Resumo: analisa-se alguns dispositivos do projeto de novo Código de Processo Civil que visam combater os embaraços criados pelos tribunais que dificultam a fruição, pelo jurisdicionado, do direito de ação em grau recursal.
Palavras-chave: tribunal; processo; jurisdição; jurisprudência, recurso.
Há um entendimento largamente aceito no meio jurídico brasileiro segundo o qual os tribunais de sobreposição não podem funcionar como um terceiro grau de jurisdição, mas, antes, devem operar como instâncias judiciais responsáveis pela manutenção da higidez do ordenamento jurídico. Reduzindo a análise às duas principais cortes do país, tem-se o Supremo Tribunal Federal – STF, a quem compete zelar pela guarda da Constituição e atuar de forma a imprimir efetividade aos seus preceitos, enquanto que ao Superior Tribunal de Justiça – STJ cabe a uniformização da interpretação da legislação federal. Contudo, o elevado número de ações que são submetidas aos tribunais superiores, em especial aquelas que lá chegam em grau recursal, acabariam por descaracterizar a função reservada a essas Cortes no sistema jurisdicional pátrio.
Em reação a esse quadro, foram implementadas medidas legislativas e construídos entendimentos jurisprudenciais – em especial no âmbito dos tribunais superiores – que visam, em última análise, reduzir o espectro de atuação do STF e do STJ.
Na seara legislativa, a previsão de admissão do Recurso Extraordinário pelo Supremo Tribunal Federal, condicionada à demonstração da repercussão geral das questões constitucionais discutidas, isto é, a existência de questões relevantes sob o ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os limites fixados pelos interesses subjetivos das partes[i], parece ter contribuído significativamente para a racionalização da prestação jurisdicional pelo Tribunal, na medida em que se verifica no ano de 2011 uma redução para cerca de um terço em relação aos processos que foram distribuídos em 2007.
É o que dizem os números: em 2011 foram distribuídos 38.109 processos aos Ministros da Suprema Corte, contra 112.938 em 2007. Em 2011 foram julgados 97.380 ações e recursos, sendo que em 2007 foram 159.522[ii].
No Superior Tribunal de Justiça, todavia, não se verificou a mesma tendência. A sistemática de recursos repetitivos prevista no art. 543-C do CPC parece não ter sido capaz de reduzir o estoque de processos da Corte. Em 2009 foram distribuídos 292.103 processos, verificando-se uma queda no ano de 2010 (228.981 processos), com a retomada da elevação do volume no ano de 2011, em que foram distribuídos 290.901 novos casos. O estoque de processos cresceu de 212.448 em 2009 para 235.446 em 2011[iii]; em 2012 chegou a 316.317, com estimativa de queda para 297.595 para 2013[iv].
A par dessas tentativas legislativas, as Cortes Superiores também buscam a redução do número de processos submetidos à sua apreciação, sob a justificativa de aperfeiçoarem sua atuação, de forma a permitir o correto desempenho de sua missão institucional.
É nesse contexto que se verifica uma postura dos Tribunais de criarem embaraços ao conhecimento de recursos judiciais a ele dirigidos, não obstante a inexistência de dispositivo legal em que se fundamente a exigência, o que se convencionou chamar jurisprudência defensiva.
A criação da jurisprudência defensiva chega ao ponto da edição de enunciados sumulares. Assim é a Súmula 418 do STJ, que prescreve que “É inadmissível o recurso especial interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior ratificação”. A Súmula 126 do STJ assevera que é “inadmissível recurso especial, quando o acórdão recorrido assenta em fundamentos constitucional e infraconstitucional, qualquer deles suficiente, por si só, para mantê-lo, e a parte vencida não manifesta recurso extraordinário”. Já a Súmula 115 do STJ diz que “na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos”, em total afronta ao disposto no art. 13 do CPC, que permite o saneamento do vício.
