RESUMO: Este artigo estudar a dimensão do art. 11, inc. VI da Lei nº 8.429/92, que constitui em improbidade administrativa a conduta de deixar de prestar contas públicas, em face da jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Conclui que este Tribunal acerta ao não promover uma interpretação estritamente literal de uma norma punitiva, mas erra ao generalizar a exclusão da improbidade administrativa, desconsiderando algumas peculiaridades do caso concreto, que podem evidenciar o dolo ímprobo do gestor público.
PALAVRAS-CHAVE: Lei de Improbidade Administrativa. Prestação de Contar. Tardiamente.
1. Introdução
O art. 11, inc. VI da Lei nº 8.429/92 prevê que constitui ato de improbidade administrativa “deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo”. No entanto, até quando é a obrigação de prestar contas? Prestar contas tardiamente constitui ato de improbidade administrativa?
Esse artigo visa analisar melhor esse artigo da Lei de Improbidade Administrativa – LIA, mais especificadamente no tocante às prestações de contas de convênios celebrados com a Administração Pública Federal.
2. Da Prestação de Contas
A celebração de convênio é um instrumento essencial na gestão pública e implementação de políticas públicas, celebrado com entidades públicas ou privadas, mas sem fins lucrativos. Atualmente está regulamentado, no âmbito federal, pelo Decreto nº 6.170/2007 e Portaria Interministerial CGU/MF/MP 507/2011.
Para os fins deste artigo, interessa saber as regulamentações específicas sobre o marco temporal em que se deve prestar as contas do convênio.
O art. 10, § 6º do Dec. 6170/2007 reza que “o convenente ficará obrigado a prestar contas dos recursos recebidos, na forma da legislação aplicável e das diretrizes e normas previstas no art. 18”. Esse art. 18 faz remissão à edição de uma portaria regulamentadora, a qual se consubstancia na citada Portaria 507/2011.
O art. 72 desta portaria prevê que o “o prazo para apresentação das prestações de contas será de até 60 (sessenta) dias após o encerramento da vigência ou a conclusão da execução do objeto, o que ocorrer primeiro”. A não prestação de contas implica em abertura de tomada de contas especial (art. 72, § 3º da Portaria 507/2011).
Desta feita, o art. 72 da Portaria 507/2011 pode ser considerada a regulamentação do art. 11, inc. VI da Lei nº 8.429/92. Logo, sob uma interpretação literal, a não prestação de contas no prazo de 60 dias após o fim da vigência ou da conclusão do objeto configura ato de improbidade administrativa. Excepciona-se a possibilidade prevista no art. 72, § 5º da Portaria 507/2011, segundo o qual o prazo de prestação de conta pode ser estendido, a depender das justificativas do convenente acerca do impedimento de se apresentar as contas no prazo correto.
De todo modo, é indubitável que a ausência de prestação de contas configura ato de improbidade administrativa. Assim, a questão posta no presente artigo, então, visa analisar se a prestação de contas tardia, sem apresentação de justificativas razoáveis, configura ato de improbidade administrativa.
3. Prestação de Contas tardiamente e Improbidade Administrativa. Entendimento Jurisprudencial
Formalmente, a prestação tardia de contas, sem apresentação de justificativas razoáveis, configura ato de improbidade administrativa, nos termos do art. 11, inc. VI da Lei nº 8.429/92.
No entanto, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região – TRF1 entende que a prestação de contas tardia não configura ato de improbidade administrativa. Confira-se os seguintes precedentes:
PROCESSO CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI Nº 8.429/92, ART. 11, INCISO VI. PRESTAÇÃO DE CONTAS TARDIA. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DAS SANÇÕES PREVISTAS NA LEI. APELAÇÃO DESPROVIDA. 1. Na forma do art. 11, inciso VI, da Lei nº 8.429/92, constitui-se como ato de improbidade "deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo". 2. Na hipótese, se a norma sancionadora inscrita no art. 11, inciso VI, da Lei nº 8.429/92 prevê que se constitui como ato de improbidade "deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo", não há como se admitir uma interpretação extensiva dessa norma, para admitir a sua incidência nas hipóteses em que a prestação de contas ocorra com atraso, sob pena de se ter a aplicação de sanção tendo por base uma interpretação extensiva da norma legal, o que não se apresenta como juridicamente admissível. 3. Apelação a que se nega provimento.
