RESUMO: Busca-se, no presente trabalho, analisar o que se considera por “teoria da despatrimonialização”, defendida por concessionários do setor de telecomunicações, ante à falta de doutrina e considerando-se a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL como a primeira entidade a ter de lidar com os casos difíceis no âmbito regulatório. A aplicação dessa teoria, na prática setorial, conduziria à possibilidade ampla e irrestrita de substituição de bens móveis e imóveis próprios, considerados como reversíveis, por contratos de aluguel desses mesmos bens. A ideia é, justamente, observar se a tese adequa-se ou não ao princípio da continuidade, além de se verificar em que medida a tese se subsume ao teor da regra insculpida no art. 12 da Resolução Anatel nº 447/2006. O acolhimento da citada teoria pode gerar o esvaziamento do patrimônio vinculado à concessão, de sorte que, quando referida delegação para a prestação do serviço público vencer, a União, que deverá proceder à nova licitação ou, mesmo, se o caso, voltar a prestar o serviço de telecomunicações em regime público diretamente, não terá a infraestrutura necessária para tanto. Compromete-se, assim, o princípio da continuidade em suas duas facetas (a primeira, de assegurar a prestação adequada e ininterrupta dos serviços públicos e a segunda, a de garantir a própria existência do serviço ao final da concessão). Além disso, princípios como o da atualidade e da modicidade tarifária também restarias vulnerados.
Palavras-Chave: Concessão; Bens Reversíveis; Princípio da Continuidade; Bens de Terceiros; Despatrimonialização; Impactos.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Os Bens Reversíveis e o Princípio da Continuidade. 2. A Teoria da Despatrimonialização dos Bens Reversíveis. 2.1. Teoria da Despatrimonialização: Fundamentos Teórico-Legais; 2.1.1. Da Utilização de Bens de Terceiros; 2.1.2. Da Lista de Bens Reversíveis. 2.2. Impactos e Consequências da Teoria da Despatrimonialização. 2.2.1. Da Utilização de Bens de Terceiros: Direito Subjetivo da Concessionária? Análise da Aplicação da Regra do art. 12 da Resolução ANATEL n. 447/2006; 2.2.2. A Lista de Bens Reversíveis e o Controle dos Bens Reversíveis por parte da ANATEL. 2.3. A Decisão da ANATEL. Conclusão. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A teoria da despatrimonialização, defendida por alguns concessionários do setor, conduz à possibilidade de substituição de bens móveis e imóveis próprios, considerados como reversíveis, por contratos de aluguel desses mesmos bens, sob o argumento de que a continuidade do serviço estaria preservada. Nesse sentido, é importante analisar em que medida a tese se adequa ou não ao princípio da continuidade.
A reforma das telecomunicações brasileiras representou o reconhecimento de que ao Estado não mais caberia a prestação direta destes serviços. Como destaca Sundfeld (2007, p. 57), enquanto o Estado formado no século XIX era nacional, prestador de serviços e fechado, o cenário se alterou no século XX, passando-se a se falar um Estado globalizado, regulador e indefinido, o que gerou, como não poderia deixar de ser, influências no Direito ao qual se submetia. Assim é que tal percepção claramente aumentou a complexidade do setor. Discussões sobre o poder normativo das Agências Reguladoras, com espeque em sua expertise técnica, decorrem do reconhecimento da impossibilidade de o legislador ordinário fazer frente às demandas normativo-técnicas requeridas por tais entes e pela rapidez inerente aos respectivos setores regulados. O instituto da reversão, nesse contexto, é consequência desse aumento de complexidade sentido pela sociedade em geral e pelo setor de telecomunicações em particular: o Estado repassou a prestação dos serviços a delegados particulares, mas não se desvencilhou totalmente dele, tanto que deve assegurar, ao menos no que respeita à telefonia fixa, a sua própria existência. Destarte, não é sem sentido a previsão da reversão na Cláusula 21.1 do Contrato de Concessão para que o princípio da continuidade reste assegurado.
Assim, em um primeiro momento, descrevemos os fundamentos da aqui chamada teoria da despatrimonialização, delineando-se os seus principais pontos, os quais foram primeiramente discutidos em âmbito administrativo, para, depois, discorrer sobre seus impactos e consequências. A ANATEL, como não poderia deixar de ser, é a porta de entrada dos dilemas regulatórios das telecomunicações brasileiras, ante a escassa doutrina nacional que trata do setor que a entidade regula e apesar da judicialização crescente de suas decisões. De todo, modo, não há notícias de que a presente demanda tenha sido levada à análise do Poder Judiciário. Nesse aspecto, de maior importância a decisão tomada pela Agência no caso concreto, a qual será descrita e analisada com base nos referenciais teóricos utilizados como suporte, perquirindo-se sobre sua sustentação jurídico-filosófica.
1. Os Bens Reversíveis e o Princípio da Continuidade.
Submetendo-se a obrigações de continuidade, a exploração do serviço de telecomunicações no regime público requer a construção de institutos que assegurem sua prestação mesmo ao final do Contrato de Concessão assinado entre o Poder Público e a concessionária ou na hipótese de o concessionária não mais puder ou quiser continuar prestando o serviço. Não há dúvidas de que a intervenção e a reversão dos bens afetados à concessão se enquadram nesse ideário.
Para os fins propostos para o presente trabalho, nos deteremos ao instituto da reversão. Para Flores Lenz (2008, p. 181), “bens reversíveis são apenas aqueles diretamente vinculados ao objeto da concessão e que visam à continuidade do serviço público”.
A seu turno, já diziam Pereira Neto e Prado Filho (2008) que “a reversibilidade é uma providência necessária para garantir que a atividade possa continuar a ser prestada após o término do prazo contratual, seja pelo Poder Público, seja por outro particular, via nova relação de concessão de serviço público”. Com efeito, nesse ponto concordamos com os doutrinadores, para reforçar que a ideia de reversão busca assegurar que, ao final do Contrato de Concessão, a continuidade do serviço de telecomunicações prestado sob regime público seja mantida, assegurando que, nesse momento, haverá um patrimônio que possibilitará a manutenção da prestação do serviço mesmo com o termo contratual, seja mediante prestação direta da União, seja mediante nova delegação, sem que se fale em solução de continuidade.
Exatamente por isso, são inúmeros os condicionamentos que incidem sobre os referidos bens. Nesse sentido, os bens enquadrados como reversíveis são inalienáveis e impenhoráveis, sendo que qualquer operação que os envolva deve ser precedida de prévia anuência da ANATEL. Nesse sentido, inclusive, posiciona-se Alexandre Santos de Aragão (2013, p. 591):
Poder-se-ia dizer que, durante a concessão, são de propriedade privada, sujeita a uma série de ônus reais (inalienabilidade, impenhorabilidade e destinação predeterminada) e à condição resolutiva do fim da delegação. A assertiva depende de o bem ter sido afetado ao serviço público antes ou depois da concessão, já que, em qualquer hipótese, o regime de sua gestão e eventual disposição pela concessionária é o mesmo. Tanto é assim, que há em geral a previsão nos contratos de concessão de a alienação dos bens reversíveis, sejam eles anteriores ou posteriores à concessão, deve ser previamente autorizada pelo poder concedente.
