Resumo: O presente artigo tem como objetivo demonstrar a inconstitucionalidade da vedação á formação de sociedade marital (artigo 977 do CC). Para isto será utilizado o Princípio da Proporcionalidade ou Teoria da Ponderação , através da qual restará demonstrado que, no embate entre os princípios da liberdade plena de associação, livre iniciativa e liberdade de contratar, de um lado, e, do outro, os princípios implícitos à regra do artigo 977 do Código Civil: proteção dos credores e da família, referida vedação revela-se adequada, contudo desnecessária, desproporcional, e, assim, inconstitucional.
Palavras- chave: Artigo 977 CC; princípio da livre iniciativa, princípio da liberdade plena de associação; princípio da liberdade de contratar; proteção aos credores e família; desconsideração da personalidade jurídica; neoconstitucionalismo; princípio da proporcionalidade; adequação; necessidade; proporcionalidade em sentido estrito.
Sumário: 1. Introdução – 2 Análise do artigo 977 do CC; 2.1 Objetivo da regra. Crítica.: presunção de fraude. Desconsideração da Personalidade Jurídica; 2.2 O fenômeno da constitucionalização das normas jurídicas; 2.3 Os valores constitucionais parâmetros de validade e diretriz do artigo 977 do CC; 2.3.1. Princípio da Liberdade Plena de Associação; 2.3.2 Princípio Fundamento da Livre Iniciativa; 2.3.4 Princípio da Autonomia Privada dos Contratos - 3. Defesa da inconstitucionalidade do artigo 977 CC á luz do princípio da proporcionalidade; 3.1 Aspectos Gerais. O Princípio da Proporcionalidade e seus subprincípios.; 3.2 Aplicação no caso concreto- 4 . Conclusão-5. Referências.
1. Introdução
A promulgação do Código Civil vigente trouxe á tona uma discussão acirrada a respeito da constitucionalidade do seu artigo 977. Referido dispositivo legal, ao vedar a formação de sociedade marital entre cônjuges casados sob o regime de comunhão universal e separação obrigatória de bens, representa um retrocesso na evolução legislativa brasileira no que tange à formação de sociedade empresária entre marido e mulher, tendo sido alvo de severas críticas doutrinárias.
Tendo em vista o fenômeno da constitucionalização das normas jurídicas, também chamado de novo direito constitucional, ou seja, da tentativa de interpretação das normas jurídicas à luz dos princípios e valores constitucionais, juristas concluem pela inconstitucionalidade de referida norma infraconstitucional. Já que o dispositivo em comento representa, sobretudo, verdadeira ofensa ao princípio fundamental da livre associação, ao princípio fundamento da livre iniciativa e ao princípio contratual da autonomia privada
Comungamos e apoiamos estes posicionamentos. Contudo, o objetivo do presente trabalho é defender a inconstitucionalidade do referido dispositivo legal sob uma ótica diferente. É pela análise do Princípio da Proporcionalidade que sustentaremos a inconstitucionalidade do artigo 977 do Código Civil vigente.
Observamos que o dispositivo legal em destaque revela uma tensão entre princípios. De um lado, temos o princípio fundamental da liberdade plena de associação, o princípio fundamento da livre iniciativa e a autonomia privada, princípio basilar do direito privado; do outro, temos os princípios implícitos de proteção aos credores e à família, deduzidos do objetivo da norma em estudo.
O Princípio da Proporcionalidade, também chamado de Teoria da Ponderação, é composto por três subprincípios ou fases: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Trata-se de um procedimento racional, no qual, diante da colisão entre princípios, o intérprete deve utilizar o referido método de forma sistemática, sucessiva e eliminatória. Portanto, a reposta à análise de uma fase ou subprincípio condiciona a posterior. O três subprincípios juntos conferem a densidade indispensável para alcançar a funcionalidade pretendida pelo operador do direito.
Aplicando o Princípio da Proporcionalidade ao caso em tela, concluiremos pela adequação da medida, no entanto, defenderemos a sua inexigibilidade.
A regra em destaque revela-se, pois, inteiramente desnecessária ante a existência da desconsideração da pessoa jurídica, prevista no artigo 50 do Código Civil.
