Introdução
Questão relevante que merece abordagem no campo civilista refere-se a responsabilidade civil decorrente de acidente de trânsito causado por veículo objeto de arrendamento mercantil, mormente no que tange à jurisprudência dos Tribunais Superiores, bem como dos Tribunais Regionais Federais, no sentido de que o proprietário do veículo não responde pelos danos decorrentes do fato da coisa, por conservar apenas a posse indireta do veículo, dada a ausência de poder sobre a destinação da coisa.
Desenvolvimento
Preliminarmente à evolução do raciocínio, necessário que se faça algumas breves considerações sobre a natureza jurídica do contrato de arrendamento mercantil, a fim de permitir um estudo adequado sobre este instituto jurídico de natureza híbrida.
Em linhas gerais, o contrato de arrendamento mercantil pode ser entendido como negócio jurídico celebrado entre o proprietário de um determinado bem (arrendador/arrendante), que concede o uso deste a um terceiro (arrendatário) por determinado período contratualmente estipulado, findo o qual, é facultada ao arrendatário a opção de adquirir ou devolver o bem objeto de arrendamento ou, ainda a de prorrogar o contrato.
Trata-se, portanto, de instituto de natureza complexa, que mistura aspectos específicos dos contatos de locação, promessa unilateral de venda (em virtude de se dar ao arrendatário a opção de aquisição do bem), compra e venda (no caso opção do arrendatário em adquirir o bem), financiamento e mandato.
Nessa modalidade contratual, a posse do bem objeto de arrendamento é desmembrada em posse direta (exercida pelo arrendatário) e posse indireta, que permanece com o arrendante. Já a propriedade do bem mantém-se com o arrendante durante a execução do contrato, uma vez que só por ocasião do exercício da opção de compra ao final da avença é ocorre efetivamente a transferência da titularidade do bem para o arrendatário.
A aferição da responsabilidade por danos causados por veículo automotivo arrendado, decorrente do mau uso da máquina, é fundada na teoria da responsabilidade pelo fato da coisa.
Trata-se, em outras palavras, do estudo da responsabilidade do indivíduo que detém o poder de comando das coisas e animais causadores de danos à esfera jurídica de outrem.
Segundo Caio Mário[1], a doutrina viu nessa teoria uma consagração parcial da teoria do risco, no sentido de que, ao guardião da coisa, que usufrui dos cômodos, caberia também suportar os incômodos, entre os quais, obviamente, se inclui o dever legal de indenizar.
No caso de arrendamento mercantil, o arrendante proprietário deixa de ter a posse direta sobre o bem arrendado, passando esta, durante a execução do contrato, ao arrendatário.
Portanto, no caso de indenização decorrente de dano causado por veículo arrendado, não há que falar em possibilidade de responsabilização do arrendante, haja vista que, durante a execução do contrato, este não tem qualquer poder de vigilância direta sobre o bom uso do veículo arrendado, embora permaneça como proprietário do bem até que o arrendatário faça opção pela aquisição final do objeto, já no final do prazo contratual avençado pelas partes.
Aliás, nem poderia ser diferente, pois raciocínio contrário, esbarraria na própria definição de nexo de causalidade, uma vez que, no caso, o dano não poderia ser atribuído ao arrendante proprietário, que confiou a posse direta do bem ao arrendatário, causador direto e imediato do resultado lesivo. No ponto, necessário destacar que o nexo de causalidade é elemento imprescindível para a configuração do dever de indenizar. Vale dizer, portanto, que, se houve o dano mas sua causa não está diretamente vinculada ao comportamento do agente, inexiste a relação de causalidade e, também, o dever de indenizar.
A respeito do tema, traz-se à baila trecho da lição de Pablo Stouze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[2], no sentido de que o responsável pela reparação do dano proveniente de coisa é o guardião da mesma, vejamos:
“Em nosso entendimento, o responsável pela reparação do dano proveniente da coisa ou do animal é o seu “guardião”.
Por guardião, entenda-se não apenas o proprietário (guardião presuntivo), mas, até mesmo, o possuidor ou mero detentor do bem, desde que, no momento do fato, detivesse o seu poder de comando ou direção intelectual.
Assim, se a minha bomba d’água, mal conservada, explode e lesiona um transeunte, a obrigação de indenizar será imposta a mim, proprietário e guardião da coisa, que estava sob minha custódia e direção.
Diferentemente, se eu contrato um adestrador de cães, confiando-lhe a guarda do meu buldogue, e este, durante uma sessão de treinamento, desprende-se da coleira e causa dano a terceiro, obviamente que, pela reparação do dano, responderá apenas o expert, pois, no momento do desenlace fatídico, detinha o poder de comando do animal, que estava sob sua autoridade.
(...)
