RESUMO: O presente artigo visa analisar a jurisprudência do TRF1, no tocante à (im)possibilidade da ação de conhecimento de ressarcimento ao erário prosseguir diante da propositura superveniente de uma ação de execução de acórdão do TCU, que verse sobre o mesmo fato. Conclui-se que é plenamente possível tal concomitância, apesar do TRF1 ter entendimento contrário.
PALAVRAS-CHAVE: Acórdão do TCU. Execução. Ação de Ressarcimento. Cumulação. Possibilidade.
1. Introdução
Não raramente a União executa acórdãos do Tribunal de Contas da União – TCU, concomitantemente à uma ação de ressarcimento ao erário, ou ação de improbidade administrativa que contém pedido de ressarcimento ao erário, ambas relativas ao mesmo fato.
Geralmente, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região – TRF1 extingue, sem julgamento de mérito, o pedido de ressarcimento, dada a existência da ação de execução de acórdão do TCU.
O presente artigo visa destrinchar a possibilidade concomitância das ações, no âmbito federal.
2. Do entendimento jurisprudencial do TRF1
A Administração Pública, mormente a Federal, é uma megaestrutura, repleta de nuances e diversas práticas diferentes de cada setor/órgão, com atribuições muitas vezes coincidentes.
No tocante ao desvio/má aplicação de recursos públicos, diversos órgãos podem agir, quais sejam: Tribunal de Contas da União-TCU, Controladoria-Geral da União-CGU, Advocacia-Geral da União-AGU, Ministério Público Federal-MPF e o órgão que disponibilizou o recurso. Muito embora cada um desses “setores” executem tarefas com finalidades assemelhadas (verificar a regularidade da disponibilização e execução dos recursos públicos e, se for o caso, proceder diligências tendentes para recuperação do dinheiro público), eles o fazem de maneira diferente, com relativa intenção distinta.
O controle de contas é feito de maneira externa e interna. Externa pelo TCU e interna pelo controle de cada Poder, coordenado, no âmbito do Poder Executivo Federal, pela CGU. A AGU e o MPF são os responsáveis pela cobrança judicial dos valores desviados/mau aplicados, bem pelo pedido de imposição judicial de penalidades.
Nessa seara, como última etapa do controle de contas, o TCU julga as contas de administradores de recursos públicos (art. 71, inc. II, CF) e, se for o caso, o condena a ressarcir o erário. Essa condenação constitui título executivo extrajudicial (art. 71, §3º, CF).
Por outro lado, AGU e MPF têm atribuição autônoma para, de per si, conduzirem diligências administrativas e proporem ação de ressarcimento ao erário, podendo este ser somente um pedido da ação de improbidade administrativa.
Assim, observa-se a possibilidade de, sobre o mesmo fato, haver propositura de uma ação de execução de acórdão do TCU, pela AGU ou pelo Ministério Público junto ao TCU, e uma ação de ressarcimento ao erário, proposto pela AGU, MPF e/ou autor popular.
A questão posta neste artigo consiste em saber se é possível tais ações tramitarem conjuntamente.