Ao realizar este juízo de ponderação, confirmamos a tese de que a previsão da regra do artigo 977 do CC se trata de mera presunção de fraude e de má-fé, absolutamente perigosa e atentadora à liberdade individual.
Concluindo pela inexigibilidade do meio para a consecução do fim pretendido, afirmamos, pois, a desproporcionalidade da medida, e, por conseguinte, a sua inconstitucionalidade.
2. Análise do artigo 977 do CC
2.1 Objetivo da regra. Crítica: presunção de fraude. Desconsideração da Personalidade Jurídica
O Novo Código Civil, no seu artigo 977, recepcionou a sociedade empresarial entre cônjuges.
“Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.”
No que diz respeito ao alcance e vigência de referida norma do Código Civil Pátrio, entende-se pacífico que as sociedades entre cônjuges casados sob o regime de comunhão universal ou separação obrigatória, anteriores a promulgação do Código Civil de 2002, não devem se adaptar a nova regulamentação, em respeito ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido, restando desnecessária a mudança de regime de bens como exigência para a sua legalidade.
Esta norma, no entanto, trouxe a tona discussão acerca da vedação quanto aos cônjuges casados pelo regime da comunhão universal e da separação obrigatória, questão objeto de crítica e que será debatida no nosso trabalho.
Pois bem, para aqueles que defendem referida vedação, no que tange à comunhão universal, a sociedade seria uma ficção, já que a titularidade das quotas do capital de cada cônjuge na sociedade não estaria patrimonialmente separadas no âmbito da sociedade conjugal.
Quanto ao regime da separação obrigatória, a vedação ocorre por imposição legal, ante a possibilidade de utilização do patrimônio como instrumento para lubridiar o regime. Trata-se de situações em que pode ser questionada o cumprimento das formalidades do casamento, bem como, levantada dúvidas em função da avançada idade de qualquer dos cônjuges.
Nas palavras de Maria Helena Diniz:
“A proibição legal se dá ante o fato de, na comunhão universal, ser o patrimônio comum, e de, na separação obrigatória, servir de meio para burlá-la”
Assim, o objetivo precípuo da regra seria a proteção aos credores e à família em face de eventual fraude dos cônjuges em nome da sociedade.
Ora, trata-se de presunção de fraude. Condenamos este posicionamento, uma vez que, ao nosso entender, o Direito não deve se ater a meras suposições, sob risco de limitar a liberdade individual e engessar a vida social.
Frise-se que o estabelecimento de uma sociedade marital formada por cônjuges casados sob o regime de separação obrigatória ou comunhão universal não abalaria o regime matrimonial e nem ofereceria perigo aos seus credores e família, já que o patrimônio social pertencera á sociedade e não aos sócios ou empresários.
Ademais, existem mecanismos no ordenamento jurídico pátrio que podem coibir a fraude realizada por sócios utilizando-se da sociedade como escudo para a prática de atos ilícitos, a exemplo da desconsideração da pessoa jurídica.
A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica possui, portanto, o intuito de, conservando a pessoa jurídica e a separação de sua personalidade e patrimônio em relação aos seus integrantes, proteger terceiros vítimas de fraudes realizadas em nome da sociedade. E, assim, em certos casos, permite-se não considerar os efeitos da personificação, para atingir a responsabilidade dos sócios. Em função disto, é também conhecida como doutrina da penetração.
Pela Teoria da Desconsideração da Pessoa Jurídica, o Poder Judiciário, diante de uma fraude vinculada a pessoa jurídica, está autorizado a ignorar a autonomia patrimonial e responsabilizar direta, pessoal e de forma ilimitada aquele que efetivamente se beneficiou o ato praticado em nome da sociedade.
Diante da existência de referido mecanismo, de sua consagração no artigo 50 do Diploma Civil, além de sua recorrente utilização pelos tribunais brasileiros, qual o sentido da norma que proíbe a sociedade marital, presumindo fraude, já que existe um instituto jurídico que visa coibir a atuação fraudulenta de sócios em nome da sociedade?
Trata-se de atuação precipitada do legislador brasileiro. Ora, diante de uma fraude cometida por sociedade marital, na qual os cônjuges sejam casados sob o regime de separação obrigatória ou comunhão universal, havendo prejuízos a terceiros, o Magistrado, provocado pelos interessados, credores e família, afastará a autonomia patrimonial da sociedade e responsabilizará os seus integrantes que praticaram o ilícito.