Feitas tais digressões, far-se-á, em seguida, uma análise do que se considera por teoria da despatrimonialização dos bens reversíveis, buscando-se descrevê-la e estudar os impactos e consequências de sua adoção prática por parte da ANATEL.
2. A Teoria da Despatrimonialização dos Bens Reversíveis[1].
O que se convencionou, aqui, de denominar de “teoria da despatrimonialização” foi abordado em um procedimento de Anuência Prévia em curso perante a ANATEL, no qual uma das concessionárias do setor buscava a alienação de um bem imóvel seu que se destinava a fins administrativos. Indagava-se, portanto, se um imóvel administrativo utilizado pelas concessionárias dos serviços de telecomunicações, assim considerados aqueles nos quais não se encontram instalados e em operação atividades fins de tais prestadoras, estariam sujeitos ao regime de reversibilidade previsto na LGT. Intenta-se, aqui, verificar os argumentos utilizados pela concessionária de passagem mais do que o resultado final do processo administrativo respectivo, tendo em vista sua importância teórica.
2.1. Teoria da Despatrimonialização: Fundamentos Teórico-Legais.
Para os defensores da teoria da despatrimonialização, o instituto da reversão deve ser visto sob a ótica dos objetivos que se buscam alcançar com ele. Assim é que, a partir de uma visão meramente patrimonial, seriam reversíveis, ao final da concessão, todos os bens integrantes do patrimônio da concessionária. Nesse sentido, “seriam reversíveis todos os bens de uma concessionária, dado o fato de serem eles (bens) atrelados ao domínio, direto ou indireto, do poder público titular do serviço público”:
Sob a abordagem estritamente patrimonial, o fundamento para uma reversibilidade de bens adviria do fato deles integrarem a concessão desde o início do respectivo contrato, ou da circunstância deles terem sido adquiridos, direta ou indiretamente, como fruto da exploração de uma atividade reservada ao Estado. Segue daí que por esta linha patrimonialista, ao fim do período de concessão seriam obrigatoriamente incorporados ao patrimônio do poder concedente todos os bens integrantes do patrimônio da concessionária.
Os primeiros, porquanto retornariam ao patrimônio público “de onde saíram” quando firmado o contrato.
Os segundos, em decorrência do fato de que a concessionária teria se valido do lucro obtido com a prestação do próprio serviço para adquiri-los.
Para os defensores de tal entendimento, a busca pelo interesse público estaria relacionada com a maximização do conceito de bem reversível, ampliando-se o seu rol para que o poder público, ao final da concessão, angariasse o maior número de bens possíveis, incorporando-os ao seu patrimônio. Ou seja, segundo uma visão patrimonialista, a reversibilidade de bens acaba sendo utilizada como verdadeira fonte de enriquecimento do erário.
Além disso, o regime de reversibilidade produz onerações que atingem tanto o poder público quanto o serviço outorgado. O primeiro exemplo disso encontra-se disposto no art. 36 da Lei nº 8.987/1995, o qual prevê o pagamento de indenização das parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis que não foram amortizados ou depreciados. Ou seja, a reversão não consiste em instituto que gera a aquisição gratuita de patrimônio para o poder público. Já o segundo aspecto quanto à oneração causada pela visão patrimonial do regime de reversibilidade consistiria nos ônus decorrentes da administração desses bens, de modo que o poder público despenderia recursos, humanos e financeiros, para acompanhar a evolução patrimonial das concessionárias. Finalmente, a adoção de uma visão meramente patrimonialista ensejaria a consequência de que, próximo do prazo para o término dos contratos de concessão, haveria, por parte das concessionárias, um incentivo para o não investimento, pois, apesar da previsão de indenização prevista no art. 36 da Lei nº 8.987/1995, haveria dúvidas quanto ao seu valor, capazes de frear investimentos.
Destarte, para as concessionárias do setor, a análise do instituto da reversibilidade dos bens “não admite uma visão patrimonialista pura a partir da qual defender o interesse público seria sempre sinônimo de maximizar os bens que viessem reverter ao patrimônio público ao cabo da concessão”. Tendo em vista tal cenário, destacam os defensores da teoria comentada:
Um sopesamento se impõe, a fim de que se equilibrem os ônus e os bônus e não se venha, olhos postos apenas num resultado contábil ao final da concessão, a ignorar todo o conjunto de consequências que advem de um regime de reversibilidade com maior ou menor alcance de bens que retornem ao patrimônio do poder concedente.
A partir de todos esses elementos, colhem-se ao menos duas importantes conclusões.
A primeira, de que pode haver gradações no regime de reversibilidade de bens.
(...)
A segunda conclusão, que em parte deriva da primeira, é a de que o regime de reversibilidade de bens integra o equilíbrio econômico-financeiro de um contrato de concessão.
Assim, após criticar uma visão meramente patrimonial do instituto da reversão, propôs-se que ele fosse abordado sob uma ótica funcional, de modo que a reversão não teria o condão de alcançar todos os bens das concessionárias, pois intimamente relacionada com a necessidade de se garantir que os serviços públicos concedidos continuassem a ser prestados de forma regular após o término da concessão:
O cerne dessa visão funcional é que a reversão dos bens não configure uma forma de “recomposição” do patrimônio público. O fundamento e os propósitos para a reversibilidade dos bens se voltam a uma função desses bens: o objetivo perseguido não é o de fundo patrimonial estrito, mas a continuidade da prestação do serviço público.
Em outros termos, os bens reversíveis não podem corresponder à totalidade dos bens da concessionária, mas apenas àqueles que sejam indispensáveis à continuidade da prestação do serviço concedido. Assim, exsurge que, para a classificação de um bem como reversível, deve-se estar mais atento ao conceito de afetação do que ao de titularidade.
Em suma, o bem reversível não pode ser definido como todo bem que seja de titularidade das concessionárias, importando na reversão, ao final da concessão, de todos os bens de titularidade desta (aspecto patrimonial), mas apenas como aqueles indispensáveis à continuidade da prestação do serviço concedido (aspecto funcional). Nesse cenário, os imóveis administrativos utilizados pelas concessionárias de serviços de telecomunicações, assim considerados aqueles nos quais não se encontram instalados e em operação atividades fins dessas prestadoras, não seriam bens sujeitos ao regime de reversibilidade previsto na Lei Geral. Isso porque, do ponto de vista funcional, não se tratariam de bens que se mostrem indispensáveis à continuidade e à atualidade da prestação do STFC.