Fixamos, portanto, a premissa de que a responsabilidade pelos danos causados pela coisa ou animal há que ser atribuída àquela pessoa que, no momento do evento, detinha poder de comando sobre ele.
E note-se que essa atribuição de responsabilidade não exige necessariamente perquirição de culpa. Ou seja, a depender do sistema legal consagrado, o guardião poderá ser chamado à responsabilidade mesmo que não haja atuado com culpa ou dolo, mas pelo simples fato de haver exposto a vítima a uma situação de risco”.
Ora, esse entendimento, embora não positivado na Legislação Civil Brasileira, é o que mais se coaduna com a natureza jurídica do contrato de arrendamento mercantil.
Com efeito, se o arrendante não tem a posse direta do veículo arrendado, nem sua guarda intelectual, não pode ser responsabilizado pelos danos causados a terceiros pelo arrendatário, pois, nesse caso, estará ausente requisito imprescindível para a caracterização de responsabilidade, qual seja, o nexo de causalidade entre o ato lesivo e a conduta do agente.
Ainda, não pode a instituição arrendante ser responsabilizada por ter a propriedade residual do veículo arrendado, pois, embora seja o guarda presuntivo do referido bem, essa presunção relativa fica elidida pelo fato de ter sido juridicamente transferido a outrem o poder de direção sobre o bem arrendado.
É de considerar, ainda, que o legislador ordinário parece ter adotado a teoria do fato da coisa ao editar a Lei nº 11.649/2008, que estabelece ser de competência do arrendatário os encargos financeiros decorrentes do pagamento de multa, IPVA e DPVAP, verbis:
Art. 1o Nos contratos de arrendamento mercantil de veículos automotivos, após a quitação de todas as parcelas vencidas e vincendas, das obrigações pecuniárias previstas em contrato, e do envio ao arrendador de comprovante de pagamento dos IPVAs e dos DPVATs, bem como das multas pagas nas esferas Federal, Estaduais e Municipais, documentos esses acompanhados de carta na qual a arrendatária manifesta formalmente sua opção pela compra do bem, exigida pela Lei no 6.099, de 12 de setembro de 1974, a sociedade de arrendamento mercantil, na qualidade de arrendadora, deverá, no prazo de até trinta dias úteis, após recebimento destes documentos, remeter ao arrendatário:
I - o documento único de transferência (DUT) do veículo devidamente assinado pela arrendadora, a fim de possibilitar que o arrendatário providencie a respectiva transferência de propriedade do veículo junto ao departamento de trânsito do Estado;
II - a nota promissória vinculada ao contrato e emitida pelo arrendatário, se houver, com o devido carimbo de "liquidada" ou "sem efeito", bem como o termo de quitação do respectivo contrato de arrendamento mercantil (leasing).
Parágrafo único. Considerar-se-á como nula de pleno direito qualquer cláusula contratual relativa à operação de arrendamento mercantil de veículo automotivo que disponha de modo contrário ao disposto neste artigo.
Esse entendimento coaduna-se com a corrente doutrinária já adotada pelos Tribunais Superiores, no sentido de que a competência para pagamento de multas e encargos tributários relativos a veículo automotivo arrendado, é do arrendatário. Nessa linha, importante destacar trecho do voto proferido pelo eminente Ministro João Otávio de Noronha, no julgamento do Recurso Especial nº 436.201-SP, ao tratar da responsabilidade pelo pagamento do DPVAT, tendo restado decidido ser incumbência do arrendatário, e não do arrendante[3], vejamos:
“Sr. Presidente, também penso como o Sr. Ministro Relator. Acredito que transferirmos o risco para a empresa de leasing importaria em aumentar o custo do financiamento. E a empresa não tem como fiscalizar, chamar todos os contratantes de leasing, que, na realidade, é um contrato de financiamento, e pedir que apresentem anualmente o seguro. Não me parece razoável.
Também, não há como supor que o risco em questão decorra da atividade de leasing . Essa atividade é de financiamento, e não o uso, que pertence ao usuário, o qual, na realidade, age com toda a aparência de dono. Todo mundo sabe disso. Embora não seja ainda o titular do domínio, tende a sê-lo no tempo.
Por isso, entendo que a melhor tese, a que consagra melhor os interesses do consumidor, na medida em que não onera o custo do financiamento, é a tese defendida pelo eminente Ministro Relator, a quem acompanho.
Desta forma, resta claro que o fato de o arrendante ser o possuidor indireto do bem, não dispondo dele enquanto é utilizado pelo arrendatário é, por si só, motivo bastante para constituir a ilegitimidade passiva da instituição financeira que celebra o contrato de arrendamento mercantil, pois, conforme já destacado, não é a propriedade que enseja a responsabilidade civil, mas sim a posse direta do veículo.