Não há razão em sacrificar a livre iniciativa, liberdade plena de associação e autonomia privada em nome de uma presunção de má-fé. O Direito não deve se basear em presunções, sob pena de limitar demasiadamente a liberdade individual. Deve, sim, proteger-se de atuações fraudulentas e não supô-las, sob pena de revelar medidas desproporcionais e, porque não, absolutamente inconstitucionais.
E mais, tendo em vista uma análise a luz do fenômeno da constitucionalização das normas jurídicas, nota-se que referida norma vai de encontro á importantes direitos e garantias fundamentais: princípio fundamental da livre iniciativa, o princípio fundamento da livre iniciativa e o princípio da autonomia privada dos contratos.
Antes de abordamos o conteúdo de cada princípio, faz-se necessário tecer alguns comentários acerca da constitucionalização das normas jurídicas.
2.2 O fenômeno da constitucionalização das normas jurídicas
A constitucionalização das normas jurídicas ou neoconstitucionalismo teve origem na Europa, na segunda metade do século XX, trazendo reflexos para o Brasil após a Constituição de 1988.
Essa nova faceta do direito constitucional está diretamente associado à chamada eficácia irradiante das normas constitucionais. Sabemos que, o juiz é obrigado a interpretar as normas infraconstitucionais de acordo com a Constituição ou de acordo com os direitos fundamentais. Isso decorre da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, ou melhor, da sua força jurídica objetiva.
Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet, pode-se compreender a eficácia irradiante dos direitos fundamentais:
"no sentido de que esses, na sua condição de direito objetivo, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional"
Faz-se necessário frisar que a nova interpretação constitucional, contudo, não supera a tradicional, mas a complementa, já que o anterior revela-se insuficiente diante de casos mais complexos, os chamados “hard cases”.
Na sistemática da interpretação constitucional tradicional, a norma enuncia a solução para os problemas jurídicos e o juiz a identifica, aplicando-a ao caso concreto. Nota-se, portanto, que o sistema jurídico exaure as respostas para as questões apresentadas, cabendo ao intérprete tão somente saber utilizá-lo, mediante a subsunção legal
Na nova interpretação constitucional nem sempre a solução das questões jurídicas está na norma, no ordenamento jurídico. Ao intérprete não cabe mais apenas conhecer tecnicamente o sistema para aplicá-lo de forma automática e impassível. Caber-lhe-á também realizar o papel de criador do Direito.
O papel do operador do Direito é também de criador, ao realizar o juízo de ponderação e selecionar a melhor escolha dentre as possíveis. Ao fazê-lo, este operador do direito estará participando de forma mais ativa na solução para o caso concreto, uma vez que, conforme afirmado, estará criando a regra a ser aplicada.
No Brasil, este processo de passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico foi mais tardio, quando comparado com o histórico europeu. Após promulgação da Constituição de 1988, e mais intensamente na última década, a Carta Constitucional deslocou o então vigente Código Civil de 1916 da posição de “regra geral do direito”, passando a ostentar uma supremacia formal e, sobretudo, material em todo o ordenamento jurídico. A normatividade dos princípios constitucionais e sua irradiação por todo o sistema jurídico se fizeram presentes nos discursos dos operadores do Direito.
Ocorre, neste desiderato, o fenômeno chamado por muitos doutrinadores de “filtragem constitucional”. Assim, todos os ramos do direito devem ser aprendidos e interpretados sob a ótica constitucional, concretizando os valores por ela consagrados. Como bem observa Luis Roberto Barroso:
“Á luz de tais premissas, toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Qualquer operação de realização do direito envolve a aplicação direta ou indireta da Lei Maior”
E, assim, a Constituição é aplicada diretamente, baseada em norma do próprio texto constitucional, ou indiretamente, quando fundada em norma infraconstitucional.
Basta folhear a Carta Constitucional de 1988 para constatar que os principais ramos do direito infraconstitucional tiveram suas regras e princípios gerais pontuadas na mesma. Este fenômeno de constitucionalização das fontes do Direito em determinada matéria, somado ao Neoconstitucionalismo, impõe limites ao legislador ordinário, servindo de diretriz para a atuação infraconstitucional.
