Resumo: aborda-se a relação do Estado com o Direito e a economia. Analisa-se o papel que o Direito desempenha nos paradigmas jurídicos do Estado produtor e do Estado regulador, em especial na estruturação da máquina administrativa e na normatização e regulação das atividades desempenhadas pelo mercado.
Palavras-chave: Direito; economia; Estado; regulação, Administração.
Segundo o ideário liberal clássico, o Estado deveria manter-se afastado da atividade econômica. Não que o Estado não devesse existir na concepção libertária. Contudo, o mercado e sua lei fundamental da oferta x demanda deveria se consubstanciar numa fórmula necessária e suficiente à promoção do desenvolvimento da sociedade, com aptidão para suprir as necessidades individuais dos cidadãos.
Ocorre que a essência do capitalismo, ou seja, a busca desenfreada pela realização do maior lucro possível e sua consequente acumulação de riqueza, dá azo à formação de um modelo econômico irracional, no qual a ausência de um planejamento central contribui para o surgimento das crises de superprodução. Em outras palavras, quando a oferta de determinado produto é pequena em face do número de consumidores interessados em adquiri-lo, o seu preço se eleva, o que tende a despertar o interesse dos proprietários dos meios de produção em produzir aquele produto, visando, por óbvio, um incremento no faturamento advindo de sua venda. A produção desmedida de tal bem acarreta a inversão da fórmula, criando uma situação em que a oferta é muito maior que a procura, ou seja, há mais mercadoria que consumidores. Tem-se assim, uma crise de superprodução, que gera recessão e retração econômica.
A liberdade absoluta dos agentes econômicos pregada pelo liberalismo revelou a incapacidade do mercado satisfazer as necessidades básicas de grande parcela da população. (ACUNHA: 2012, p.14).
Mas não é correto afirmar que o principal motivo para a mudança do paradigma liberal para o social tenha sido suprir diretamente as necessidades de grande parcela da população. Tendo por base a lição de GRAU (2012, p. ), pode-se afirmar que o capitalismo necessita do Estado tanto quanto esse depende daquele. Assim, o modelo liberal/capitalista necessita de um sistema jurídico – do Direito positivo posto pelo Estado – que atue na condição de instrumento vocacionado a disciplinar o mercado, que por sua vez depende da regularidade e previsibilidade de comportamentos de seus agentes econômicos – o que é alcançado através do Direito. Segundo a doutrina liberal:
“É, portanto, uma ingenuidade pensar que os verdadeiros liberais, por defenderem a propriedade privada e a limitação das funções do governo, sejam contra a existência do estado. Eles combatem tanto o socialismo como o intervencionismo por acreditarem na maior eficácia da economia de mercado. Defendem a existência de um estado forte e bem administrado porque lhe atribuem uma tarefa fundamental: a defesa do funcionamento da economia de mercado.” (MISES: 2010, p. 27).
Por sua vez, quando o Estado intervém na economia não o faz movido por um ideal de socialização, mas sim pela necessidade de promover uma renovação do capitalismo (corrigir as distorções de mercado), o que, indiretamente, se traduziria em benefício para toda a sociedade, na medida em que a comunidade se serviria da distribuição de bens e das oportunidades advindas do mercado. O capitalismo é útil ao Estado, não obstante a necessidade de ser domesticado.
Assim é que o paradigma social é caracterizado pela aproximação da sociedade civil com o Estado, que se torna verdadeiro produtor de bens e serviços. Para tanto, cria-se uma superestrutura engendrada em autarquias para a prestação de serviços públicos e sociedades empresárias – empresas públicas e sociedades de economia mista – com a finalidade de, inclusive, explorar diretamente atividade econômica. É o arquétipo do Estado produtor.
Em casos extremos, o Estado substitui o mercado (esse entendido como instituição jurídica e social que opera em razão da liberdade absoluta de seus agentes econômicos, segundo a lei da oferta x procura) e passa a ser o agente central do sistema econômico, o que faz por meio da edição de medidas legais e administrativas, como, por exemplo, o controle do fluxo cambial e do sistema financeiro, a formação de poupança nacional, e a criação de uma rede redistributiva de renda (ACUNHA: 2012, p. 14).