2.1.1. Da Utilização de Bens de Terceiros.
Para os defensores da teoria da despatrimonialização, instrumento importante para assegurar a continuidade do serviço seria a utilização de bens de terceiros para o cumprimento dos deveres regulamentares decorrentes do Contrato de Concessão. De fato, tanto a LGT quanto a regulamentação editada pela ANATEL permitem que a concessionária faça uso de bens de terceiros para o cumprimento dos seus deveres. Ou seja: ainda que o imóvel administrativo da concessionária seja considerado como bem reversível na análise do caso concreto, deveria a ANATEL autorizar sua alienação, substituindo-se tal bem próprio por um contrato de aluguel com terceiro, no qual deveria constar cláusula de sub-rogação à Agência.
O Regulamento de Controle de Bens Reversíveis vigente, aprovado pela Resolução ANATEL nº 447/2006, preconiza nesse sentido, afirmando que a concessionária, na utilização de bens de terceiros ou de serviços contratados, deve fazer constar, nos contratos respectivos, cláusula pela qual o contratado se obriga, em caso de extinção da concessão ou permissão, a mantê-los e a sub-rogar à Anatel os direitos e obrigações deles decorrentes, além do direito da Agência de sub-rogar a outros[2]. Ou seja, a continuidade do serviço estaria garantida, tendo em vista que o contratado se obriga, extinta a concessão ou permissão, a mantê-los e a sub-rogar à Agência os direitos e obrigações deles decorrentes. É claro que tal situação depende de expressa autorização da Agência.
Desta forma, ainda que os imóveis administrativos das concessionárias fossem considerados, no caso concreto então em análise pela ANATEL, como bens reversíveis, ainda assim seria possível sua alienação, tendo em vista que bastaria que as prestadoras substituíssem o bem próprio por um bem alugado de terceiro, ali alocando sua sede administrativa, fazendo constar no contrato assinado com o terceiro cláusula de sub-rogação dos direitos e obrigações decorrente do acordo, o que seria capaz de assegurar a continuidade que se busca resguardar com o instituto da reversão.
2.1.2. Da Lista de Bens Reversíveis.
Para a teoria da despatrimonialização, não seria possível indicar como reversível qualquer outro bem que não constasse da Lista de Bens Reversíveis, prevista nos Contratos de Concessão assinados entre poder público e concessionários, para outorga da prestação do serviço de telecomunicações prestado em regime público. Destarte, o disposto na Cláusula 21.1 dos Contratos de Concessão do STFC, ao dispor que integram o acervo da concessão, sendo a ela vinculados, todos os bens pertencentes ao patrimônio da Concessionária, bem como de sua controladora, controlada, coligada ou de terceiros, e que sejam indispensáveis à prestação do serviço ora concedido, especialmente aqueles qualificados como tal no Anexo 01 – Qualificação dos Bens Reversíveis da Prestação do Serviço Telefônico Fixo Comutado Local, não pode levar à suposição de que este rol seria aberto, ou seja, que não se limitariam àqueles constantes da lista:
Ocorre (...) que alguns elementos já vistos no decorrer deste parecer afastam uma ampla discricionariedade do regulador ao inserir, pela via interpretativa, outros bens ao rol.
Primeiramente, temos o disposto no art. 94 da mesma lei [LGT]. Trata-se de disposição legal que não se harmoniza com visão meramente patrimonialista, dado que admite o emprego de bens de terceiros até mesmo na execução do serviço. Assim, não se pode ampliar o rol fundando em visão patrimonialista.
Ao lado do art. 94, o art. 93, inciso XI impõe que o contrato de concessão indique os bens reversíveis. Não se trata de mera faculdade, mas de dever. Como já visto, essa indicação é necessária porquanto o perfil de reversibilidade dos bens constitui elemento que integra o equilíbrio econômico-financeiro da avença. Não pode, pois, haver surpresas a respeito.
Vimos, assim, as principais características da teoria da despatrimonialização. Os argumentos utilizados por quem a acolhe, partindo-se de uma leitura menos acurada, são sedutores. No entanto, é importante fazer o raciocínio reverso para que se descrevam os impactos e consequências da adoção prática de tal entendimento por parte da ANATEL. É o que se pretende no tópico a seguir.
2.2. Impactos e Consequências da Teoria da Despatrimonialização.
Neil Maccormick (2008, p. 139) já dizia que, “se quisermos descobrir como as consequências podem ser relevantes para justificar as decisões, temos que olhar para além das consequências causais e dos resultados particulares”:
Uma parte necessária da justificação dessas sentenças consiste em mostrar que elas não contradizem regras jurídicas validamente estabelecidas. Uma outra parte adicional consiste em mostrar que elas estão apoiadas em princípios jurídicos estabelecidos ou em analogias próximas e razoáveis feitas a partir de regras jurídicas estabelecidas, sempre que algum princípio defensável sustente a relevância da analogia. Mas esses fundamentos de justificação, ainda que sempre necessários, não são de forma alguma sempre suficientes ou conclusivos para favorecer ou afastar uma conclusão possível em um dado caso. O argumento conclusivo ou definitivo de um caso, quando ele ainda permanece em aberto após esse teste de consistência e coerência, é um argumento sobre as consequências (..). (Maccormick, 2008, p. 139-140)
Não há dúvidas de que a questão referente à justificação das decisões tomadas pelas Agências Reguladoras tem importância nodal no que atine à sua legitimidade democrática. Aliás, nesse sentido defende Rosanvallón (p. 142). Segundo ele, um dos fatores que interfere na legitimação democrática das autoridades independentes seria, justamente, o processo de tomada de suas decisões, em geral realizadas por um colegiado de cinco a dez membros, intercambiando argumentos e informações, após o confronto com as apreciações desses membros, podendo, inclusive, alterar o seu posicionamento ao longo do processo.
Essa é a linha de raciocínio que tentaremos seguir aqui. Primeiramente, observaremos que a argumentação defendida no presente trabalho não contradiz a regra estabelecida no art. 12 da Resolução ANATEL 447/2006. Além disso, buscaremos analisar que o princípio da continuidade, na verdade, baliza o entendimento aqui defendido, em consonância com as demais regras e princípios que fundamentam o instituto da reversão. Ao final, será necessário, ainda, descrever as consequências da adoção da Teoria da Despatrimonialização, verificando-se em que medida seus argumentos poderiam ou não ser universalizados[3].
Além disso, é de se consignar que as ideias liberais encontram-se impregnadas nos argumentos utilizados para defender a teoria da despatrimonialização. Ora, a bem da verdade, em seu âmago está o entendimento de que deve a ANATEL se abster de intervir na vida privada, possibilitando total liberdade de gestão do serviço para as concessionárias. Tal raciocínio é muito utilizado na seara concorrencial e tem sido comumente transposto para o tema da reversibilidade. Aqui, inclusive, é interessante pontuar que uma das críticas que se faz à ANATEL, no que se refere ao controle dos bens reversíveis, é justamente o fato de a Agência acabar utilizando apenas as informações das empresas, o que gera dependência do ente regulador ao ente regulado e dúvidas quanto à fidedignidade das informações.