Os valores constitucionais passam a servir de parâmetro de validade e diretriz para a interpretação das normas infraconstitucionais. E, assim, as normas constitucionais se irradiam por todo o sistema jurídico, de forma imperativa e vinculativa.
E, assim, diante do fenômeno da constitucionalização das normas jurídicas, também chamado de novo direito constitucional, ou seja, da tentativa de interpretação das normas jurídicas à luz dos princípios e valores constitucionais, defendemos a inconstitucionalidade de referida norma infraconstitucional, já que esta simplesmente ignora e contrapõe valores consagrados na constituição, quais sejam: liberdade plena de associação, autonomia privada e livre iniciativa.
2.3 Os valores constitucionais parâmetros de validade e diretriz do artigo 977 do CC
2.3.1. 1 Princípio da Liberdade Plena de Associação
Pode-se entender por liberdade de associação a união de pessoa, de forma estável, tendo em vista um fim comum e lícito.
A liberdade plena de associação compreende a faculdade de constituir, ingressar, abandonar as associações, não se associar, de permanecer associado e, ainda, de ser representado pela associação.
Existe, portanto, uma dimensão positiva da liberdade de associação, traduzida no direito de associar-se e uma dimensão negativa, reflexo do direito de não associação e de não obrigatoriedade à manutenção como associado.
A associação pressupõe uma união de pessoas por um ato de vontade. Assim, a participação forçada e involuntária é incompatível com a associação no sentido de liberdade fundamental, que pressupõe vontade livre e despendida.
Os fins associativos podem ser comerciais ou não, porém sempre serão lícitos, sob pena de nulidade. A denominação “fins ilícitos” não abrange somente aqueles tipificados como crime na seara penal, mas, da mesma forma, aqueles que contrariam os bons costumes e o direito.
Ressalte-se que a associação de caráter paramilitar, compreende aquela que desenvolve suas atividades com a utilização de atividades bélicas e estrutura interna hierarquizada, similar ás forças militares.
Os meios devem exprimir certa estabilidade na ação dos integrantes. Este é o ponto chave para a distinção entre liberdade de associação e reunião.
Na liberdade de reunião, a união é transitória e o encontro físico das pessoas em determinado local é indispensável. Na liberdade de associação, o vinculo é estável e a determinação espacial é irrelevante.
Vale ressaltar que a associação, para gozar de liberdade plena, não necessita ser dotada de personalidade jurídica. Assim, não está em questão a personalidade do ente para ser caracterizado como uma associação, e, assim, gozar de proteção constitucional.
2.3.2 Princípio Fundamento da Livre Iniciativa
A livre iniciativa, ao lado dos valores sociais do trabalho, é um princípio fundamento do Estado Brasileiro. Embasa a ordem econômica e visa assegurar a liberdade de iniciativa como valor de produção e desenvolvimento.
A Constituição de 1988, em seu artigo 170, enseja as diretrizes de um modelo econômico baseado na liberdade de iniciativa. Entende-se, desta forma, que toda empresa pública ou privada, de indústria, comércio ou prestação de serviços, para desenvolver suas atividades econômicas, deve obediência aos princípios contidos neste artigo
Assim, é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Contudo, a livre iniciativa não pode ser considerada absoluta. Há restrições que a própria ordem econômica, através das leis, impõe sobre ela, como por exemplo, quando há exigência legal para a obtenção de autorização para o exercício de determinada atividade econômica.
Da leitura do artigo supra, podemos concluir que, apesar da Constituição de 88 concretizar uma economia capitalista, de antemão, de forma concomitante, limitou esta atuação baseada com base na apropriação privada dos meios de produção e na livre iniciativa.
Esta limitação objetivou a condução de qualquer atividade econômica à concretização do bem estar social. Destaca-se o próprio fim da ordem econômica, qual seja, assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Desta forma a atuação empresarial está condicionada à consecução deste fim. E, para a sua realização, o legislador constituinte trouxe os princípios gerais da atividade econômica, consubstanciados no artigo 170, I a IX, transcritos acima.