Analisando-se a jurisprudência do TRF1, denota-se haver posição predominantemente no sentido da impossibilidade. Confira-se alguns precedentes:
(...). 6. Não fora isso, a existência de decisão do Tribunal de Contas da União - TCU, em tomada de contas especial, condenando o ex-gestor à devolução dos mesmos recursos públicos, com força de título executivo extrajudicial (art. 71, § 3º - CF), tornaria desnecessária, por falta de interesse processual, a condenação judicial ao ressarcimento, o que expressa novo título executivo para a mesma dívida. 7. Embora a execução possa fundar-se em mais de um título extrajudicial relativo ao mesmo negócio (Súmula 27 - STJ), isso ocorre quando os títulos são decorrentes de um mesmo negócio e gerados como seu efeito direto, não justificando, de forma sucessiva, a produção de outro título (judicial), com a mesma finalidade, já dispondo a parte de um título executivo (extrajudicial) apto a ensejar a execução. 8. Provimento parcial da apelação. (AC 0009332-86.2006.4.01.3307 / BA, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL OLINDO MENEZES, QUARTA TURMA, e-DJF1 p.186 de 28/04/2014)
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI 8.429/92. AUSÊNCIA DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. EX-PREFEITO. DANO AO ERÁRIO NÃO COMPROVADO. NÃO CABIMENTO DA PENA DE RESSARCIMENTO. CONDENAÇÃO TCU. BIS IN IDEM. APELO NÃO PROVIDO. 1. A ausência de prestação de contas só conduz ao ressarcimento dos valores recebidos se comprovada a ocorrência do efetivo dano, não podendo haver condenação em pena de ressarcimento com base em mera presunção ou ilação. Precedente desta Corte. 2. A existência de título executivo extrajudicial decorrente de condenação proferida pelo Tribunal de Contas da União torna descabida nova condenação da parte requerida à restituição de valores ao erário, sob pena de configurar bis in idem. 3. Apelação não provida. (AC 0000192-84.2008.4.01.3201 / AM, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL MONICA SIFUENTES, Rel.Conv. JUIZ FEDERAL ALEXANDRE BUCK MEDRADO SAMPAIO (CONV.), TERCEIRA TURMA, e-DJF1 p.1245 de 28/02/2014)
(...) 3. Na hipótese, a Tomada de Contas Especial, instaurada no âmbito do TCU, ocorreu em virtude de omissão, por parte do agente político, no dever de prestar contas dos recursos recebidos do Fundo Nacional de Saúde, referentes ao Plano de Erradicação do Aedes Aegypti, tendo sido o mesmo condenado ao pagamento do valor total do convênio, acrescido de multa (Acórdão n.º 612/2004). 4. A preexistência de decisão do Tribunal de Contas da União - TCU, em tomada de contas especial, condenando o ex-gestor à devolução dos mesmos recursos públicos, com força de título executivo extrajudicial (art. 71, § 3º - CF), torna desnecessária, por falta de interesse processual, a condenação judicial ao ressarcimento, o que expressa novo título executivo para a mesma dívida. 5. Embora a execução possa fundar-se em mais de um título extrajudicial relativo ao mesmo negócio (Súmula 27 - STJ), isso ocorre quando os títulos são decorrentes de um mesmo negócio e gerados como seu efeito direto, não justificando, de forma sucessiva, a produção de outro título (judicial), com a mesma finalidade, já dispondo a parte de um título executivo (extrajudicial) apto a ensejar a execução. 6. Apelação não provida. (ACR 0002178-08.2006.4.01.3310 / BA, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL OLINDO MENEZES, Rel.Conv. JUIZ FEDERAL CARLOS D'AVILA TEIXEIRA (CONV.), QUARTA TURMA, e-DJF1 p.41 de 05/09/2013)
(...) 3. A preexistência de decisão do Tribunal de Contas da União - TCU, em tomada de contas especial, condenando o gestor à devolução dos recursos públicos, com força de título executivo extrajudicial (art. 71, § 3º - CF), torna desnecessária, por falta de interesse processual, a propositura de ação de conhecimento para ressarcimento dos mesmos valores, o que importará novo título executivo para a mesma dívida. 4. Embora a execução possa fundar-se em mais de um título extrajudicial relativo ao mesmo negócio (Súmula 27 - STJ), isso ocorre quando os títulos são decorrentes de um mesmo negócio e gerados como seu efeito direto, não justificando, de forma sucessiva, a produção de outro título (judicial), com a mesma finalidade, já dispondo a parte de um título executivo (extrajudicial) apto a ensejar a execução. 5. Provimento parcial da apelação. (AC 0000278-08.2006.4.01.3304 / BA, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL I'TALO FIORAVANTI SABO MENDES, Rel.Acor. DESEMBARGADOR FEDERAL OLINDO HERCULANO DE MENEZES, QUARTA TURMA, e-DJF1 p.114 de 02/08/2013)