(AC 0000523-67.2008.4.01.4300 / TO, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL I'TALO FIORAVANTI SABO MENDES, QUARTA TURMA, e-DJF1 p.322 de 27/03/2009)
PROCESSO CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI Nº 8.429/92, ART. 11, INCISO VI. PRESTAÇÃO DE CONTAS TARDIA. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DAS SANÇÕES PREVISTAS NA LEI. APELAÇÃO PROVIDA. 1. Comprovado, nos autos, que houve a prestação de contas, fica afastada a hipótese de ato de improbidade com fundamento no art. 11, inciso VI, da Lei 8.429/1992, sobretudo porque aprovadas as contas. A jurisprudência das Turmas deste Tribunal firmou-se no sentido de que "o atraso na prestação de contas não se configura como ato de improbidade administrativa prevista no art. 11 , VI, da Lei 8.429/92, uma vez que este dispositivo fala em: deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, não podendo sofrer interpretação extensiva"(AC 2000.01.00.069563-7-BA, Relatora Juíza Federal Convocada Vânila Cardoso André de Moraes, DJU/II de 24/06/2005, p. 13 e AC 2008.43.00.000523-1/TO, Rel. Desembargador Federal I'talo Fioravanti Sabo Mendes, Quarta Turma,e-DJF1 p.322 de 27/03/2009) 2. A norma sancionadora inscrita no art. 11, inciso VI, da Lei nº 8.429/92 prevê que se constitui como ato de improbidade "deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo", não sendo possível uma interpretação extensiva dessa norma para admitir a sua incidência nas hipóteses em que a prestação de contas ocorra com atraso. 3. Apelação provida. (AC 0000628-13.2004.4.01.4000 / PI, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL I'TALO FIORAVANTI SABO MENDES, Rel.Conv. JUÍZA FEDERAL ROSIMAYRE GONCALVES DE CARVALHO, QUARTA TURMA, e-DJF1 p.99 de 30/04/2010)
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PREFEITA. PRESTAÇÃO DE CONTAS TARDIA. PRESENÇA NO PÓLO PASSIVO DE SERVIDORES QUE ERAM RESPONSÁVEIS PELA PRESTAÇÃO DE CONTAS. INEXISTÊNCIA DE ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. 1. Os três primeiros requeridos, não eram legalmente responsáveis pela prestação de contas. Somente a ex prefeita. 2. Ademais, a ex-prefeita, provou que, ainda que tardiamente, prestou as contas relativas às verbas federais repassadas. O atraso na prestação de contas não pode configurar ato de improbidade administrativa, previsto no art. 11, VI, da Lei nº 8.249/92, pois este dispositivo não admite interpretação extensiva. Também não há aplicação do inciso II do mesmo artigo por falta de prejuízo efetivo. Não há provas neste sentido. 2. Apelação improvida. (AC 0000248-25.2006.4.01.3901 / PA, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL HILTON QUEIROZ, Rel.Conv. JUIZ FEDERAL MARCUS VINICIUS BASTOS (CONV.), QUARTA TURMA, e-DJF1 p.132 de 19/10/2010)
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. IMBROBIDADE ADMINISTRATIVA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. REJULGAMENTO. PRESTAÇÃO DE CONTAS TARDIA. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DAS SANÇÕES DA LEI 8.429/1992. I - Ocorrendo a prestação de contas perante o órgão competente, ainda que com atraso, fica afastada a hipótese de ato de improbidade, com fundamento no art. 11, inciso IV, da Lei 8.429/1992, uma vez que esse dispositivo fala em "deixar de prestar conta quando esteja obrigado a fazê-lo", não podendo sofrer interpretação extensiva. II - Embargos de declaração acolhidos para sanar a omissão apontada, sem, contudo, alterar o julgamento da apelação (EDAC 0006552-95.2005.4.01.3700 / MA, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL CÂNDIDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, e-DJF1 p.318 de 21/02/2014)
