RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo tecer breves comentários acerca do instituto jurídico da inseminação artificial heteróloga, legislação aplicada e posições doutrinárias acerca do tema.
Palavras-chaves: inseminação. Artificial. Heteróloga. Disciplina. Jurídica. Direito. Civil. Legislação. Doutrina.
O direito de família contemporâneo caminha a passos largos para o direito de filiação desbiologizado, no qual se retira o vínculo biológico da posição central e se predomina a relação de afeto entre pai e filho, sendo as relações familiares baseadas na afetividade. No conflito, preferem-se os pais sociológicos aos pais biológicos ou naturais.
Nesse ponto, concentra-se o presente trabalho que realiza um estudo detido sobre a inseminação artificial heteróloga, legislação aplicada e algumas das principais vertentes que os doutrinadores adotam ao abordar o assunto.
Dessa forma, a importância do presente trabalho se observa na contribuição à discussão sobre a inseminação artificial heteróloga, analisando os problemas jurídicos e sociológicos deste instituto.
Neste ponto, cabe tecer breves comentários a outra forma de caracterização da filiação afetiva, a inseminação artificial heteróloga. A reprodução medicamente assistida, apta a gerar a presunção pater is est, pode ocorrer de três formas: a) inseminação artificial homóloga; b) inseminação artificial heteróloga; c) fertilização in vitro homóloga e d) fertilização in vitroheteróloga.
De acordo, com a escolha metodológica realizada neste trabalho, reunir-se-á neste tópico todas as informações necessárias a este estudo monográfico acerca da procriação assistida heteróloga, ao qual remeteremos o leitor sempre que necessário.
No que tange à inseminação artificial heteróloga há a utilização de material genético de terceiro, mas sempre a título gratuito. O médico realizará a fecundação com sêmen (e/ou óvulo) de terceira pessoa no laboratório, para posteriormente, implantar o embrião no corpo da mulher. Vale dizer, que para realização da procriação assistida de forma heteróloga, a Lei não exige que o marido seja estéril, ou que, não possa reproduzir, por qualquer questão física ou psíquica.
Por outro lado, para que se concretize a inseminação artificial heteróloga, a Lei exige a autorização expressa do marido ou companheiro, sendo que esta autorização também deve ser escrita, exigência perpetrada pela Resolução nº. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina. Desse modo, a criança concebida na procriação medicamente assistida heteróloga, com prévio ou posterior consentimento do marido ou companheiro, é, por presunção legal, filha do marido ou companheiro que autorizou o ato.
Como se vê, a fertilização heteróloga é uma forma de filiação exclusivamente socioafetiva, já que não há vínculos consangüíneos entre o marido ou companheiro da mulher fecundada e o filho concebido. Pode-se visualizar claramente uma filiação afetiva, o filho concebido com o sêmen de terceiro é fruto da vontade, que vem do fundo do coração, de quem deseja ter um filho, para cuidar, amar, proteger, dá carinho e atenção mesmo que ciente da inexistência de qualquer vínculo biológico com esse filho. A filiação biológica é desnecessária e até mesmo inútil, para este pai ou mãe afetivo.
Segundo Eduardo de Oliveira Leite, negligenciando os avanços alcançados pela verdade biológica, os promotores das procriações artificiais, das doações de gametas, pregam a desconsideração da tão só verdade genética em favor de uma verdade socioafetiva[1].
Assim, a doutrina nacional entende que tendo havido a autorização do marido ou companheiro para a inseminação artificial heteróloga, não poderá este, negar a paternidade em razão de inexistência de vínculo consanguíneo, até porque, quando consentiu com a inseminação artificial heteróloga, o marido ou companheiro tinha plena consciência de que o filho concebido somente poderia ser seu filho afetivo e não biológico. Desta forma, a negatória de paternidade biológica, violaria o princípio assentado em nosso sistema jurídico de venire contra factumpropriumnulliconceditur[2].
