O presente estudo tem por objeto os limites objetivos e subjetivos da coisa julgada, a serem analisados inicialmente no âmbito dos processos individuais, e, na sequência, no dos processos coletivos.
Ao presumir a verdade, a decisão judicial definitiva produz a certeza do direito e exaure a obrigação jurisdicional do Estado, invocada pelo direito de ação do autor. O fundamento primordial da coisa julgada é a estabilidade das relações jurídicas.
Após todo o caminho processual, em que se pretende alcançar a sentença mais justa possível, é necessário cessar definitivamente a pendenga, tornando a decisão judicial imutável. Não mais se poderá discutir a justiça ou injustiça da decisão, porque é preferível uma decisão eventualmente injusta do que a perpetuação do litígio. É o que afirma Carlos Henrique Bezerra LEITE: “Em outros termos, o objeto da coisa julgada repousa na segurança nas relações jurídicas e na pacificação dos conflitos, possibilitando assim, a convivência social” (p. 569).
A res iudicata cria, para a segurança dos direitos subjetivos, situação de imutabilidade que nem mesmo a lei pode destruir ou abalar. É o que se infere do inciso XXXVI do art. 5o da CF: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Contudo, a coisa julgada deve obedecer a certos limites, que se dividem em objetivos e subjetivos.
Definir os limites objetivos significa estabelecer aquilo que, na decisão, adquire a autoridade da coisa julgada (LEITE, p. 573).
Diz o art. 468 do CPC: “A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas”. E não faz mais que esclarecer o óbvio, porque o que não foi discutido nem decidido não pode vincular ninguém. Já o art. 469 traz informações que efetivamente determinam os limites objetivos da coisa julgada:
Art. 469. Não fazem coisa julgada:
I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;
II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;
III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.
Como explica Renato SARAIVA (p. 409), “o que se torna definitivo e imutável é a parte dispositiva da sentença, ou seja, a decisão que apreciou o pedido formulado pela parte (...). Logo, o relatório e a fundamentação da sentença não são alcançados pela coisa julgada”. Mas a decisão sobre questão prejudicial pode fazer coisa julgada nos termos do art. 470:
Art. 470. Faz, todavia, coisa julgada a resolução da questão prejudicial, se a parte o requerer (arts. 5o e 325), o juiz for competente em razão da matéria e constituir pressuposto necessário para o julgamento da lide.
As relações jurídicas continuativas em que se modifique o estado de fato ou de direito não são alcançadas pela coisa julgada:
Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo:
I - se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;
II - nos demais casos prescritos em lei.
A coisa julgada cobre tanto questões deduzidas pelas partes (res deducta), quanto questões que poderiam ter sido, mas não o foram por qualquer motivo, as quais se denominam “dedutíveis” (res deducenda):
Art. 474. Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.
Pelo princípio da eventualidade (e também da economia processual), tanto o autor quanto o réu devem se utilizar, no curso do processo, de toda a força probante possível para fundamentar seu posicionamento (pretensão) quanto à relação jurídica.
Assim, além do deduzido, que obviamente está incluído na alçada da sentença, fato que não gera polêmica, o dedutível também fica abarcado pela coisa julgada, exatamente porque deveria ter sido alegado pela parte interessada. Esse fenômeno é denominado por parte da doutrina como “princípio do deduzido e do dedutível”.
Para avaliar os limites subjetivos da coisa julgada, deve-se verificar quem é atingido pelos efeitos imutáveis da decisão (LEITE, p. 572). A regra é que somente as partes são alcançadas pela autoridade da coisa julgada. Terceiros, que não participaram da relação processual, estão “livres”:
Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.
Contudo, as relações humanas se interpenetram, e uma sentença proferida entre as partes pode influir mais ou menos intensamente nas relações de terceiros que, embora não vinculados à sentença, acabam por indiretamente sentir suas conseqüências.
Liebman (apud TUCCI, p. 122) distingue a eficácia natural da sentença da autoridade da coisa julgada. A primeira vale para todos (erga omnes), inclusive terceiros; a segunda, apenas para as partes. A partir dessa distinção, estabelece três categorias de terceiros:
Terceiros indiferentes: não sofrem nenhum prejuízo em razão da sentença. Nada lhes resta senão reconhecer a sua eficácia natural.
Terceiros interessados praticamente: sofrem prejuízo prático ou econômico, como o credor do réu vencido na ação reivindicatória.
Terceiros juridicamente interessados, que se subdividem em dois tipos: (i) terceiros que têm interesse igual ao das partes – podem se opor à sentença, que não deve atingir o seu direito, como o proprietário de um bem alvo de ação reivindicatória entre dois outros sujeitos; (ii) terceiros que têm interesse inferior ao das partes – são titulares de relações jurídicas dependentes da relação julgada no processo. Por estarem sujeitos aos efeitos da sentença, tem a faculdade de se insurgir contra ela.