Assim, pretende-se demonstrar que as críticas ao regime de reversibilidade trazido pela Lei Geral, assim como muitos argumentos contrários a uma atuação preventiva da Agência na seara concorrencial, “partem de premissas equivocadas, com lastro nas ideias decorrentes de um paradigma de Estado e de Direito Liberais, cujo auge se verifica no século XVIII e que se encontra, atualmente, superado pelo paradigma da Modernidade”[4]. Estamos, hoje, na fase do Estado Regulador. Como destaca Marcio Iório Aranha (2013b, p. 68) apesar de o Estado não prestar diretamente determinado serviço (como ocorre no caso das telecomunicações, de que detém a titularidade), não é possível afirmar que ele esteja intervindo menos:
A regulação normativa centralizada permite que sejam identificadas, no Estado, atividades de fomento, regulamentação, monitoramento, mediação, fiscalização, planejamento e ordenação da economia sem que ele assuma a prestação direta dos serviços. (...) O fato do Estado não mais intervir sob o ponto de vista operacional – de não mais prestar diretamente uma utilidade à população – não significa que ele esteja intervindo menos. Tanto é assim, que o que caracteriza o conceito de agência reguladora (...) é a estrutura normativa de maior intervencionismo estatal, pois a política de baixo intervencionismo estatal é abraçada pela forma tradicional de regramento jurídico geral, abstrato e totalizante, que transfere ao Judiciário a solução das peculiaridades geradas pela dinâmica social; é a crença de que a mão invisível do mercado solucionará percentual elevado de transgressões normativas e que o Poder Judiciário lidará com o ilícito remanescente.
Interessante citar as lições do mesmo autor, no que toca aos conceitos de regulação e desregulação. Segundo ele (2013b, p. 90), tais definições não pressupõem o absenteísmo estatal completo, ou seja, a indiferença do Estado dirigida a uma determinada atividade social. Antes disso, regulação e desregulação estão intimamente conectadas, pois esta não significaria a inexistência daquela: “a desregulação eventualmente proposta em um determinado setor de atividades relevantes significa, portanto, não a extinção da regulação, mas a diminuição de apenas uma dimensão da regulação estatal”, qual seja, aquela “que procura dirigir o mercado ou impor compensações pelos benefícios garantidos pelo Estado para quem nele opera negócios”.
Destarte, veremos a seguir o porquê de não se poder admitir a adoção da teoria da despatrimonialização por parte da ANATEL, que, ao pressupor o afastamento da Agência no que toca ao efetivo controle dos bens reversíveis, cuja administração, por conseguinte, deveria ser repassada às concessionárias para que estas, fulcradas nas ideias de liberdade privada e de gestão negocial, decidissem o destino desse patrimônio, acabaria colocando em risco a própria modicidade tarifária e a continuidade da prestação do serviço de telecomunicações prestado no regime público ao final do Contrato de Concessão ou na hipótese de a entidade outorgada, antes disso, não mais querer ou poder prestá-lo.
Para análise da presente teoria, não devemos nos esquecer da premissa de aumento da complexidade social. Com efeito, mesmo as ciências da natureza tiveram de abandonar a ideia de lei universal da natureza que pudesse explicar inteiramente os processos físicos, de modo que “não é possível, num mundo abarcado por estruturas complexas, instáveis e indeterministas, buscar a explicação geral dos processos elementares” (Araújo Pinto, 2002, p. 98-99). O Direito não ficou imune ao movimento: reconhecendo os limites e possibilidades do positivismo jurídico, a ideia de complexidade social é premissa que está presente na filosofia luhmanniana e que pode ser visualizada no caso que se pretende analisar. De fato, como assevera Araújo Pinto (2002, p. 173), ao tratar da obra do escritor alemão, “a teoria sociológica só se justifica como proposta de solução para o problema crucial que se apresenta: abarcar a complexidade de um mundo socialmente contingente”.
Dessa forma, não teríamos como resolver o presente caso com a simples aplicação subsuntiva da regra disposta no art. 12 da Resolução ANATEL nº 447/2006: nela, possibilita-se a utilização de bens de terceiros para o cumprimento de obrigações regulamentares. Todavia, indaga-se: a substituição de bens reversíveis, próprios, por contatos de alugueis, pode ser abarcada por ela?
Para afastar os argumentos enumerados pela teoria da despatrimonialização, devemos retornar às lições de Ronald Dworkin (2010). Uma das grandes críticas da teoria do autor ao positivismo jurídico seria, justamente o fato de esta corrente fornecer uma teoria dos casos difíceis (hard cases). Assim, para a resolução do problema, do ponto de vista positivista:
Quando uma ação judicial específica não pode ser submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma instituição, o juiz tem, segundo tal teoria, o “poder discricionário” para decidir o caso de uma maneira ou de outra. Sua opinião é redigida em uma linguagem que parece supor que uma ou outra das partes tinha o direito preexistente de ganhar a causa, mas tal idéia não passa de uma ficção. Na verdade, ele legisla novos direitos jurídicos (new legal rights), e em seguida os aplica retroativamente ao caso em questão. (...)[5]
Os defensores da teoria da despatrimonizalização buscam subsumir os casos que possuem em seu bojo a substituição de bens reversíveis por bens de terceiro a uma regra, quando, na verdade, demandam uma tarefa mais complexa por parte do intérprete. Para o positivista, o caso descrito no presente trabalho seria considerado como um caso difícil e, por isso, haveria uma ampla discricionariedade do decisor. Não é isso que pretendemos defender aqui, pois, para a análise do caso em tela, devemos recorrer às lições de Dworkin a partir das críticas direcionadas pelo autor ao positivismo.
Nesse aspecto, devemos ter em mente as distinções trazidas por Dworkin entre argumentos de princípios e argumentos de política, considerando-se que, para ele, o juiz não pode e nem deve ser considerado como legislador delegado, tal qual faz crer a teoria positivista dos casos difíceis. Para ele, “os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo”. Já os argumentos de princípio “justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo”. Não se está aqui a dizer que uma decisão judicial não irá sofrer interferências de outro ambiente; com efeito, até mesmo a Constituição, ápice do ordenamento jurídico, consiste no acoplamento estrutural entre Direito e Política[6]. O que se está aqui a afirmar é a força normativa dos princípios, que, juntamente com as regras, integram o ordenamento jurídico.
Cumpre-nos, assim, a utilizar esse referencial teórico para refutar a teoria da despatrimonialização, objeto do presente trabalho. Além disso, também se reputa relevante analisar a decisão da ANATEL no caso concreto para se verificar em que medida essa linha de pensamento foi adotada, já que, conforme defende Dworkin (2010, p. 132), “as decisões judiciais nos casos civis, mesmo em casos difíceis (...) , são e devem ser, de maneira característica, gerados por princípios, e não por políticas”. Para Dworkin, o Direito tem, portanto, capacidade de sempre fornecer uma resposta aos casos que são postos à sua análise, apartada da necessidade de se depender da discricionariedade do juiz, o que o levou a criticar a teoria de Hart.
