Introdução
O presente artigo propõe uma análise da condição dos serviços de saúde ocupacional das empresas - local em que somente são guardados medicamentos para eventual atendimento de empregados no local do serviço – perante a Lei 5991/73.
Para tanto, impõe-se a abordagem preliminar sobre a abrangência do conceito de farmácia, para, em seguida, avaliar-se a real necessidade de os medicamentos armazenados nesses Serviços de Saúde de Empresas serem efetivamente controlados por farmacêutico.
Âmbito de incidência da Lei 5991/73
Inicialmente, chama atenção o preâmbulo da Lei 5991/73, que possui o seguinte conteúdo: “Dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, e dá outras providências”.
A princípio, o conteúdo da norma parece restar delimitado ao controle sanitário do comércio, comércio esse que, como se verá, não é praticado pelos serviços de saúde de empresas comuns. Trata-se, deveras, de atendimento sem qualquer objetivo de obtenção de lucro, prestado à própria força de trabalho de uma dada empresa.
Ratificando a informação contida no preâmbulo, o art. 1º da Lei 5991/73 é expresso em delimitar que suas disposições são voltadas para o controle do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos. Veja-se:
Art. 1º. O controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, em todo território nacional, rege-se por esta Lei.
Salta aos olhos que o conteúdo da norma resta delimitado, repita-se, ao controle sanitário sobre o comércio, comércio esse que, como se verá, não é praticado pelo serviço médico de empresas.
Em verdade, nas situações em que o Serviço Médico da Empresa (I) limitar-se a realizar atendimento sem qualquer objetivo de obtenção de lucro, prestando um serviço à própria força de trabalho, (II) não havendo, outrossim, fornecimento de medicamentos ao público, (III) mas mera APLICAÇÃO dessas substâncias conforme prescrição médica, não incidirá as implicações da Lei 5991/73.
O Supremo Tribunal Federal, eliminando qualquer dúvida sobre o âmbito de incidência da norma e o seu objetivo, afirma que, efetivamente, a razão de ser da Lei 5991/73 é controlar o comércio de medicamentos. Veja-se:
REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI. ARTIGOS 15, PARAGRAFO 3. E 17 DA LEI N. 5.991, DE 17.12.73. LIMITAÇÃO A LIBERDADE DE COMERCIO. DROGARIAS. A NORMA QUE PREVE A ASSISTENCIA DO TECNICO RESPONSÁVEL NAS DROGARIAS VISA A CONCORDANCIA PRATICA ENTRE A LIBERDADE DO EXERCÍCIO DO COMERCIO DE MEDICAMENTOS E O SEU CONTROLE, EM BENEFICIO DOS QUE VISAM TAIS MEDICAMENTOS. REPRESENTAÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. (Rp 1507 / DF - DISTRITO FEDERAL REPRESENTAÇÃO. Relator(a): Min. CARLOS MADEIRA Julgamento: 22/09/1988. Órgão Julgador: TRIBUNAL PLENO.Publicação:DJ 09-12-1988, PP-32676 EMENT VOL-01527-01 PP-00145)
Do conceito de Farmácia
Ao se analisar a Lei 5991/73 - que dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos - verifica-se que no art. 4º consta um rol de conceitos, e dentre eles, no inciso X, apresenta-se a definição de “farmácia”:
Estabelecimento de manipulação de fórmulas magistrais e oficinais, de comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, compreendendo o de dispensação e o de atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra equivalente de assistência médica. (grifo nosso)
Levando-se em conta esse conceito, de forma isolada, o intérprete poderia concluir que em qualquer serviço de saúde ocupacional haveria uma farmácia em funcionamento. No entanto, a correta interpretação da Lei exige um cotejo dos conceitos por ela estabelecidos, o que nos leva à inexorável conclusão de que “farmácia” é somente unidade de empresa destinada a alguma forma de comércio de drogas, medicamentos e insumos farmacêuticos correlatos.
Isso porque o art. 4º, X, ao conceituar farmácia empregou o termo “estabelecimento”, que, nos termos do inciso IX, é unidade da empresa destinada ao comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos correlatos. Assim, é possível concluir que “farmácia” está direita e necessariamente relacionada ao comércio de medicamento.
Dispensação de medicamentos
Cumprindo o desiderato de regular a oferta de medicamentos ao consumidor, a Lei conceitua “dispensação” como ato de fornecimento de drogas, medicamentos insumos farmacêuticos e correlatos, a título remunerado ou não.
Em verdade, ao buscar conceituar a dispensa de medicamentos a Lei o fez com o nítido intuito de diferenciar esse ato daquilo que se pratica nos serviços médicos em sentido amplo, que, ao invés de fornecer medicamentos ao público, apenas os APLICA, em regime ambulatorial. E dessa forma, fica ainda mais claro que um Serviço Médico de Empresa, com as características já feridas[1], não pratica dispensação.
É importante observar que a mencionada Lei 5991/73, em seu art. 6º explicita que a dispensação de medicamentos é ato privativo das farmácias, drogarias, postos de medicamento e unidade volante e do dispensário de medicamentos.
Dessa forma, o Serviço de Saúde Ocupacional de uma Empresa que limita a realizar atendimento sem qualquer objetivo de obtenção de lucro, prestando um serviço à própria força de trabalho, (II) não havendo, outrossim, fornecimento de medicamentos ao público, (III) mas mera APLICAÇÃO dessas substâncias conforme prescrição médica , não se enquadra em qualquer dos conceitos da Lei 5991/73, não incidindo sobre sua atuação as regras contidas na referida Lei.