O prequestionamento, isto é, a exigência “para a admissibilidade dos recursos extraordinários, segundo o qual se impõe que a questão federal/constitucional objeto do recurso excepcional tenha sido suscitada/analisada na instância inferior” (DIDIER JR; CUNHA: 2010, p. 258), é tratado em diversas súmulas e julgados padronizados. A Súmula 320 do STJ registra que a “questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do prequestionamento”. Já a Súmula 211 diz que é “inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal “a quo”. Assim, o STJ não admite o denominado prequestionamento ficto, isto é, não basta a interposição de embargos de declaração pelo recorrente; havendo omissão do tribunal no que tange ao prequestionamento, deve ser interposto recurso especial por violação ao art. 535 do CPC. No STF, a entendimento é em sentido contrário, ou seja, admite-se que fora prequestionada a questão recorrida com a simples interposição dos aclaratórios, ainda que o tribunal a quo se abstenha de enfrentar a matéria.
Em resposta à jurisprudência defensiva, o CPC projetado traz uma série de disposições que visam dar efetividade ao direito de ação e ao postulado da inafastabilidade da jurisdição, consagrados na Constituição Federal.
Em resposta à Súmula 115 do STJ, o art. 318 prevê que “antes de proferir decisão sem resolução de mérito, o órgão jurisdicional deverá conceder à parte oportunidade para, se possível, corrigir o vício”. No mesmo sentido, o parágrafo único do art. 945 prevê que o relator deverá conceder prazo de cinco dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível ao conhecimento do recurso.
Quanto à exigência do prequestionamento, o art. 1.038, estabelece que “consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante pleiteou, para fins de prequestionamento, ainda que os embargos sejam inadmitidos ou rejeitados , caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade”. Ainda sobre o prequestionamento, o §4º do art. 954 vem para derribar por terra a Súmula 320 do STJ, ao dispor que “o voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive prequestionamento”.
Contra a necessidade de ratificação do recurso “prematuro”, de que trata a Súmula 418 do STJ, o §2º do art. 1.039 assegura que “se os embargos de declaração forem rejeitados ou não alterarem a conclusão do julgamento anterior, o recurso interposto pela outra parte, antes da publicação do julgamento dos embargos de declaração, será processado e julgado independentemente de ratificação”. A sistemática é repetida no art. 1.057, em relação aos embargos de divergência.
Ainda em relação às Súmulas do STJ citadas acima, os artigos 1.045 e 1.046 criam uma espécie de fungibilidade entre os recursos especial e extraordinário, ao disporem que “se o relator, no Superior Tribunal de Justiça, entender que o recurso especial versa sobre questão constitucional, deverá conceder prazo de quinze dias para que o recorrente demonstre a existência de repercussão geral e se manifeste sobre a questão constitucional” e que, por outro lado, “se o Supremo Tribunal Federal considerar como reflexa a ofensa à Constituição afirmada no recurso extraordinário, por pressupor a revisão da interpretação da lei federal ou de tratado, remetê-lo-á ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento como recurso especial”.
Outros dispositivos também visam combater a tal jurisprudência defensiva, como é o caso do §4º do art. 218, que afirma não ser intempestivo o recurso prematuro, ou seja, interposto antes do termo inicial do prazo.
Enfim, a peleja contra a jurisprudência defensiva está em sintonia com a lição de Calmon de Passos, segundo o qual:
Devido processo constitucional jurisdicional, cumpre esclarecer, para evitar sofismas e distorções maliciosas, não é sinônimo de formalismo, nem culto da forma pela forma, do rito pelo rito, sim um complexo de garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que têm poder de decidir.
(...)
Dispensar ou restringir qualquer dessas garantias (relacionadas ao acesso recursal) não é simplificar, deformalizar, agilizar o procedimento, privilegiado a efetividade da tutela, sim favorecer o arbítrio em benefício do desafogo de juízos e tribunais. Favorece-se o poder, não os cidadãos, dilata-se o espaço, dos governantes e restringe-se o dos governados. E isso se me afigura a mais escancarada anti-democracia que se pode imaginar. (PASSOS: 2000, p. 70).