Todavia, nessa incursão extremada na atividade econômica, o Estado não logrou êxito em manipular os instrumentos forjados pelo capitalismo. O Estado revelou-se incapaz de suprir diretamente todas as demandas sociais que lhe eram dirigidas e, num médio prazo, se viu imerso numa crise fiscal de expressivas ramificações internacionais, em que se destacam como causa o fim da paridade internacional lastreada no ouro e as crises do petróleo da década de 70 do século passado (ACUNHA: 2012, p. 16).
Noutro giro, a mencionada reaproximação entre sociedade e Estado ocorre num cenário de dominação, de mitigação da autonomia privada. Os espaços privados são subjugados pelo poder público que se hasteia como controlador da ordem econômica e, por conseguinte, dos meios que propiciariam, em maior ou menor medida, a liberdade pelas escolhas dos objetivos que cada indivíduo pretende perseguir:
Infelizmente, a ideia de que o poder exercido sobre a vida econômica só afeta questões de importância secundária – ideia que leva as pessoas a menosprezar a ameaça à liberdade de ação no campo econômico – é de todo infundada. Ela decorre em grande parte da noção errônea de que existem objetivos puramente econômicos, distintos dos outros objetivos da existência. No entanto, afora o caso patológico do avarento, não existe tal distinção. Os objetivos últimos da atividade dos seres racionais nunca serão econômicos. Rigorosamente falando, não existe ‘interesse econômico’, mas apenas fatores econômicos que condicionam nossos esforços pela obtenção de outros fins. Aquilo que na linguagem comum se costuma definir por equívoco como ‘interesse econômico’ significa apenas o desejo de oportunidades, o desejo do poder de alcançar objetivos não especificados.” (HAYEK: 2010, p. 101-102).
O paradigma do Estado regulador não surge apenas como alternativa à crise fiscal, caracterizada pela crescente perda do crédito pelo Estado e pela negativação da poupança pública, bem como pelo esgotamento da estratégia estatizante de intervenção estatal (PDRAE: 1995, p. 10-11). Decorre, também, da necessidade de reação em face do déficit democrático promovido pelo Estado produtor. Trata-se de chamar a iniciativa privada de volta para o jogo. Nesse modelo ideal, a ordem econômica deve voltar a ser conduzida pelos agentes econômicos do mercado, mas não com a liberdade absoluta defendida pelo liberalismo clássico. Ao Estado cabe exercer o controle e a fiscalização do mercado, por meio de normatização e atuação concreta no exercício do seu poder de polícia.
Nesse contexto, a iniciativa privada desponta em duas frentes: primeiro, na condição de agente do mercado, que interessa ao Estado, em razão da criação de oportunidades e da geração de riquezas proporcionadas pelo modelo capitalista; segundo, como parceira do Estado, atuando na prestação de serviços não exclusivos do Estado, mas de interesse público, sob a forma de entidades paraestatais, essas inseridas no que se convencionou denominar “terceiro setor”, que na lição de DI PIETRO (p. 425) “é composto por entidades da sociedade civil de fins públicos e não lucrativos; esse terceiro setor coexiste com o primeiro setor, que é o Estado, e o segundo setor, que é o mercado.” Pertencem a esse terceiro setor os serviços sociais autônomos, as organizações sociais, as entidades de apoio e as OSCIPs.
Assim, entre os extremos do esvaziamento das competências estatais em razão da total ausência de atuação do ente político na economia e na sociedade, de um lado, e, de outro, o exorbitante acumulo de funções em razão do controle exercido pelo Estado na ordem econômica, desponta como alternativa o modelo regulador. Nesse novo cenário há uma modificação no arquétipo da máquina administrativa, decorrente das novas competências assumidas pelo Estado, que continua e demandar uma complexa estrutura, mas para o exercício de atividades diversas das que eram perseguidas pelo Estado produtor. Assim, o grande número de empresas públicas e sociedades de economia mista criadas para explorarem diretamente atividade econômica cedem lugar ao surgimento das agências reguladoras, que são nada mais que “autarquias sob regime especial, ultimamente criadas com a finalidade de disciplinar e controlar certas atividades” (MELLO: 2010, p. 170). Assim é que as agências reguladoras são criadas para propiciar ao Estado o cumprimento das competências estipuladas pelo art. 174 da Constituição Federal: Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
Nessa nova fórmula concebida para a relação Estado x mercado, verifica-se, ao menos em teoria, duas frentes de atuação estatal. Mantém-se a intervenção direta, mas o que era regra no modelo produtor se torna exceção no Estado regulador, conforme preconizado pelo art. 173 da Constituição Federal. Assim, afora os casos previstos na própria Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado somente será permitia se necessária aos imperativos da segurança nacional ou estiver presente relevante interesse coletivo. Por sua vez, a intervenção indireta ocorre por meio da atividade de regulação da economia, modalidade de intervenção que “se verifica através das imposições normativas destinadas principalmente aos particulares, bem como de mecanismos jurídicos preventivos e repressivos para coibir eventuais condutas abusivas” (CARVALHO FILHO: 2012, p. 904).