Responsabilidade pela guarda de medicamentos de uso controlado, segundo a Portaria 344/98
O que se tem observado é que os Serviços de Vigilância Sanitária têm autuado empresas que dispõem de serviço médico, impondo-lhes a obrigação de contratar farmacêutico, pautando essa autuação com base no dispositivo do art. 67 da Portaria ANVISA 344/98, que possui a seguinte redação:
As substâncias constantes das listas deste Regulamento Técnico e de suas atualizações, bem como os medicamentos que as contenham, existentes nos estabelecimentos, deverão ser obrigatoriamente guardados sob chave ou outro dispositivo que ofereça segurança, em local exclusivo para este fim, sob a responsabilidade de farmacêutico ou químico responsável, quando se tratar de indústria farmoquímica.
Como se pode observar, essa norma também emprega o termo “estabelecimento” que, conforme citado anteriormente, é conceituado como “unidade da empresa destinada ao comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos”.
Ora, se essa instrução normativa existe em função da Lei 5.991/73, por razões óbvias, as suas disposições ficam adstritas ao conteúdo da referida Lei, e desse modo, é descabida exigência de que medicamentos de uso controlado presentes nos serviços médicos já descritos fiquem sob a guarda de farmacêutico – já que não se enquadram no conceito de estabelecimento por não praticarem comércio.
E não é só. Além da clara restrição da norma àqueles que se dedicam ao comércio, a norma, em si mesma, não é válida por ferir o Princípio constitucional da Legalidade. Isto porque uma Portaria não está apta criar obrigações não previstas em Lei. Neste sentido, é o entendimento do STJ:
ADMINISTRATIVO. CONTROLE E FISCALIZAÇÃO DO COMÉRCIO DE SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES. EXIGÊNCIA DE CONTRATAÇÃO DE FARMACÊUTICO PARA CONTROLE E FISCALIZAÇÃO DO COMÉRCIO DE SUBSTÂCIAS ENTORPECENTES SÓ PODE RESULTAR DE LEI. ILEGALIDADE DA AUTUAÇÃO FUNDADA EM PORTARIA. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. (Respe 23149/SP, Rel. Ari Pargendler, DJU 27/05/1996, p. 17842).
Por fim, vale verificar que a literalidade do art. 67 impõe a presença de farmacêutico ou químico quando se tratar de indústria farmoquímica, situação em que não se enquadra o Serviço de Saúde Ocupacional com as características já citadas.
Dispensário de medicamentos
Em que pesem as considerações apresentadas acima, apenas por amor ao debate, e não havendo, uma identidade entre a pequena quantidade de medicamentos controlados no Serviço de Saúde Ocupacional de uma Empresa e os estabelecimentos/empresas/setores descritos na Lei, em última análise, e na pior das hipóteses, haveria uma sutil semelhança com o “dispensário de medicamentos”. Veja-se o seu conceito:
Setor de fornecimento de medicamentos industrializados, privativo de pequena unidade hospitalar ou equivalente.
Como se pode verificar, o dispensário é um setor de pequena unidade hospitalar ou equivalente que fornece medicamentos, não para o consumidor, mas apenas para a essa pequena unidade hospitalar ou equivalente.
Nesta senda, é importante observar que hospitais com até duzentos leitos e clínicas médicas podem possuir dispensário de medicamentos e que, ainda assim, não haverá necessidade da presença de um farmacêutico, para exercer o seu controle.
Esse é o entendimento consolidado pelo e. STJ. Veja-se:
ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE FARMÁCIA. DISPENSÁRIO DE MEDICAMENTOS. PRESENÇA DE PROFISSIONAL LEGALMENTE HABILITADO.
1. "Os dispensários de medicamentos localizados em clínicas e hospitais não se sujeitam à exigência legal da presença de farmacêutico para funcionamento" (REsp 611.921/MG, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, DJU de 28.03.06).
2. Agravo regimental improvido.
Cumpre observar que hospitais e clínicas limitam-se a atender seus pacientes, não lhes fornecendo medicamentos, mas, tão-somente, aplicando-lhes essas substâncias, quando seja necessário para o eficaz atendimento do paciente.
Desse modo, se o STJ entende que nos hospitais e clínicas há dispensário, apesar de que nesses locais também não há entrega de remédio ao consumidor, mas apenas sua aplicação nos atendimentos médicos realizados, jamais poderia a autoridade administrativa exigir do Serviço de Saúde com as características já referidas um farmacêutico responsável.
Conclusão
Assim, o serviço de saúde ocupacional não necessita de farmacêutico para exercer o controle de seus medicamentos, ainda que haja o entendimento de que esse serviço possui um dispensário.
[1] situações em que o Serviço Médico da Empresa (I) limitar-se a realizar atendimento sem qualquer objetivo de obtenção de lucro, prestando um serviço à própria força de trabalho, (II) não havendo, outrossim, fornecimento de medicamentos ao público, (III) mas mera APLICAÇÃO dessas substâncias conforme prescrição médica.
Advogada na Área Ambiental da Petrobras S.A.. Graduada em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Pós-Graduanda em Direito Contencioso pelo IBMEC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MONTEIRO, Araiana Mascarenhas Baleeiro. Desnecessidade de profissional técnico específico para controle de medicamentos contidos em serviço de saúde de empresas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 maio 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39488/desnecessidade-de-profissional-tecnico-especifico-para-controle-de-medicamentos-contidos-em-servico-de-saude-de-empresas. Acesso em: 23 dez 2024.
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