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. VERBAS FEDERAIS REPASSADAS PELO MINISTÉRIO DA SAÚDE (FNS) A MUNICÍPIO. EX-PREFEITO. OFENSA AO ART. 11, INCISO VI, DA LEI N. 8.429/92. PRESTAÇÃO DE CONTAS TARDIA. DOLO E MÁ-FE NA CONDUTA DO REQUERIDO INDEMONSTRADO. ATO DE IMPROBIDADE INCONFIGURADO. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA AFASTADA. APELAÇÃO PROVIDA. SENTENÇA REFORMADA. 1. Preliminar de nulidade da sentença afastada, por indemonstrada a alegada ofensa aos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. 2. O atraso na prestação de contas, como consolidado na jurisprudência desta Corte Regional, não caracteriza ato de improbidade administrativa, previsto no art. 11, VI, da Lei n. 8.429/92, pois este dispositivo não admite interpretação extensiva. 3. Na hipótese em exame, a imputação ao requerido é apenas de omissão no dever de prestar contas, e não se verifica, ademais, das circunstâncias dos fatos, que o atraso na prestação de contas, tenha decorrido de dolo ou má-fé na conduta do requerido, o que poderia configurar, de fato, ato de improbidade na forma da jurisprudência do colendo Superior Tribunal de Justiça. 4. Apelação do requerido provida (AC 0004098-90.2005.4.01.3200 / AM, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL HILTON QUEIROZ, QUARTA TURMA, e-DJF1 p.96 de 23/04/2014)
O principal argumento para afastar a improbidade administrativa consiste na interpretação restritiva do artigo. De acordo com o TRF1, a conduta ímproba é “deixar de prestar contas” o que é diferente de “prestar contas tardiamente”. Assim, o TRF1, de forma sistemática, afasta o ato de improbidade administrativa da conduta de prestação de contas tardia.
Muito embora o entendimento do TRF1 tenha base sólida (interpretação restritiva de norma punitiva), a generalização do entendimento acarreta situações incompatíveis com o ordenamento jurídico, bem como passa ao largo de algumas peculiaridades, que ensejariam o reconhecimento do ato de improbidade.
Acaso qualquer prestação de contas eliminasse a improbidade da conduta, os gestores de recursos públicos teriam o prazo excessivamente longo para a prestação de contas.
Ora, se a ação de improbidade administrativa tem prazo prescricional de 5 (cinco) anos e se o TRF1 entende que a prestação de contas durante a ação de improbidade leva á improcedência do pedido, conclui-se facilmente que o prazo para prestar contas, sem sofrer nenhum sanção, é cerca de 8 a 10 anos (5 anos de prescrição + 3 a 5 anos para a prolação de sentença). Sobressai evidente que esse prazo não condiz com o ordenamento jurídico, que estima pela correta e tempestiva prestação de contas.
A aplicação generalizada do entendimento também não atenta para algumas peculiaridades de casos concretos, que podem denotar o dolo na apresentação de contas tardia.
Por exemplo, a falta de justificativa da prestação de contas tardia, como prevista no art. 72, § 5º da Portaria 507/2011, pode ser um critério de análise do dolo do gestor. Se este não presta contas e sequer justifica tal atitude perante a Administração Pública, é razoável abstrair o dolo, apto à condenação por ato de improbidade administrativa, mesmo que ele preste as contas após a propositura da ação de improbidade.
A quantidade de notificações recebidas e não respondidas também pode ser outro critério de análise da conduta subjetiva do gestor.
No mais, a generalização perpetrada pelo TRF1 parece esvaziar totalmente a previsão normativa inscrita no art. 11, inc. VI da Lei nº 8.429/92. De acordo com o entendimento do TRF1, não há espaço para a configuração de ato de improbidade administrativa por falta de prestação de contas.
Essas questões passam ao largo da grande maioria dos precedentes analisados do TRF1.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça – STJ já sinalizou pela necessidade de verificação das peculiaridades do caso concreto, em detrimento de uma aplicação generalizada do entendimento “prestação de contas tardia afasta a improbidade administrativa”.
ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INEXISTÊNCIA.
PRESTAÇÃO DE CONTAS. APRESENTAÇÃO TARDIA. NÃO DEMONSTRAÇÃO DE DOLO.
1. A configuração do ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei n. 8.429/92 somente é possível se demonstrada prática dolosa de conduta que atente contra os princípios da Administração Pública.
2. A ausência de prestação de contas, quando ocorre de forma dolosa, acarreta violação ao Princípio da Publicidade. Todavia, o simples atraso na entrega das contas, sem que exista dolo na espécie, não configura ato de improbidade.
3. Hipótese em que não foi demonstrada a indispensável prática dolosa da conduta de atentado aos princípios da Administração Pública. Ausência de ato de improbidade administrativa.
Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 1382436/RN, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/08/2013, DJe 30/08/2013)
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE. CONVÊNIO. DISPENSA INDEVIDA DE LICITAÇÃO. LESÃO AO ERÁRIO. PRESTAÇÃO DE CONTAS A DESTEMPO. PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO. OFENSA. DOLO COMPROVADO.
DOSIMETRIA.
1. Para a configuração do ato de improbidade de "deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo" descrito no art. 11, VI, da Lei 8.429/92, faz-se necessária a comprovação da conduta omissiva dolosa do agente público. A malversação dos recursos do convênio, em decorrência de dispensa indevida de licitação, pelo qual o gestor já fora condenado, associada à apresentação tardia da respectiva prestação de contas, após quase dois anos do prazo legal e por força da instauração da ação civil pública, constituem dados suficientes para que fique caracterizada a má-fé do gestor. Para o restabelecimento da ordem jurídica, deve ser aplicada a multa civil prevista do art. 12, III, da LIA, no valor de cinco remunerações mensais percebidas pelo ex-prefeito à época do ato praticado.
2. Quanto ao pedido de condenação à pena de ressarcimento de dano por dispensa indevida de licitação (art. 10, inciso VIII), verifica-se que a Corte de origem não analisou a questão, o que acarreta a incidência da Súmula 211/STJ. Causa também perplexidade e insegurança jurídica a fixação de multa civil sobre valor de dano ao erário a ser estipulado em ação autônoma, máxime por entender razoáveis as demais sanções aplicadas pelo Tribunal a quo, que atendem ao princípio da proporcionalidade e aos fins sociais a que a Lei de Improbidade Administrativa se propõe.
3. Recurso especial conhecido em parte e provido também em parte.
(REsp 853.657/BA, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/10/2012, DJe 09/10/2012)
Neste último precedente, o STJ considerou que o atraso de 2 anos na prestação de contas, que foi motivada pela propositura de ação de improbidade, configura ato de improbidade administrativa.
Desta feita, não se discorda do entendimento segundo o qual a mera prestação de contas tardia não configura improbidade. Todavia, a generalização desse entendimento é igualmente incompatível com o ordenamento jurídico.
4. Conclusão
A interpretação literal do art. 11, inc. VI da Lei nº 8.429/92 c/c o art. 72 da Portaria Interministerial CGU/MF/MP 507/2011 pode conduzir à conclusão de que qualquer atraso na prestação de contas constitui ato de improbidade administrativa.
O TRF1, corretamente, afasta essa possibilidade interpretativa. No entanto, este Tribunal se equivoca ao generalizar tal entendimento. Nem toda prestação de contas de forma serôdia tem o condão de afastar a improbidade administrativa da conduta. É preciso cotejar a conduta com a previsão normativa de justificação no atraso das contas, deduzida no art. 72, § 5º da Portaria 507/2011, bem como com peculiaridades do caso concreto, que possam evidenciar o dolo do gestor público no atraso da prestação de contas.
Advogado da União. Ex-Analista Processual no MPDFT. Ex-Técnico Judiciário no TJDFT.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, Rafael Melo. Prestação de Contas e Improbidade Administrativa: alcance normativo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39604/prestacao-de-contas-e-improbidade-administrativa-alcance-normativo. Acesso em: 23 dez 2024.
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