(...) 3. Embora a execução possa fundar-se em mais de um título extrajudicial relativo ao mesmo negócio (Súmula 27 - STJ), isso ocorre quando os títulos são decorrentes de um mesmo negócio e gerados como seu efeito direto, não justificando, de forma sucessiva, a produção de outro título (judicial), com a mesma finalidade, já dispondo a parte de um título executivo (extrajudicial) apto a ensejar a execução. 4. Provimento parcial da apelação. (AC 0000188-97.2006.4.01.3304 / BA, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL I'TALO FIORAVANTI SABO MENDES, Rel.Acor. DESEMBARGADOR FEDERAL OLINDO HERCULANO DE MENEZES, QUARTA TURMA, e-DJF1 p.668 de 24/05/2013)
PROCESSUAL CIVIL. EXTINÇÃO DO PROCESSO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. SUPERVENIENTE FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ÔNUS DA PARTE AUTORA. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE. 1. Não subsiste o interesse processual da União na lide que, inicialmente, foi proposta pelo Município de Itaobim - MG contra seu ex-Prefeito, objetivando o ressarcimento de recurso ao Tesouro Nacional, oriundos de convênio, se houve o trânsito em julgado da decisão do TCU que condenou o requerido em Tomada de Contas Especial, porque essa decisão tem força de título executivo extrajudicial, nos termos do § 3º do art. 71 da Constituição Federal. 2. Correta a sentença que extinguiu o feito, sem exame do mérito, em relação à UNIÃO. É indevida a condenação da UNIÃO para pagar honorários advocatícios porque ingressou na lide depois de ter havido a citação da parte ré e apresentada a contestação. À luz do princípio da causalidade não foi o ente público que deu causa à inclusão da parte ré na lide. 3. Dá-se parcial provimento ao recurso de apelação. (AC 0005935-51.2003.4.01.0000 / DF, Rel. JUIZ FEDERAL RODRIGO NAVARRO DE OLIVEIRA, 4ª TURMA SUPLEMENTAR, e-DJF1 p.792 de 15/03/2013)
A viga mestra do entendimento acima consiste numa possível falta de interesse da União em obter dois títulos executivos sobre o mesmo fato. Isso geraria, no entendimento do TRF1, bis in idem, inviabilizando o pedido de ressarcimento ao erário na ação ordinária ou de improbidade administrativa.
Todavia, esse entendimento não é juridicamente correto, como se demonstrará a seguir.
3. Análise das razões jurisprudenciais
O Código de Processo Civil prevê instrumento adequado para evitar o dito bis in idem, qual seja: a litispendência.
Há “litispendência quando se repete ação, que está em curso; há coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso” (art. 300, § 3º, CPC). A litispendência causa extinção da ação, sem julgamento de mérito, de acordo com o art. 267, inc. V do CPC.
Assim, se existe um instrumento processual adequado, porque o TRF1 não se vale dele? A resposta parece ser porque, na verdade, não existe litispendência.
Entre ação de execução de acórdão do TCU e ação de ressarcimento, não há repetição de ação. Os fundamentos, as possibilidades de argumentos de defesa, a citação, os recursos, os procedimentos, etc, são totalmente diferentes (apesar de ser inegável a conexão). Diferenças naturalmente decorrentes da distinção entre uma ação ordinária e uma ação de execução. Daí porque o TRF1 se vê impossibilitado de se alicerçar no instituto da litispendência.
Este Tribunal vale-se, então, de princípios (do ne bis in idem, da proporcionalidade) para extinguir o pedido de ressarcimento ao erário sem julgamento de mérito, de forma equivocada.
Parece evidente que o bis in idem somente surgirá quando ambas as ações estiverem em procedimento de execução. Vale dizer, somente ocorrerá bis in idem caso a ação de ressarcimento (ou de improbidade) transite em julgado, com condenação de ressarcimento ao erário, e a União também execute o título judicial, além do título extrajudicial (acórdão do TCU). Antes do marco temporal “trânsito em julgado” da ação de conhecimento não há falar em bis in idem.
De fato, a consequência de ambos os títulos (judicial e extrajudicial) será o ressarcimento ao erário. Todavia, isso não implica em tolher do erário público a possibilidade de se ressarcir mediante título executivo judicial, caso o título executivo extrajudicial seja tornado insubsistente ou anulado. É plenamente possível que o acórdão do TCU seja tornado insubsistente pelo próprio Tribunal de Contas, por meio de recurso de revisão, ou que seja anulado via pela judicial, por questões procedimentais.
Noutro giro, pode parecer inútil propor ação de ressarcimento, em face da existência de um título executivo. Todavia, não é assim que acontece.