2.2.1. Da Utilização de Bens de Terceiros: Direito Subjetivo da Concessionária? Análise da Aplicação da Regra do art. 12 da Resolução ANATEL n. 447/2006.
No âmbito das telecomunicações, existem normas que tratam de assegurar o princípio da continuidade na prestação dos serviços públicos, enquanto outra permite a utilização de bens de terceiros no cumprimento de obrigações regulamentares. A teoria da despatrimonialização pretende se valer desta segunda norma jurídica para possibilitar a substituição de bens próprios reversíveis por contratos de alugueis, utilizando-se bens de terceiros no cumprimento de suas obrigações regulamentares. Maccormick (2008, p. 249) já se debruçava sobre a questão, perguntando “por que um conjunto de normas jurídicas pode, às vezes, parecer incoerente, mesmo quando, em conjunto, elas não são inconsistentes?”. Nesse passo, Maccormick (2006, p. 197) fala em coerência, “no sentido de que as numerosas normas de um sistema jurídico deveriam ‘fazer sentido’ quando consideradas em conjunto”.
Assim é que a LGT, em seu art. 94, prevê a possibilidade de a concessionária utilizar, para o cumprimento de seus deveres, equipamentos e infraestrutura que não lhe pertençam na execução dos serviços. O já citado art. 12 da Resolução ANATEL nº 447/2006 afirma que, para tanto, deverá a prestadora fazer constar, nos contratos respectivos, cláusula pela qual o contratado se obriga, em casos de extinção da concessão ou permissão, a mantê-los e a sub-rogar à ANATEL os direitos e obrigações deles decorrentes, além do direito de a Agência sub-rogar a outros. Além disso, segundo o § 1º do mesmo dispositivo, preconiza que tais contratos e suas alterações, inclusive propostas de rescisão, devem ser submetidos à anuência prévia da Agência Reguladora.
Os defensores da teoria da despatrimonialização entendem que se trata de direito subjetivo da concessionária. Inclusive, destacam que o regramento regulamentar citado serve para reforçar a ideia de que, no que se refere aos bens reversíveis, não deve prevalecer uma visão estritamente patrimonial, devendo prevalecer, na verdade, uma visão funcional, segundo a qual devem ser reversíveis apenas aqueles bens indispensáveis à continuidade do serviço prestado. Nesse sentido, aliás, manifesta-se expressamente Marques Neto (2004, p. 112), o qual, ao tratar da previsão contida no já citado art. 94 da LGT, assim preconiza:
Mas o regime legal de reversão no setor de telecomunicações tem mais um traço digno de nota. Trata-se da autorização expressa, legal e contratual, para que a concessionária empregue na prestação do serviço concedido bens, equipamentos e infra-estrutura que não seja de seu domínio.
(...)
A regra legal, como não poderia deixar de ser, é repisada pela Cláusula 15.2 que prescreve, dentre os direitos da concessionária, a possibilidade de “empregar na execução os serviços, equipamentos e infra-estrutura que não lhe pertençam observado o disposto na cláusula 21.1.”.
A possibilidade de utilização de bens de terceiros ou serviços contratados é inerente à realidade do setor de telecomunicações. Aliás, um dos grandes percalços encontrados pelo Estado para a promoção da concorrência no mercado de telecomunicações consiste justamente na criação de medidas que incentivem a entrada de novos players, considerando que o acesso à infraestrutura é essencial para o alcance desse objetivo. Resumidamente, pode-se dizer que, em função da dificuldade de duplicação da infraestrutura de telecomunicações, o setor foi considerado por muito tempo como monopólio natural.
A introdução da concorrência no setor, um dos pilares da reforma empreendida nos anos 90 com o leilão do Sistema Telebrás, gerou a percepção de que seria necessário evitar a multiplicidade de investimentos em redes. Nesse sentido, a LGT incentiva o compartilhamento de infraestrutura e a interconexão, de modo a evitar o dispêndio de investimentos desnecessários em redes: a ideia é aproveitar a infraestrutura que já existe, e, para tanto, é necessário que se autorize a utilização de bens de terceiros ou de serviços contratados.
O instituto da interconexão, consistente na “ligação entre redes de telecomunicações funcionalmente compatíveis, de modo que os usuários de serviços de uma das redes se comuniquem com usuários de serviços de outras”[7], e do compartilhamento de infraestrutura, destinado a garantir que os concorrentes do detentor da infraestrutura essencial à prestação do serviço tenham acesso a ela, em condições igualitárias, portanto, representam os maiores incentivadores e justificadores da proposição normativa que permite a utilização de bens de terceiros ou serviços contratados na prestação do serviço concedido.
Dito isto, observa-se que a previsão regulamentar citada, no sentido de que a concessionária poderá utilizar bens de terceiros ou serviços contratados, é coerente com a sistematização proposta para o setor desde a época da privatização do Sistema Telebrás. Por motivos de eficiência econômica ou mesmo impossibilidade (física, econômica ou ambiental, de duplicação de infraestrutura), possibilitou-se aos entes regulados a utilização de bens de terceiros ou de serviços contratados.
Duas observações fazem-se relevantes aqui. A primeira delas serve para atentar que a regulamentação setorial autoriza a utilização de bens de terceiros e de serviços contratados na prestação do serviço outorgado. Questão mais delicada, e que não pode ser resolvida por mera subsunção do caso ao texto regulamentar, consiste na substituição de bem próprio por contratos de alugueis de bens de terceiros. Não sendo possível aplicar a regra regulamentar ao caso em tela, ainda assim deve o Direito fornecer a resposta para solucioná-lo. Nesse ponto, importante reconhecer a eficácia normativa dos princípios.
Já a segunda nos indica que essa substituição, se e quando autorizada, deve ser precedida de autorização prévia da ANATEL. Para Pereira Neto (2009), apesar de haver fundamento jurídico que justifique tal requisito para a operação que envolva a utilização de bens de terceiros, não deteria a Agência capacidade gerencial para a avaliação de tais contratos:
Não obstante a possibilidade de se exigir anuência prévia nesse caso, em função da existência de previsão contratual, a obrigação ainda seria discutível por questões gerenciais – i. e., a capacidade de a Anatel avaliar tais contratos. Seria salutar a previsão de restrições a essa obrigação, conforme expressamente permitido pelo Contrato de Concessão, a fim de evitar impactos desnecessários na gestão das Concessionárias. Nesse contexto, o enfoque da Resolução Anatel n. 447/2006 parece ter sido a ampliação desmedida da ingerência do órgão regulador, para além de suas próprias capacidades gerenciais, ao invés de propiciar um ambiente transparente e, ao mesmo tempo, desburocratizado para o gerenciamento dos bens reversíveis.