Para garantir uma ordem econômica que assegure a todos a existência digna e efetividade dos princípios da atividade econômica, o Estado cumpre o papel primordial de agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo as funções de Fiscalização, Incentivo e Planejamento, de acordo com a lei, no sentido de evitar irregularidades.
A intervenção é direta quando o Estado se converte em agente econômico ou empresarial e participa da produção econômica. Esta é uma medida excepcional, prevista no artigo 173 da CF. A intervenção é indireta, quando o Estado atua como fiscal da atividade econômica, é agente normativo e regulador. Está prevista no artigo 174 da CF. Por fim, a intervenção através de monopólios ocorre quando, por meio de autorização constitucional, retira-se uma atividade econômica da livre iniciativa, entregando-a a atividade estatal, frise-se, de forma exclusiva. São as hipóteses elencadas no artigo 177 da C.F.
Interpretando referido artigo, concluímos que não há uma proibição ao intervencionismo estatal na produção ou circulação de bens ou serviços, cabendo a este regular, fiscalizar, incentivar e planejar as atividades econômicas.
Podemos destacar como aspecto relevante para compreender a inserção da livre iniciativa entre os fundamentos da ordem econômica os preceitos de lei que visem a motivar os particulares à exploração de atividades empresariais.
Em suma, a liberdade de iniciativa trazida pela Constituição prestigia o reconhecimento de um direito titularizado por todos que é o de explorarem as atividades empresariais, decorrendo no dever, imposto à generalidade das pessoas, de respeitarem o mesmo direito constitucional, bem como a ilicitude dos atos que impeçam o seu pleno exercício e que se contrapõe ao próprio estado, que somente pode ingerir-se na economia nos limites constitucionais definidos contra os demais particulares.
2.3.4 Princípio da Autonomia Privada dos Contratos
O Princípio da Autonomia Privada pode ser entendido como a roupagem jurídica dada a livre iniciativa. Traduz o poder dado ao sujeito de direito de regulamentar os seus interesses, respeitados limites legais.
Trata-se de um dos princípios precípuos do Direito Contratual, sendo uma expressão da liberdade individual. O contrato nada mais é do que o meio de expressar esta autonomia, havendo, pois, uma interligação entre os conceitos de contrato e autonomia privada. Um é expressão do outro, não podendo ser compreendidos de forma isolada.
Assim, podemos dizer que os contratos nascem por força da vontade dos contratantes, pelo consentimento mútuo e da vontade livre, ou seja, da autonomia da vontade.
O Direito assegura aos indivíduos a liberdade de contratar, em diferentes facetas: a liberdade de contratar ou não contratar, ou seja, o arbítrio de decidir, segundo sua conveniência, em estabelecer o vinculo obrigacional ou não; a liberdade de com quem contratar, traduze-se na escolha da pessoa contratante; a liberdade de o que contratar, o arbítrio de fixar o conteúdo do contrato.
Insta salientar que mesmo na modalidade contratual que diminui consideravelmente a liberdade de contratar e suas manifestações, como no contrato de adesão, não se pode negar a sua existência, já que o aderente tem a liberdade de ingressar como contratante ou não.
Como nenhum princípio é absoluto, o mesmo ocorre com o que ora analisamos. O dirigismo contratual, ou seja, a intervenção do Estado na economia do contrato e as restrições de ordem pública, traduzem limites ao exercício da autonomia privada.
As restrições de ordem pública são as proibições legais de comportamentos que não podem ser derrogadas pela vontade das partes. São os princípios da ordem pública e bons costumes, de observância obrigatória sob pena da imposição de penalidades.
Como exemplo de princípios da ordem pública, podemos citar as normas que regem o casamento, filiação, ordem de vocação hereditária, organização políticas e econômica do Estado, entre outras. Preceitos de bons costumes são aqueles que estão de acordo com a moral social, ou melhor, de cada sociedade.
O dirigismo contratual visa defender a parte contratante inferior, coibindo os abusos daquele economicamente ou tecnicamente superior. Sua aceitação data do início do século XX, pós exaltação à liberdade e ao individualismo no século XVII, quando se constatou que a igualdade jurídica não estava refletida na igualdade econômica.
E, assim, o contrato, de início, expressão de vontades livres e iguais, muitas vezes, trazia uma desproporcionalidade que não condizia com o equilíbrio entre as partes contratantes. Outras vezes, acontecimentos imprevistos ou imprevisíveis acarretavam em prestações diferentes das contratadas anteriormente.
