/12/07. Convém mencionar que o próprio ministro Teori Albino Zavacki modificou seu anterior entendimento transcrito acima, como se extrai dos autos do REsp nº 827.133, DJ de 29/05/06, no que foi acompanhado também por outros ministros daquela Corte.
A questão mereceu solução definitiva no âmbito do Superior Tribunal de Justiça a partir da recente decisão proferida nos autos do Recurso Especial nº 1.069.810, julgado sob a sistemática dos recursos repetitivos, prevista no art. 543-C, do Código de Processo Civil, que firmou entendimento no sentido da possibilidade de bloqueio de verbas públicas nessas situações excepcionais – quando se vislumbrar a urgência e imprescindibilidade de sua prestação[2] –, com fundamento legal no art. 461, §5º, do Código de Processo Civil, e amparo constitucional no direito fundamental à saúde:
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. ADOÇÃO DE MEDIDA NECESSÁRIA À EFETIVAÇÃO DA TUTELA ESPECÍFICA OU À OBTENÇÃO DO RESULTADO PRÁTICO EQUIVALENTE. ART. 461, § 5o. DO CPC. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADE CONFERIDA AO JULGADOR, DE OFÍCIO OU A REQUERIMENTO DA PARTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. ACÓRDÃO SUBMETIDO AO RITO DO ART. 543-C DO CPC E DA RESOLUÇÃO 08/2008 DO STJ.
1. Tratando-se de fornecimento de medicamentos, cabe ao Juiz adotar medidas eficazes à efetivação de suas decisões, podendo, se necessário, determinar até mesmo, o sequestro de valores do devedor (bloqueio), segundo o seu prudente arbítrio, e sempre com adequada fundamentação.
2. Recurso Especial provido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução 08/2008 do STJ.” (STJ. 1ª Seção. REsp 1.069.810/RS. Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho. Publicado no DJ de 06/11/2013 – grifou-se).
Dispõe o art. 461, §5º, do Código de Processo Civil, que:
“§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.”
O dispositivo legal supratranscrito confere ao juiz poderes gerais de efetivar e garantir o cumprimento de sua decisão judicial, figurando, portanto, como uma cláusula geral executiva, a partir da qual foram concedidos ao magistrado todos os meios necessários para o cumprimento da ordem por ele emanada.
Referido preceito legal alinha-se, no presente caso, com a imperativa aplicação do princípio da proporcionalidade. Segundo o entendimento prevalecente no Supremo Tribunal Federal, o princípio da proporcionalidade encontra-se implícito na Constituição da República, podendo ser extraído do devido processo legal em sua acepção substantiva.
O exame da proporcionalidade deve ser verificado em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação pressupõe a análise da relação entre meio e fim; o meio utilizado deve ser apto para alcançar ou promover o fim almejado. A necessidade traduz na constatação de que, diante de medidas igualmente eficazes para alcançar o fim almejado, deve-se optar por aquela que seja a menos gravosa possível, que cause a menor restrição possível ao direito fundamental. Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito relaciona-se à realização de um juízo de ponderação, consistente no sopesamento entre a intensidade da restrição aos direitos fundamentais envolvidos pela medida estatal e a importância que estes direitos fundamentais devem ostentar, ou seja, consubstancia a ideia de ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido pela medida.
Dessa maneira, para a concessão da efetiva tutela jurisdicional no caso em comento não basta a prolação de decisão judicial que garanta ao jurisdicionado o fornecimento de determinado medicamento. A partir de um juízo de ponderação, tratando-se do direito fundamental à saúde e diante de um risco iminente, é mister dotar o Estado-juiz de instrumentos mais eficazes para garantir o cumprimento da decisão judicial, sob pena de completa ineficácia do provimento jurisdicional.
De fato, a partir de um juízo de ponderação, outro não poderia ser o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: se, por um lado, as normas de direito financeiro e de direito administrativo asseguram a impossibilidade de fornecimento de medicamento pelo Estado sem anterior dotação orçamentária e observância do rito estabelecido em lei, no outro flanco encontra-se o direito fundamental à saúde insculpido no art. 6º, da Constituição da República de 1988.