A concomitância de ações de execução de acórdão do TCU e correlata ação de ressarcimento (ou de improbidade administrativa) ocorrem, em sua grande maioria, porque a ação de conhecimento foi proposta primeiro, havendo o acórdão do TCU sido prolatado tempos depois. Dessa constatação, surgem duas questões.
A primeira consiste na impossibilidade de se condicionar a atuação da AGU e MPF à uma possível prolação de acórdão do TCU. Quando a AGU e o MPF propõem ação de ressarcimento, eles não sabem qual e se haverá julgamento pelo TCU acerca dos mesmos fatos. Também não sabem que tal acórdão terá a mesma dimensão do pedido ressarcitório. Daí porque não se pode afastar, de maneira automática, a possibilidade de concomitância de ação de execução de acórdão do TCU e ação de conhecimento sobre o mesmo fato.
A segunda é que as razões do TRF1 parecem pressupor que um acórdão do TCU sempre será inalterável e que o âmbito do pedido de ressarcimento é o mesmo do título executivo do TCU. Porém, isso nem sempre ocorre.
O Superior Tribunal de Justiça – STJ possui precedente que abona as razões aqui defendidas:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – CONDENAÇÃO AO RESSARCIMENTO DO DANO – EXISTÊNCIA DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL PROVENIENTE DE DECISÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS – CO-EXISTÊNCIA DOS TÍTULOS EXECUTIVOS – POSSIBILIDADE – NÃO-OCORRÊNCIA DE BIS IN IDEM.
12, II da Lei n. 8429/92, inclusive a de ressarcimento integral do prejuízo.
2. A formação do título executivo judicial, em razão da restrição às matérias de defesa que poderão ser alegadas na fase executória, poderá se mostrar mais útil ao credor e mais benéfica ao devedor que, durante o processo de conhecimento, terá maiores oportunidades para se defender.
3. Ademais, não se há falar em bis in idem. A proibição da dupla penalização se restringe ao abalo patrimonial que o executado poderá sofrer. O princípio não pode ser interpretado de maneira ampla, de modo a impedir a formação de um título executivo judicial, em razão do simples fato de já existir um outro título de natureza extrajudicial.
4. Na mesma linha de raciocínio, qual seja, a de que o bis in idem se restringe apenas ao pagamento da dívida, e não à possibilidade de coexistirem mais de um título executivo relativo ao mesmo débito, encontra-se a súmula 27 desta Corte Superior.
Recurso especial provido.
(REsp 1135858/TO, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/09/2009, DJe 05/10/2009)
Muito embora esse precedente seja do ano de 2009, percebe-se pelas ementas posteriores do TRF1 que este Tribunal ainda não se adequou ao entendimento especial.
4. Conclusão
Considerando as razões acima delineadas, não há motivo para o Poder Judiciário extinguir ação de ressarcimento em virtude da superveniente propositura de ação de execução de acórdão do TCU, versando sobre os mesmos fatos.
As causas, os fundamentos, o rito, os recursos, etc, são diferentes, daí porque o instituto da litispendência é inaplicável, afastando também o bis in idem.
É possível que a execução seja extinta em sede de embargos à execução, mas a ação de conhecimento tenha normal prosseguimento. De igual forma, a ação de conhecimento pode ser julgada improcedente, mas o erário público seja ressarcido mediante a ação de execução de acórdão do TCU.
A repetição de ações, que configuraria bis in idem, somente ocorrerá se a AGU ou o MPF requerem o cumprimento de sentença da ação de conhecimento, concomitantemente à existência de uma ação de execução de acórdão do TCU, sendo que ambas versem sobre os mesmos fatos.
Portanto, o entendimento do TRF1, nessa questão, está equivocado.
Advogado da União. Ex-Analista Processual no MPDFT. Ex-Técnico Judiciário no TJDFT.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, Rafael Melo. Execução de Acórdão do Tribunal de Contas da União e Ação de Ressarcimento: possibilidade de concomitância? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 maio 2014, 16:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39507/execucao-de-acordao-do-tribunal-de-contas-da-uniao-e-acao-de-ressarcimento-possibilidade-de-concomitancia. Acesso em: 23 dez 2024.
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