Não concordamos com a afirmação exposta por Pereira Neto. Além de se basear exclusivamente em argumentos de política, na nomenclatura dworkiniana, a exigência de anuência prévia para a realização de determinadas operações no setor de telecomunicações não pode ser considerada como “impacto desnecessário”; ao contrário, relaciona-se ao interesse da Agência em se manifestar previamente à sua consolidação. Em outras palavras, a regulamentação aplicável entende que, para certas hipóteses, os interesses privado e público estarão em equilíbrio com a apresentação prévia da operação ao crivo da entidade reguladora, pois as consequências podem ser desastrosas se tais operações forem efetivadas sem a sua análise no que tange aos benefícios ou malefícios que podem surgir para o setor.
Deste modo, a LGT, em seu art. 97, exige anuência prévia da Anatel para a cisão, a fusão, a transformação, a incorporação, a redução do capital da empresa ou a transferência de seu controle societário. A finalidade da norma consiste justamente em assegurar que a movimentação não acarretará prejuízo à competição e não colocará em risco a execução do contrato respectivo (conforme parágrafo único do mesmo dispositivo). Ora, tendo a Anatel importante papel na defesa e promoção da concorrência no setor de telecomunicações, dinâmico por natureza, incumbe a ela impedir operações societárias que gerem comportamentos anticompetitivos.
No caso de concluir pela possibilidade de utilização de bens de terceiros que venham a ser considerados como bens reversíveis, a preocupação é avaliar se a operação pretendida não é prejudicial à continuidade do serviço prestado em regime público, considerado como aquele cuja existência deve ser assegurada pelo Poder Público (princípio de direito público da continuidade), bem como se não acarretariam outros danos a vetores caros ao setor, como a garantia da atualidade e da modicidade tarifária. Com efeito, competirá à Anatel, na hipótese, verificar em que medida tais objetivos encontram-se ameaçados com a pretensão veiculada.
Diante disso, a exigência de prévia anuência da Anatel na hipótese não é desarrazoada, sendo, na verdade, essencial para que a Agência avalie os impactos daquela operação na hipótese de retomada do serviço pela União, para que esta, se o caso, possa prestá-lo imediatamente, sem solução de continuidade. Outrossim, é de vital importância deixar claro o impacto da operação na modicidade tarifária, pois não há dúvidas de que a existência de bens reversíveis acaba sendo levada em consideração para o estabelecimento das tarifas a serem pagas pelo consumidor.
De tudo isto se depreende que a utilização de bens de terceiros na prestação dos serviços concedidos, quando falamos de bens reversíveis, não consiste em direito subjetivo da concessionária, como parece defender Marques Neto e Pereira Neto. Ao solicitar a substituição de um bem reversível próprio por bem de terceiro, como não há subsunção perfeita do caso à regra regulamentar, deve a ANATEL avaliar os benefícios ou prejuízos oriundos da operação, especialmente para a hipótese de o Poder Público ter de assumir novamente, por qualquer motivo, a prestação do serviço ou para o caso de nova licitação ao final do Contrato de Concessão. Ou seja, incumbe à Agência analisar se a operação gera riscos ao princípio de direito público da continuidade, ameaçando a própria existência do serviço, a sua prestação ininterrupta, bem como avaliar se haverá desagregação de valor à concessão como um todo.
Acolhida a tese da despatrimonialização, a concessão corre sério risco de se esvaziar, pois a interpretação, levada ao extremo, pode indicar que todo e qualquer bem da concessão pode ser substituído por bem de terceiro, quando não é esse o intento regulamentar. A reforma do setor, empreendida nos anos 90, quis agregar a expertise técnica das Agências à eficiência econômica do setor privado. Nesse sentido, a Agência, tendo em conta o fato de que o setor de telecomunicações é dinâmico por natureza, possibilitou a utilização de bens de terceiros na prestação do serviço concedido, mas não para que houvesse a completa substituição do patrimônio próprio reversível por contratos de alugueis com terceiros.
2.2.2. A Lista de Bens Reversíveis e o Controle dos Bens Reversíveis por parte da ANATEL.
A teoria da despatrimonialização entende que a lista de bens reversíveis citada na Cláusula 21.1 dos Contratos de Concessão tem natureza de rol fechado e que, por isso, não poderia a Agência incluir mais bens em seu âmago.
Para melhor entender a importância do argumento, cumpre-nos, inicialmente, transcrever o art. 6º, § 1º, da Lei das Concessões, segundo a qual “serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”.
O dispositivo é autoexplicativo. Para o raciocínio ora empenhado, destaca-se a característica da atualidade, no sentido de compreender “a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço” (conforme § 2º do art. 6º da Lei n. 8987/1995).
Pois bem. Segundo Márcio Iório Aranha (2013, p. 51), a discussão sobre a reversibilidade ou não da infraestrutura denominada backhaul gerou divergências entre Regulador e regulado:
Em meio à divulgação da lista de bens reversíveis, surgiu como ponto de fricção entre ANATEL e operadoras do STFC a definição da infraestrutura de banda larga passível de inserção dentre os bens reversíveis. Enquanto para a ANATEL, todo o investimento em infraestrutura em que trafegasse o serviço de voz seria reversível, para as operadoras, as redes de fibra óptica não deveriam ser computadas na lista de bens reversíveis por estarem predominantemente dedicadas ao tráfego de dados via Serviço de Comunicação Multimídia. Não por acaso, a lista de bens reversíveis declaradas pelas operadoras fora composta predominantemente por infraestrutura de cabos de par trançado de cobre.
Destarte, ao afirmar que o rol constante da Lista de Bens Reversíveis seria taxativo e, por isso, não poderia a ANATEL incluir ali qualquer outro bem, poder-se-ia chegar à conclusão de que a característica da atualidade não poderia ser efetivamente realizada, pois apenas os bens previstos quando do Leilão do Sistema Telebrás como reversíveis é que poderiam ser como tal considerados, sendo imutável até o final da Concessão.
Finalmente, é possível identificar uma contradição na teoria da despatrimonialização quanto ao ponto, pois, não sendo possível à ANATEL incluir bens na Lista de Bens Reversíveis, também não poderia a Agência substituir bens dessa mesma lista. Nessa linha de pensamento, é importante entender que a Lista de Bens Reversíveis cumpre importante função no controle dos bens reversíveis por parte da Anatel. Aranha (2012, p. 121-122) nos lembra que à Agência foram imputadas acusações de efetivo descontrole do patrimônio reversível e destaca que tal situação deve-se em muito à fase de “transição de uma administração concentrada na prestação direta de serviços pelo Estado para uma administração desconcentrada de prestação de serviços por contratos administrativos”. Teria havido, assim, uma grande preocupação em se assegurar a expertise técnica da Agência, mas, por outro lado, seria possível notar uma falha em se garantir a expertise administrativo-gerencial do ente autárquico.