Diante de um conflito entre essas normas, merece primazia o direito social à saúde, com o que se observará, em última análise, o fundamento da dignidade da pessoa humana consagrado no texto constitucional no art. 1º, inciso III, além de outros princípios de idêntica estatura.
A respeito da dignidade da pessoa humana, convém rememorar que se trata de um apanágio inerente a todo ser humano, atributo esse que restará violado toda vez que o homem for tratado como meio e não como um fim em si mesmo, com total desprezo da sua condição humana. Nesse aspecto, os direitos fundamentais foram criados exatamente com a finalidade de proteger a dignidade da pessoa humana, razão pela qual esta é vista como o núcleo daqueles direitos.
Assim, procura-se garantir a incolumidade do respeito a tal direito fundamental, com o imediato fornecimento do medicamento objeto de concessão judicial, sendo que, se houver parcelas anteriores devidas pelo Estado, o pagamento deverá ocorrer, em tese, por meio de requisição de pequeno valor ou precatório, a depender do caso, em respeito ao artigo 100, da Constituição da República.
Frise-se que o bloqueio de verbas públicas deve ser visto como medida excepcional, sendo admitido somente naqueles casos nos quais exista, nos autos judiciais, a comprovação da omissão estatal no cumprimento da decisão que determina o fornecimento do medicamento, e reste evidenciado que a mora do Estado pode acarretar risco à saúde e à vida do jurisdicionado.
Por fim, impende destacar que o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de manifestar-se a respeito do tema no seguinte sentido:
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. POSSIBILIDADE DE BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS PARA GARANTIA. RATIFICAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA FIRMADA POR ESTA SUPREMA CORTE. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. (STF. RE 607.582. Rel. Min. Ellen Gracie. Publicado no DJ de 26/08/2010).
Embora a ementa transcrita não demonstre a real extensão do pronunciamento do STF sobre o assunto, a ministra relatora Ellen Gracie deixou assentado em seu voto o seguinte:
“Ademais, verifico que a matéria já se encontra pacificado no âmbito desta Corte, no sentido da possibilidade do bloqueio de verbas públicas para garantir o fornecimento de medicamentos. Cito os seguintes julgados: AI 553.712-AgR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, DJe 4.6.2009; AI 597.182-AgR, rel. Min. Cezar Peluso, 2ª Turma, DJ 6.11.2006; RE 580.167, rel. Min. Eros Grau, DJe 26.3.2008; AI 669.479, rel. Min. Dias Toffoli, DJe 17.12.2009; RE 562.528, de minha relatoria, DJ 6.10.2005; AI 640.652, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 27.11.2007; e AI 724.824, rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 23.9.20008.
Desse modo, entendo que, com o reconhecimento da existência da repercussão geral e havendo entendimento consolidado da matéria, os Tribunais de origem e as Turmas Recursais podem, desde logo, com fundamento no § 3º do citado art. 543-B, aplicar a citada orientação anteriormente firmada por este Supremo Tribunal Federal”.
Desse modo, restou admitido pelos Tribunais Superiores o bloqueio de verbas públicas enquanto meio coercitivo atípico apto a garantir o efetivo cumprimento da decisão judicial que determina o fornecimento de medicamento pelo Estado.
Resta patente que as normas que dizem respeito à impossibilidade de bloqueio de verbas públicas não estão sendo desrespeitadas, mas tão-somente cederão espaço frente à tutela jurisdicional da saúde nessas situações excepcionais tratadas pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.