Resumindo, a decisão judicial pode produzir efeitos em relação a todos esses sujeitos, sejam partes, sejam terceiros interessados, sejam ainda terceiros indiferentes. Esses efeitos, porém, serão sentidos de maneira distinta. Os que têm interesse jurídico em relação ao litígio podem se opor, de algum modo, à afetação de sua esfera jurídica. Em relação, entretanto, aos terceiros indiferentes, aqueles que não têm interesse jurídico, tais sujeitos sofrem naturalmente os efeitos da decisão, que são inafastáveis e imutáveis.
Limites da coisa julgada nas ações coletivas
Por fim, cabe ressaltar o tratamento diferenciado das ações coletivas, que tutelam interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, nas quais a regra é que a decisão produza efeitos erga omnes ou ultra pars (LEITE, p. 572). Vale transcrever os arts. 103 e 104 do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90):
Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada:
I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;
II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
§ 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe.
§ 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual.
§ 3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.
§ 4º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória.
Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.
A definição legal de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos conta do parágrafo único do art. 81 do CDC. Os interesses transindividuais são tutelados de forma molecularizada, ao contrário dos interesses individuais, reconhecidos há muito mais tempo pelo Direito e tratados de forma atomizada.
A mencionada molecularização da tutela coletiva, no Brasil, tem seu estágio atual na vigência de um microssistema próprio, composto, primordialmente, pela LACP e pelo CDC, com aplicação residual recíproca, e também pela possibilidade de se integrar uma lacuna a partir dos demais diplomas de caráter coletivo, como as leis da ação popular e da ação de improbidade administrativa, por exemplo. Apenas depois aparece o CPC como fonte normativa do processo coletivo, haja vista ser totalmente voltado para a tutela de interesses individuais.
Um dos institutos mais discutidos em questão de tutela coletiva é a coisa julgada. O art. 103 do CDC traz os limites subjetivos (erga omnes ou ultra partes) e o modo de produção (secundum eventum litis ou secundum eventum probationis) da coisa julgada coletiva para cada tipo de direito tutelado.
A ação para a tutela de direito difuso terá efeito erga omnes se julgada procedente ou se julgada improcedente com análise das provas. Por outro lado, não vincula o próprio autor nem os demais colegitimados caso julgada improcedente por insuficiência de provas. Por isso se diz que a produção da coisa julgada se dá secundum eventum probationis.
Também é secundum eventum probationis a formação da coisa julgada em ação para tutela de direito coletivo, nos mesmos moldes da tutela de direitos difusos quanto ao resultado em função das provas, mas com a diferença de ter por limite subjetivo o grupo, categoria ou classe (ultra partes).
Por fim, a ação que veicula direitos individuais homogêneos vincula a todos (erga omnes) desde que procedente. Se improcedente, o objeto poderá ser rediscutido novamente. A produção da coisa julgada é secundum eventum litis.
Quanto à ação civil pública, a ela se aplicam as regras da coisa julgada do art. 103 CDC, porque mais completo que o art. 16 da LACP, cabendo menção à peculiaridade desse artigo em limitar a eficácia da coisa julgada aos “limites da competência territorial do órgão prolator” da decisão.
Entendo, acompanhado de boa parte da doutrina, como Fredie DIDIER JÚNIOR e Hermes ZANETI JÚNIOR (p. 149-157), que referida disposição não tem aplicabilidade. Ainda que o texto do artigo pretenda limitar a coisa julgada no aspecto territorial, não há como pôr em prática a medida.
Em primeiro lugar, os institutos da competência e da coisa julgada lidam com conceitos consolidados e estáveis. A competência é limite da jurisdição no sentido de definir qual juiz tem atribuição de processar e julgar a causa. A coisa julgada tem por efeito obrigar as partes processuais (inter partes) ou a coletividade (ultra partes ou erga omnes) ao cumprimento da decisão. O texto da norma confunde gravemente os institutos.
Em segundo lugar, os direitos difusos e coletivos em sentido estrito são indivisíveis, exigindo solução unitária dos conflitos. Admitir que mais de um juiz resolva, apenas no âmbito de sua competência territorial, uma lide indivisível significa permitir a existência de decisões divergentes sobre o mesmo objeto, em afronta ao princípio da isonomia (CF, art. 5, caput), com nítido descrédito do Poder Judiciário.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIDIER JÚNIOR, Fredie; ZANETI JÚNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil. Vol. 4: processo coletivo. 8ª ed. Salvador, 2013.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 4ª ed. São Paulo: LTr, 2006.
SARAIVA, Renato. Curso de direito processual do trabalho. 2a ed. São Paulo: Método, 2005.
TUCCI, Rogerio Lauria. Curso de Direito Processual. São Paulo: José Bushatsky, 1976.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Rodrigo Bezerra. Limites da coisa julgada no processo individual e no processo coletivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 maio 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39129/limites-da-coisa-julgada-no-processo-individual-e-no-processo-coletivo. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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