No entanto, ao apresentar como reversíveis apenas os pares trançados de cobre, deve a ANATEL atentar para a real intenção das concessionárias, para repassar ao Poder Público, com o termo do Contrato de Concessão, apenas aquele patrimônio obsoleto que, apesar de servir à prestação da telefonia fixa, não obedece ao critério de atualidade, prejudicando, assim, que as demais características do serviço adequado sejam repassadas aos usuários.
2.3. A Decisão da ANATEL.
A ANATEL formatou sua decisão por meio do Despacho nº 2.262/2012-CD, da lavra do Conselho Diretor da Agência, o qual, por sua vez, adotou os termos da Análise nº 131/2012-GCRZ, datada de 9 de março de 2012. O princípio da continuidade remanesceu como vetor para a decisão do órgão máximo da Agência.
Inicialmente, tal Análise descreveu, sucintamente, os ônus (universalização, continuidade e sujeição a regime de controle tarifário) e bônus da concessão para a prestação do serviço telefônico fixo comutado. Como bônus, teríamos assim a possibilidade de utilização dos bens reversíveis durante o prazo da concessão, “principalmente das redes que dão suporte ao serviço, que pode compensar a assunção das obrigações de universalização, continuidade e controle tarifário”:
Sob essa lógica, o aspecto patrimonial dos bens reversíveis não pode ser afastado, como sugerido pela Concessionária, pois assume uma importância fundamental para assegurar a viabilidade econômica da prestação do serviço durante e após a extinção da concessão, visto que são os bens concedidos, tangíveis e intangíveis, que asseguram a viabilidade econômica e a competitividade das concessionárias em um mercado disputado com empresas operando no regime privado.
Em seguida, o Conselheiro Relator, em sua Análise, passou a tratar da abrangência do instituto da reversibilidade, considerando que esta deve observar não apenas o aspecto patrimonial, mas também o aspecto funcional dos bens vinculados à concessão. Para a consideração do aspecto funcional, princípios como o da regularidade, segurança, generalidade, atualidade, cortesia, eficiência e modicidade tarifária não poderiam ser descartados. Já em relação ao aspecto patrimonial, é importante notar a sua influência nas ideias de eficiência da concessão e de modicidade tarifária.
Além disso, destaca que o reconhecimento do aspecto patrimonial não significa a necessária oneração do Tesouro, já que: (i) apenas serão indenizados os bens não amortizados, (ii) existe a possibilidade de a Agência recusar a reversão de bens que não estejam em perfeitas condições de operacionalidade ou que sejam prescindíveis ou inaproveitáveis e (iii) o eventual pagamento de indenização por parte da União poderá ser recuperado na hipótese de uma nova concessão. A reversão, portanto, seria essencial para a garantia de continuidade do serviço, mas sem ruptura de qualidade ou aumento tarifário desnecessário.
A ANATEL ainda se atentou para o problema do instituto em momento próximo do término da concessão, em razão do desincentivo ao investimento que a incerteza quanto aos valores de indenização poderia acarretar. Com vistas a isso, o Relator, em seu voto, sugeriu o estabelecimento da metodologia ou definição dos valores residuais de bens reversíveis não completamente amortizados, de preferência no novo Regulamento de Controle de Bens Reversíveis, cuja análise encontra-se em andamento na Agência.
A Análise do Conselheiro Relator destacou a insuficiência da LGT quanto à conceituação e abrangência da reversibilidade, remetendo o tema à regulamentação setorial, e também reconheceu o caráter dinâmico da lista dos bens indispensáveis à continuidade do STFC prestado em regime público, que pode ser alterada em razão: (i) de atualizações na infraestrutura que suporta a prestação do STFC em regime público, assegurando-se a qualidade do serviço prestado; (ii) de atividades de acompanhamento e controle de bens reversíveis realizadas pela Agência e (iii) de atividades fiscalizatórias junto às concessionárias. Seria por isso que, nos termos da Análise nº 131/2012-GCRZ, “o Regulamento de Controle de Bens Reversíveis optou por uma definição genérica, não definindo uma relação exaustiva de tipos de bens reversíveis nem limitando o alcance do ônus da reversão aos bens móveis e imóveis utilizados para certas atividades pré-definidas”.
Diante disso, entendeu-se que a reversão direciona-se “à garantia de continuidade da prestação do serviço adequado, o que só pode ser verificado, no caso concreto, por meio da análise da função pública da concessão e das condições econômicas necessárias para sua efetividade e eficiência”.
Quanto às operações de desvinculação, alienação e substituição de bens reversíveis, previstas nos artigos 15 a 19 da Resolução ANATEL nº 447/2006, a Análise consignou a indispensabilidade de solicitação de anuência prévia da Agência, salvo nas hipóteses de caso fortuito e força maior. Nesse mister, a Agência analisaria os efeitos da operação pretendida na continuidade do serviço prestado e o benefício que seria direcionado ao usuário do serviço. Reconheceu-se, ainda, a possibilidade de haver divergência entre interesse da concessão e interesse do concessionário e a percepção de que a gestão de bens reversíveis vai além da simples substituição de bens inservíveis, devendo-se, no ponto, objetivar ganhos de eficiência (sem riscos à continuidade do serviço, contudo).
Assim, a gestão dos bens reversíveis não impediria operações que visassem sua desvinculação, alienação e substituição; no entanto, os valores econômicos positivos delas decorrentes “devem ser revertidos integralmente à concessão, devendo-se manter os recursos capitados depositados em conta bancária vinculada, aberta para esse fim, até a definitiva aplicação dos recursos em novos bens reversíveis, de modo que a Anatel possa fiscalizar e apurar a devida aplicação dos mesmos”.
Quanto è previsão da utilização de bens de terceiros e serviços contratados, a Análise entendeu que a previsão legal e regulamentar que a autoriza deve ser encarada como exceção. A regra, portanto, seria a utilização de bens próprios reversíveis. De todo modo, trata-se de pleito que deve ser analisado pela Anatel com base nos riscos que podem surgir para o princípio da continuidade da prestação do serviço adequado, inclusive quando do término da concessão.
A decisão da Agência demonstra perfeitamente a eficácia normativa dos princípios. Barroso (2010, p. 319) reconhece que, “modernamente, já não é controvertida a tese de que não apenas as regras, mas também os princípios são dotados de eficácia jurídica”. O autor fala em diversas formas de incidência dos princípios no mundo jurídico e na realidade fática, consignando que ele poderá ser tanto fundamento direto de uma decisão como indireto, condicionando a interpretação de uma dada regra ou paralisando sua eficácia.