Diante da possibilidade de ocorrência dessas situações, passou a ser admitida a intervenção do Estado nos contratos. A exemplo desta medida temos a cláusula coercitiva, que define obrigações e prerrogativas dos contratantes, inderrogáveis, sob pena de serem declaradas nulas e acarretarem, em alguns casos, na responsabilidade criminal dos contratantes.
Admitiu-se, assim, a limitação da manifestação de vontade dos contratantes para que a liberdade volitiva não levasse ao cometimento de abusos. Nota-se, portanto, que a autonomia da vontade permanece como preceito fundamental dos contratos, embora limitados para evitar excessos que prejudiquem o bem comum.
Vale ressaltar que restrições que não possuem como objetivo o respeito às normas de ordem pública e os bons costumes ou a concretização do dirigismo contratual representam um desrespeito ao princípio autonomia privada, conquistado ao longo da história e entendida como preceito fundamental dos contratos, devendo ser, tão logo, rechaçadas.
Entendemos, portanto, que deve haver um equilíbrio entre a liberdade dada ao indivíduo de contratar, em suas dimensões já pontuadas, e o dirigismo contratual, assim como as imposições de ordem pública e os bons costumes.
3. Defesa da inconstitucionalidade do artigo 977 CC á luz do princípio da proporcionalidade.
3.1 Aspectos Gerais. O Princípio da Proporcionalidade e seus subprincípios.
Diante da colisão entre princípios, o intérprete deve utilizar o referido método de forma sistemática, sucessiva e eliminatória. Assim, a análise do segundo subprincípio, depende da aceitação do primeiro, e assim sucessivamente. Ou seja, caso uma medida seja adequada, analisaremos se é necessária, respondendo de forma afirmativa, passaremos para a fase seguinte, a proporcionalidade em sentido estrito. No entanto, caso respondêssemos de forma negativa, concluiremos, desde já, pela sua desproporcionalidade.
Uma medida é considerada adequada quando, diante da realidade fática, é capaz de realizar pelo menos um dos princípios, objeto do embate. Caso prejudique a realização de um, e não concretize o outro, a medida não é idônea, é inadequada.
O meio torna-se desnecessário se, para concretizar um princípio, existe outro meio que não agrave ou agrave menos o outro princípio em conflito. No plano fático, deve-se observar a existência de meio menos gravoso.
A última fase consiste na análise da Lei da Ponderação. Esta enuncia: quanto mais alto o grau do não cumprimento ou prejuízo de um princípio, maior deverá ser a importância de concretização do outro. Atribuindo valores, pesos (graus “leve”, “médio” e “ grave”) aos princípios em conflito, observaremos o grau de sacrifício de um princípio, o grau de importância do outro e se concretizar um compensa o não cumprimento do outro.
Trata-se de um procedimento racional pelo qual se conclui que, quanto mais intensa e gravosa a intervenção de um princípio em conflito, mais importante deve ser a realização do outro. Concluindo pela desproporcionalidade de uma medida, deduziremos a sua inconstitucionalidade.
3.2 Aplicação no caso concreto
Conforme já afirmado, a vedação à formação de sociedade marital revela uma tensão entre princípios: de um lado os princípios da liberdade plena de associação (art. 5, incisos XXVII, XVIII, XIX, XX, XXI), livre iniciativa (art. 170 C.F) e liberdade de contratar (que pode ser entendida como a roupagem jurídica dada á livre iniciativa no campo privado), e, do outro, os princípios implícitos à regra do artigo 977 do Código Civil: proteção dos credores e da família.
Diante de um embate entre princípios, invocaremos a já apresentada Teoria da Ponderação ou Princípio da Proporcionalidade para ponderar no caso concreto.
Imaginemos que um marido e mulher casados sob o regime da comunhão universal ou separação obrigatória queiram constituir, entre si ou com terceiros, sociedade comercial, e encontrem, em seu desfavor, a vedação imposta pelo artigo 977 do CC.