Assim, in casu, a admissão do bloqueio das verbas públicas a partir da aplicação da cláusula geral executiva prevista no artigo 461, §5º, do Código de Processo Civil, em detrimento das prerrogativas da Fazenda Pública que, regra geral, afastam tal possibilidade, procura garantir a efetiva tutela jurisdicional e a eficácia dos provimentos jurisdicionais, objetivando, em última análise, o efetivo acesso à justiça, sobretudo se se considerar os direitos envolvidos na demanda, não sendo razoável admitir que uma possível desídia do ente estatal possa preponderar sobre o comando judicial que determina o imediato fornecimento de medicamento ao jurisdicionado que se encontra em situação de comprovado risco à sua saúde.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça ainda traz outra relevante reflexão, na medida em que poderá servir como elemento a nortear a elaboração de novas situações jurídicas que assegurem a eficácia de determinadas decisões judiciais, a partir da cláusula geral executiva inserta no art. 461, §5º, do Código de Processo Civil, conferindo maior concretude a tal dispositivo legal, com o que se buscará, afinal, a efetiva tutela jurisdicional e a justiça, não se podendo olvidar que, conforme já pontuava Ruy Barbosa em discurso realizado na Faculdade de Direito de São Paulo em 1920, justiça tardia não é justiça.
III) Conclusão
Em regra, diante das normas de direito orçamentário e de direito administrativo, não se admite o bloqueio de verbas públicas, salvo nas situações expressamente previstas no ordenamento jurídico.
Contudo, a excepcional situação fática pode demonstrar a necessidade de utilização desse instrumento como meio executivo atípico, de modo a conferir aplicabilidade a outros princípios de estatura constitucional, sob pena de denegação da própria tutela jurisdicional ou do acesso efetivo à justiça.
O recente entendimento consignado pelo Superior Tribunal de Justiça, veiculado nos autos do Recurso Especial nº 1.069.810, julgado sob o rito art. 543-C, do Código de Processo Civil, reconheceu a possibilidade de bloqueio de verbas públicas quando houver a comprovação da omissão estatal no cumprimento da decisão judicial que determina o fornecimento do medicamento e restar evidenciado que a mora do Estado pode acarretar risco à saúde e à vida do jurisdicionado.
Não se pode desconsiderar a importância desse entendimento firmado pelo STJ para conferir real concreção ao art. 461, §5º, do CPC, pois poderá servir como elemento norteador para assegurar a eficácia das decisões judiciais, notadamente se se considerar a natureza de cláusula geral executiva atribuída a aludido dispositivo legal, objetivando, em última análise, a efetiva prestação da tutela jurisdicional e a própria justiça enquanto valor supremo da sociedade brasileira, tal como previsto no preâmbulo da Constituição da República de 1988.
IV) Referências Bibliográficas
- CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 6ª edição. São Paulo: Dialética, 2008.
- MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011.
- MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Processo Civil Brasileiro. 29ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
- NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 3ª edição. São Paulo: Editora Método, 2011.
- NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6ª edição. Editora Malheiros, 2012.
- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Editora Malheiros.
[1] Esse mesmo entendimento também foi acolhido pelo TRF-1, 5ª Turma, AC 200835000159866, rel. Des. Fed. Fagundes de Deus, DJ de 23/04/2010, e pelo TRF-4, 4ª Turma, AG 200904000461640, rel. Marga Inge Barth Tessler, DJ de 26/04/2010.
[2] STJ, 2ª Turma, ROMS 43.785, autos nº 201302598136, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 27/03/2014; STJ, 2ª Turma, AGA 747.806, Rel. Min. Herman Benjamin, DJ de 18/12/2007; TRF-2, 8ª Turma Especializada, AG 171.130, autos nº 200802010179805, rel. juiz conv. Marcelo Pereira, DJ de 27/05/2010.
Procurador Federal. Especialista em Direito Processual Civil.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Gustavo D' Assunção. O bloqueio de verbas públicas como meio executivo atípico para cumprimento de decisão judicial que determina o fornecimento de medicamento e a consolidação do entendimento no âmbito do Superior Tribunal de Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39075/o-bloqueio-de-verbas-publicas-como-meio-executivo-atipico-para-cumprimento-de-decisao-judicial-que-determina-o-fornecimento-de-medicamento-e-a-consolidacao-do-entendimento-no-ambito-do-superior-tribunal-de-justica. Acesso em: 23 dez 2024.
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