No presente caso, a ANATEL teve de analisar a incidência da regra do art. 12 da Resolução ANATEL nº 447/2006 e seu impacto no princípio da continuidade. A regra regulamentar não possibilita a sua aplicação indiscriminada no que tange aos bens reversíveis, já tivemos a oportunidade de afirmar. Face à inexistência de uma regra aplicável ao caso concreto, considerando que os princípios, ao lado das regras, também são espécies de norma jurídica, verifica-se que a resposta dada pela ANATEL poderia perfeitamente utilizar o princípio da continuidade como fundamento, tanto que o fez. De fato, conforme Arruda (2011, 179), “os princípios são o amálgama do sistema dworkiniano, de modo que não que não há que se falar em áreas de indeterminação do direito”, como supunha a teoria positivista dos casos difíceis.
A interpretação da regra que supostamente seria aplicada ao caso concreto, portanto, acabou se submetendo à eficácia interpretativa dos princípios, a qual, segundo Barroso (2010, p. 320), “consiste em que o sentido e alcance das normas jurídicas em geral devem ser fixados tendo em conta os valores e fins abrigados nos princípios constitucionais”. Demonstrou-se a eficácia normativa do princípio da continuidade no caso em análise, bem como a função primordial que o instituto da reversão exerce sobre ele, do qual se extrai seu próprio fundamento.
CONCLUSÃO
A análise da teoria da despatrimonialização personifica a afirmação de que, num mundo complexo e contingente, sempre somos postos à frente de novas situações, de novos casos concretos e, consequentemente, de várias possibilidades de interpretação. Verificamos que o tratamento legal e regulamentar da matéria são insuficientes para analisar a teoria da despatrimonialização, sendo necessário o auxílio das teorias que asseveram a eficácia normativa dos princípios.
No caso do instituto da reversão, observou-se que seu principal fundamento repousa no princípio da continuidade. Concluiu-se ser inegável a relação entre os bens reversíveis e o princípio da continuidade. Em seguida, adentrou-se na descrição da teoria da despatrimonialização dos bens reversíveis, enumerando-se os seus principais argumentos para análise jurídica. Considerado como um caso difícil, surge a necessidade de se indagar como o Direito poderá solucionar o problema levado à análise da ANATEL. Pergunta-se: o art. 12 da Resolução ANATEL nº 447/2006 seria suficiente para, por si só, regular a situação? Entendemos que não. A uma, porque não conseguimos vislumbrar a ocorrência de sua hipótese de incidência: a possibilidade de utilização de bens de terceiros ou serviços contratados não levaria, necessariamente, à autorização regulamentar para que estes pudessem substituir bens reversíveis próprios.
Considerando-se, com base nas lições de Ronald Dworkin, a distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política e a percepção de que os princípios têm eficácia normativa, eis que exsurge o princípio da continuidade. Aliás, sendo finalidade da regulação o atendimento “aos critérios universais de uniformidade, continuidade, regularidade, qualidade e tarifas módicas” (Motta, 2003, p. 52), tal princípio não poderia ser relegado na análise da teoria da despatrimonialização, mas como verdadeiro vetor interpretativo a orientar a atuação da Agência. A partir disso, evidenciou-se a decisão da ANATEL tomada no caso concreto, personificada no Despacho nº 2.262/2012-CD, do órgão máximo da Agência, fulcrada esta nas considerações tomadas pela Análise nº 131/2012-GCRZ. Novamente, o princípio da continuidade serve como base para a verificação da coerência jurídica dos argumentos defendidos pela teoria da despatrimonialização que, com o argumento de preservá-lo, consegue, na verdade, vulnerá-lo.
Por fim, não podemos deixar de lembrar que os impactos e consequências da teoria da despatrimonialização também foram sopesados no presente trabalho. Verificou-se que a adoção de seus pressupostos poderia gerar verdadeiro esvaziamento econômico da concessão, colocando em risco a própria existência do serviço de telecomunicações prestado em regime público. Assim, ante à incerteza do futuro, que permite a exploração do serviço diretamente pelo Estado ou indiretamente pelo particular mediante delegação deste, entende-se, como se disse, que a teoria da despatrimonialização não tem subsistência jurídica frente ao princípio da continuidade. Assim, sob o argumento de prestigiá-lo, referida teoria acaba gerando sua vulneração.
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[1] Os delineamentos do que se denominou, no presente trabalho, de “Teoria da Despatrimonialização dos Bens Vinculados à Concessão” foram retirados do Parecer, subscrito pelo parecerista Luís Justiniano de Arantes Fernandes, acostado às fls. 104/128 dos autos do Pedido de Anuência Prévia n. 53500.25781/2011, em curso perante a Agência Nacional de Telecomunicações naquele ano.
[2] Esse é o teor do caput do art. 12 da Resolução Anatel nº 447/2006:
Art. 12. Prestadora, na utilização de Bens de Terceiros ou de Serviços Contratados, deve fazer constar, nos contratos respectivos, cláusula pela qual o contratado se obriga, em caso de extinção da concessão ou permissão, a mantê-los e a sub-rogar à Anatel os direitos e obrigações deles decorrentes, além do direito da Agência sub-rogar a outros.
[3] Maccormick (2008, p. 142), ao tratar das consequências jurídicas, dispõe que, “para declarar um direito em particular (jus dicere) é necessário, no papel de juiz imparcial, declarar que tal direito está disponível em todos os casos semelhantes”. Ainda conforme as lições do autor, “como uma pessoa prudente e cautelosa, qualquer juiz deve olhar, dentre o conjunto de situações possíveis, qual terá que ser coberta, do ponto de vista jurídico pela sentença proposta. Tal consideração do conjunto de casos possíveis é necessária para uma avaliação adequada da aceitabilidade da decisão tomada no caso presente”.
[4] NASCIMENTO, Marina Georgia de Oliveira e. A Atuação Preventiva da Anatel na Promoção da Concorrência no Mercado Brasileiro de Telecomunicações e o Plano Geral de Metas de Competição. In: Revista Publicações da Escola da AGU – O Direito nas Telecomunicações. Ano V, n. 24, jan/2013. Brasília: EAGU, p. 211.
[5] Dworkin, 2010, p. 127.
[6] Nesse sentido, confira-se a seguinte afirmação de Menelick de Carvalho Neto (1998, p. 233-234): “É a diferenciação entre um direito superior, a constituição e os demais direitos, que acopla estruturalmente direito e política, possibilitando o fechamento operacional, a um só tempo, do direito e da política (...). Em outros termos, é por intermédio da Constituição que o sistema político ganha legitimidade operacional e é também por meio dela que a observância do direito pode ser imposta de forma coercitiva”.
[7] CELLI JÚNIOR, Umberto; e SANTANA, Cláudia Silva de. Telecomunicações no Brasil: Balanço e Perspectivas. BLC – Boletim de Licitações e Contratos, Ano XVIII, n. 5, maio/2005, p. 362.
Procuradora Federal em Brasília (DF).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Marina Georgia de Oliveira e. Bens reversíveis na concessão de serviços de telecomunicações: uma análise da teoria da despatrimonialização Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jun 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39574/bens-reversiveis-na-concessao-de-servicos-de-telecomunicacoes-uma-analise-da-teoria-da-despatrimonializacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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