É nesse sentido, também, o entendimento pacificado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores. Confira-se, nessa linha, o entendimento firmado pelo STJ, no sentido de que a empresa de arrendamento mercantil não pode ser responsabilizada pelo uso indevido do bem pelo arrendatário, vejamos[4].
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. TRANSPORTE IRREGULAR DE PASSAGEIROS. VEÍCULO ADQUIRIDO SOB O CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. ILEGITIMIDADE DA ARRENDADORA PARA COMPOR O PÓLO PASSIVO. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. ACOLHIMENTO. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO FISCAL.
1. Trata-se de agravo regimental interposto pela Fazenda do Estado de São Paulo objetivando reformar acórdão que, em sede de embargos à execução fiscal, entendeu ser ilegítima a empresa de arrendamento mercantil para figurar no pólo passivo da ação visando a cobrança de débito proveniente de multa de trânsito por transporte clandestino de passageiros.
2. A empresa de arrendamento mercantil é, objetivamente, parte
ilegítima para figurar no pólo passivo da demanda causada pelo uso indevido do bem pelo arrendatário, porquanto o mesmo é o possuidor direto da coisa, descabendo à empresa arrendatária a fiscalização pela utilização irregular do bem.
3. Agravo regimental não-provido.
Registre-se, por oportuno, que a súmula nº 492/STF[5], que dispõe sobre a possibilidade de responsabilização da empresa locadora de veículos pelos danos causados pelo locatário, não tem aplicação aos casos relativos a contratos de arrendamento mercantil, pois, conforme relatado, os contratos de locação e de arrendamento mercantil não se confundem, uma vez que, embora apresentem notáveis semelhanças no regime de execução, apresentam natureza jurídica distintas.
A respeito do tema, importante trazer à baila o entendimento do Egrégio Supremo Tribunal Federal[6].
ARRENDAMENTO MERCANTIL (LEASING). RESPONSABILIDADE DA ARRENDADORA. A ARRENDADORA NÃO E RESPONSÁVEL PELOS DANOS CAUSADOS PELO ARRENDATARIO. NÃO SE CONFUNDEM O CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL (LEI 6.099/74) E A LOCAÇÃO, NÃO SE APLICANDO AQUELE A SÚMULA 492 DO S.T.F. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. (original sem destaque)
Fora tudo isso, é de destacar que a imputação de responsabilidade solidária ao arrendante pura e simplesmente pelo fato de ser este o proprietário do veículo causador do dano, é ilegal, pois, conforme cediço, a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes. A regra, expressa no artigo 265 do Código Civil, reporta-se ao fato de que a solidariedade tem caráter excepcional, não admitindo, portanto, interpretação extensiva.
Anote-se, nesse ponto, que se fosse a intenção do legislador atribuir a responsabilidade solidária à instituição financeira nos casos de arrendamento mercantil, teria o feito expressamente, tal como o fez no artigo 942, caput e § 1º do Diploma Civil, que tratam da responsabilidade solidária dos co-autores e dos responsáveis por atos de terceiros elencados no artigo 932 do mesmo Código Civil, respectivamente.
Assim, sendo o caso de não haver cláusula contratual expressa prevendo a possibilidade de responsabilização da empresa arrendante, não existirá base jurídica para tanto, pois não há na legislação em vigor qualquer dispositivo nesse sentido.
Conclusão
Por todo o exposto, entende-se que o arrendatário é responsável exclusivo por danos decorrentes de veículo automotivo arrendado, quando estiver com a posse direta do bem, salvo cláusula contratual expressa que preveja a responsabilidade solidária da instituição arrendante.
[1] Caio Mário da Silva Pereira, “Responsabilidade Civil”, 9ª edição, 2000, página 102.
[2] Novo Curso de Direito Civil – Responsabilidade Civil, volume III, 6ª edição, página 172.
[3] Recurso Especial nº 436.201-SP, STJ, Quarta Turma, Relator Ministro Aldir Passarinho Junior.
[4] AgRg no Ag 909245/SP, STJ, rel. Ministro José Delgado, DJe 07/05/2008.
[5] Súmula nº 492/STF. A empresa locadora de veículos responde, civil e solidariamente, com o locatário, pelos danos por este causado a terceiros, no uso do carro locado.
[6] RE 114938/RS – STF. 1ª Turma. Relator. Ministro Oscar Corrêa.
Procurador-Chefe Nacional do DNIT. Pós-graduado em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Tiago Coutinho de. A responsabilidade civil decorrente de acidente de trânsito causado por veículo arrendado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39610/a-responsabilidade-civil-decorrente-de-acidente-de-transito-causado-por-veiculo-arrendado. Acesso em: 23 dez 2024.
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