Primeiramente, nos perguntaremos: O meio escolhido contribui para a obtenção do resultado pretendido? Ou seja, a vedação à formação da sociedade marital daqueles casados sob o regime de separação obrigatória ou comunhão universal é meio idôneo para evitar a confusão patrimonial e fraude contra credores? O fim perseguido: proteção aos credores e à família é alcançado?
Entendemos que sim. A proibição do artigo 977 do Código Civil realiza o que pretende.
Após concluirmos de forma afirmativa, passaremos à análise da necessidade da medida. Nos indagaremos: A medida restritiva é indispensável para a consecução do fim pretendido de forma que não possa ser substituída por outra igualmente eficaz, porém menos gravosa?
Entendemos que não. A medida é dispensável a consecução do fim pretendido, já que existe outro meio que realiza os princípios de proteção aos credores e à família e, em contrapartida, restringe menos os princípios da liberdade plena de associação, livre iniciativa e autonomia privada, qual seja: a desconsideração da pessoa jurídica, já abordado no presente trabalho
Diante da previsão de referido instituto jurídico, no artigo 50 do CC, a regra do artigo 977 do mesmo diploma legal revela-se desnecessária e, portanto, desproporcional, devendo ser abolida do ordenamento jurídico mediante o exercício do controle de constitucionalidade, afinal é inexigível.
Desvirtuada a utilização da pessoa jurídica, descarta-se a autonomia patrimonial no caso concreto, supera-se a separação entre sociedade e sócio, o que leva a estender os efeitos das obrigações da sociedade e a responsabilizar pessoalmente o sócio infrator.
Formada a sociedade empresária entre cônjuges casados sob o regime de comunhão universal ou separação obrigatória, se, e somente se, cometida fraude pelos sócios e prejudicados terceiros, a desconsideração da personalidade jurídica será aplicada, responsabilizando direta, pessoal e ilimitadamente o sócio que se utilizou da sociedade para realização da fraude.
Percebe-se que a regra do artigo 977 do CC se antecipa à realização das atividades comercias entre sócios cônjuges casados sob referidos regimes, presumindo que, necessariamente, a sociedade marital, nesses moldes, é constituída para realizar fraudes.
Ao realizar este juízo de ponderação, confirmamos a tese de que a previsão da regra do artigo 977 do CC se trata de mera presunção de fraude e de má-fé, absolutamente perigosa e atentadora à liberdade individual.
Concluímos, pois, pela inexigibilidade do meio para a consecução do fim pretendido, afirmamos, desta forma, a desproporcionalidade da medida, e, por conseguinte, a sua inconstitucionalidade. Não procederemos, desta forma, a análise da proporcionalidade em sentido estrito.
Ressalte-se, mais uma vez, que esta conclusão foi alcançada tendo em vista nossa escala de valores, vivência e pré compreensão. E mais, mediante um procedimento racional, em um ambiente discursivo, onde argumentos são colocados à prova e testados, com o fito de alcançar uma decisão otimizada no caso concreto.
Nada impede que outro intérprete chegue à conclusão diversa, e até contrária. Isto porque interpretar é densificar valores, corporificar princípios, e cada um tem os seus. Não há regra, senão regra interpretada.
No entanto, queremos deixar registrado, e não existe outro senão este o objetivo do presente trabalho, por todo já exposto, o nosso entendimento pela inconstitucionalidade da vedação à formação à sociedade marital a luz do Princípio da Proporcionalidade.
4.Conclusão
Percebe-se, portanto, que a regra do artigo 977 do CC se antecipa à realização das atividades comercias entre sócios cônjuges casados sob referidos regimes, presumindo que, necessariamente, a sociedade marital, nesses moldes, é constituída para realizar fraudes.
Aplicando ao caso em tela a Teoria da Ponderação ou o Princípio da Proporcionalidade, concluímos pela adequação da medida, no entanto, frisamos a sua desnecessidade, em face da previsão legal da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica
E, assim, concluindo, pela inexigibilidade do meio para a consecução do fim pretendido, afirmamos, pois, a desproporcionalidade da medida, e, por conseguinte, a sua inconstitucionalidade.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SAMPAIO, Clara Meira Costa. A inconstitucionalidade da vedação á formação de sociedade marital á luz do princípio da proporcionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39582/a-inconstitucionalidade-da-vedacao-a-formacao-de-sociedade-marital-a-luz-do-principio-da-proporcionalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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