Zeno Veloso[3] confirma este entendimento, asseverando que, tendo consentido o marido na inseminação artificial de sua esposa, com sêmen de terceiro, não pode posteriormente, impugnar a paternidade, aduzindo ainda que, este ponto é pacífico na doutrina. Concluindo, que “a inseminação artificial consentida pelo marido deve conferir o estado de filho matrimonial. A paternidade, no caso, não tem base biológica, mas possui um fundamento moral, prestigiando-se a relação sócio-afetiva”[4]. Como afirmado por FlorisaVerucci essas formas de concepção fora do casal criam um novo tipo de parentesco, o parentesco voluntário[5].
Quanto à impossibilidade da impugnação da paternidade, com base na inexistência de vínculo consangüíneo, vale destacar, o posicionamento de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[6], in verbis:
Na fertilização heteróloga, a anuência do marido assume enorme relevância, funcionando como uma espécie de reconhecimento prévio de filho ou como uma adoção antenatal. Enfim, é caso típico de filiação socioafetiva, não se admitindo, via de conseqüência, a impugnação da paternidade, com base em prova pericial biológica, pois o vínculo paterno-filial se formou no instante em que se concedeu a aquiescência ao procedimento fertilizatório no cônjuge. É que, a toda evidência, o inciso V do art. 1.597 da Codificação, ao proclamar a sua esposa seja fecundada com sêmen de terceiro, esvaziou o conteúdo biológico da filiação, homenageando às escâncaras, a filiação socioafetiva.
Portanto, quem autorizou a concepção de um filho, com sêmen de terceiro, não pode criar uma relação paterno-filial temporária, que se mantenha ou se desfaça, de acordo com a sua mera vontade. Assim sendo, a ratio do inc. V, do art. 1.597, do Código Civil é: anuindo o marido na inseminação artificial de sua esposa com material genético de outrem, presume-se, de forma absoluta, a paternidade do filho concebido[7].
Por outro lado, a mesma doutrina que nega, peremptoriamente, a ação negatória de paternidade pelo marido ou companheiro da mãe que anuiu com a inseminação artificial heteróloga, permite o ingresso com ação de investigação de paternidade biológica (contra o doador do sêmen), apenas para a postulação de três efeitos jurídicos, a saber: – I. por necessidade psicológica em conhecer a origem genética; II. para fins de impedimentos matrimoniais; III. para preservar a saúde e vida dos pais ou do filho biológico, em caso de grave doença genética[8].
Dessa forma, quando há o consentimento do marido na fertilização artificial heteróloga, a investigação de paternidade biológica, somente será levada a cabo, para resguardar os direitos da personalidade do filho concebido. Não sendo investigação de paternidade para todos os efeitos, mas exclusivamente investigação de origem genética, para se obter os efeitos citados acima, os quais serão pormenorizadamente estudados no tópico 3.7.
Quanto à possibilidade de investigação da ascendência genética na inseminação artificial heteróloga, em detrimento do anonimato do terceiro doador do sêmen, vale destacar, as observações de Reinaldo Pereira Silva[9]:
No Brasil, a regra do anonimato[10] não consta de nenhum artigo de lei, mas sim do inciso IV números 2 e 3 da Resolução 1.358, do Conselho Federal de Medicina, datada de 11.11.1992. Dessa maneira, nada impede que o filho concebido artificialmente, desde que queira, proponha contra o pai biológico, o doador de gametas, ação de investigação da paternidade. Duas são as razões para tanto. Por primeiro, porque ninguém é obrigado a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Em segundo lugar, porque o conhecimento da ascendência biológica é direito fundamental do homem, alicerce indisponível da instituição familiar.