A garantia de acesso ao Judiciário é corolário do due process of law. Nas lições de CANOTILHO encontramos uma interessante vinculação do princípio do devido processo legal à garantia do acesso aos tribunais, ou melhor, o “direito à proteção jurídica através dos tribunais” (2003, p. 492).
O insigne catedrático de Coimbra ensina que o direito de acesso aos tribunais pressupõe uma dupla dimensão: 1) o direito de se defender perante os tribunais contra atos do poder público; 2) a garantia de que os tribunais protegerão dos direitos dos cidadãos em face de violação perpetrada por terceiros.
O direito de acesso aos tribunais, como instância do Poder Público com atribuição para promover a defesa dos direitos dos cidadãos, é uma decorrência do primado da vedação da autotutela. Ora, nada mais razoável que permitir ao cidadão o acesso ao Estado-juiz, já que ele não pode, por suas próprias forças, promover a defesa dos seus direitos quando esses são violados por terceiros.
É possível encontrar mais um desdobramento da lição do professor português: a de que a proteção jurisdicional, na condição de conteúdo constitucional mínimo, não reste aniquilada em razão da ausência do estabelecimento por meio da legislação ordinária de uma via judicial adequada, e que uma vez erigida tal via, não seja ela confusa ou extremamente dificultosa, ao ponto de impedir o pleno acesso à jurisdição:
Se a determinação dos caminhos judiciais for de tal modo confusa (ex.: através de reenvios sucessivos de competências) que o particular se sinta tão desprotegido como se não houvesse via judiciária nenhuma, haverá violação do princípio do Estado de direito e do direito fundamental de acesso ao direito e à via judiciária.
(...) Pressupõe, porém (o direito de acesso aos tribunais) que a determinação legal da via judiciária adequada não se traduza, na prática, num jogo formal sistematicamente reconduzível à existência de formalidades e pressupostos processuais cuja “desatenção” pelos particulares implica a “perda automática das causas”. (CANOTILHO: 2003, p. 497-498).
Ora, se nem mesmo ao legislador, que possui a prerrogativa republicana de estabelecer as regras procedimentais aplicáveis ao processo, é permitido criar obstáculos de forma despropositada, o que se dirá do Judiciário?
Que venha o novo CPC, para reafirmar a garantia constitucional que deve ser assegurada pelo próprio Judiciário, valendo lembrar que quem pretende dar a última palavra em tudo, deve, ao menos, permitir o acesso daqueles que buscam essa derradeira resposta.
REFERÊNCIAS:
BRASIL: Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2013: ano-base 2012 / Conselho Nacional de Justiça – Brasília: CNJ, 2013.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003.
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil, vol. 3. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2010.
PASSOS, J.J. Calmon de. Direito, Poder, Justiça e Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
Revista Consultor Jurídico. Anuário da Justiça 2012. São Paulo: Revista Consultor Jurídico, 2012.
[i] Art. 102, §3º da CF/88 e art. 543-A do CPC.
[ii] Revista Consultor Jurídico. Anuário da Justiça 2012, p. 39.
[iii] Revista Consultor Jurídico. Anuário da Justiça 2012, p. 109.
[iv] Justiça em números 2013: ano-base 2012 / Conselho Nacional de Justiça – Brasília: CNJ, 2013, p. 285.
Procurador Federal. Bacharel em Direito e em Ciências Contábeis<br>Especialista em Direito Público e em Direito Processuaà l Civil. MBA em Gestão Pública.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RORIZ, Rodrigo Matos. Dispositivos do Código De Processo Civil projetado contrários à jurisprudência defensiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39076/dispositivos-do-codigo-de-processo-civil-projetado-contrarios-a-jurisprudencia-defensiva. Acesso em: 23 dez 2024.
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