Com a redução da atividade interventiva direta, abre-se espaço para um movimento de privatizações das empresas estatais, outrora utilizadas para a exploração de atividade econômica. Mesmo os serviços públicos por natureza, porque vocacionados a satisfazer as necessidades básicas da população ou porque estão relacionados a questões de relevância para o desenvolvimento da sociedade – como educação, saúde, saneamento básico, entre outros – mas que não correspondam a uma atividade exclusiva do Estado – tributação, jurisdição, poder de polícia, etc. –, são transferidos aos particulares, sob o regime de concessão ou permissão. Tem-se, assim, um movimento de publicização, em que “transfere-se para o setor público não-estatal a produção dos serviços competitivos ou não exclusivos de Estado, estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado e sociedade para seu financiamento e controle” (PDRAE BRASIL: 1995, p. 13).
O Estado regulador não permite, portanto, uma economia de livre mercado. Embora no seu modelo ideal não pretenda se assenhorar dos meios de produção e substituir o mercado em suas relações econômicas, não abre mão de suas funções de controle e fiscalização, bem como da normatização do setor econômico, o que acarreta restrições ao comportamento dos agentes de mercado. A doutrina liberal clássica, desde antes da consolidação do modelo intervencionista, já previa essa limitação da liberdade econômica, que acusava de ser a causadora do aumento dos preços, da escassez de bens e do empobrecimento do povo, além de propiciar o surgimento dos monopólios que se propunha a combater. Assim é que Ludwig von Mises afirmara que “a humanidade tem que escolher entre a economia de mercado não obstruída, democracia e liberdade de um lado, e socialismo e ditadura de outro. A terceira alternativa, um regime intervencionista, não tem viabilidade prática” (2010, p. 116).
A história revela que a escolha por sistemas socialistas extremos conduziram nações ao caminho do retrocesso social e econômico. Por outro lado, falhas nas estruturas de mercado sempre existiram e continuarão a surgir. Não parece ser viável um cenário em que o mercado atue apenas segundo as regras econômicas, dispensando a normatização por meio do ordenamento jurídico estatal.
O Direito não cria, pela mera positivação de regras ou ponderação de princípios, as condições econômicas necessárias ao pleno e efetivo desenvolvimento da sociedade, que continua a depender do processo de geração de riquezas propiciado pelo capitalismo e por seus atores econômicos. Todavia, é o Direito que, quando instrumentalizado adequadamente, domesticará o ímpeto capitalista, estabelecendo regras protetivas que têm por destinatários não apenas os que se encontram em posição de desvantagem no jogo econômico, mas o próprio sistema de produção, acumulação e distribuição de riquezas.
Referências:
ACUNHA, Fernando José Gonçalves. A Administração Pública brasileira no contexto do Estado democrático de direito. Brasília: CEAD/UnB, 2012.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
HAYEK, F.A. O Caminho da Servidão. Trad.: Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. 6ª ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
MISES, Ludwig von. Intervencionismo, uma análise econômica. Trad.: Donald Stewart Jr. 2ª ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
Procurador Federal. Bacharel em Direito e em Ciências Contábeis<br>Especialista em Direito Público e em Direito Processuaà l Civil. MBA em Gestão Pública.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RORIZ, Rodrigo Matos. Estado, direito e economia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 abr 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39087/estado-direito-e-economia. Acesso em: 23 dez 2024.
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