Nesse sentido, vale a transcrição do entendimento de Leila Donizetti[11] acerca do anonimato dos doadores de sêmen na procriação assistida heteróloga, a saber:
Pode-se afirmar, portanto, que a imposição dessa regra é extremamente controversa, uma vez que afronta o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Ora, permitir ao indivíduo o acesso às informações que lhe dizem respeito nada mais é do que uma das facetas que compõem os direitos da personalidade, razão pela qual deve ser outorgado ao indivíduo que se encontra nessa situação o direito de exigir que referidos dados, tão particulares, lhe sejam transmitidos. [...] a subtração a priori do direito do filho soa como algo absurdo, pois os pais, literalmente, roubam o direito de o filho conhecer as suas origens.
De fato, é justo que seja possibilitado ao filho, fruto da procriação assistida heteróloga, o acesso aos dados genéticos dos doadores de sêmen arquivados nas clínicas de fertilização, em nome do direito da personalidade. Todavia, somente para fins de conhecimento da ascendência genética, não com o intuito de investigar a paternidade e atribuir-lhes os efeitos decorrentes do reconhecimento da relação de filiação.
Portanto, na procriação assistida heteróloga, a investigação de paternidade será apenas para a postulação de três efeitos jurídicos, a saber: – I. por necessidade psicológica em conhecer a origem genética; II. para fins de impedimentos matrimoniais; III. para preservar a saúde e vida dos pais ou do filho biológico, em caso de grave doença genética[12].
Todavia, no caso de não ter havido a autorização do marido ou companheiro, cabe a este, de imediato, postular ação negatória de paternidade e/ou de maternidade biológica e/ou afetiva. Isto porque, se foi concretizado o estado de filho afetivo, não é mais possível a revogação desta filiação, por aplicação analógica do artigo 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma vez que, consagrada a filiação socioafetiva, esta se tona irrevogável, salvo se comprovado vício jurídico no seu reconhecimento. Ademais, vale reiterar que poderá haver, em qualquer caso, a possibilidade do ajuizamento de ação de investigação de paternidade e/ou maternidade biológica (contra o doador de sêmen), para a concessão dos três efeitos comentados acima[13].
Desta forma, resta claro que na ausência de consentimento do marido ou companheiro na inseminação artificial de sua esposa ou companheira, cabe a ele, imediatamente interpor uma ação negatória de paternidade, com base na ausência de vínculo biológico, contudo, isto deve ocorrer antes da consolidação da filiação afetiva.
O parentesco civil descrito no art. 1.593 não decorre somente da adoção, mas também da filiação proveniente de reprodução assistida heteróloga.
A fertilização heteróloga é uma forma de filiação exclusivamente socioafetiva, já que não há vínculos consangüíneos entre o marido ou companheiro da mulher fecundada e o filho concebido. O filho concebido com o sêmen de terceiro é fruto da vontade, que vem do fundo do coração, de quem deseja ter um filho, para cuidar, amar, proteger, dá carinho e atenção mesmo que ciente da inexistência de qualquer vínculo biológico com esse filho. Desse modo, a criança concebida na procriação medicamente assistida heteróloga, com prévio ou posterior consentimento do marido ou companheiro, é, por presunção legal, filha do marido ou companheiro que autorizou o ato. De acordo com o inc. V, do art. 1.597, do Código Civil, tendo anuido o marido na inseminação artificial de sua esposa com material genético de outrem, presume-se, de forma absoluta, a paternidade do filho concebido.
Portanto, na procriação assistida heteróloga, a investigação de paternidade e/ou maternidade biológica será apenas para a postulação de três efeitos jurídicos, a saber: – I. por necessidade psicológica em conhecer a origem genética; II. para fins de impedimentos matrimoniais; III. para preservar a saúde e vida dos pais ou do filho biológico, em caso de grave doença genética.
AGUIAR, Mônica. Direito à filiação e bioética. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 3. Ed. São Paulo: Rideel, 2006.
______. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm> Acesso em: 15 nov. 2011.
______. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: Acesso em: 12 dez. 2011.
DONIZETTI, Leila. Filiação Socioafetiva e direito à identidade genética. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
FARIAS, Cristiano Chaves.Alimentos decorrentes do parentesco.In CAHALI, Francisco José e PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coords.). Alimentos no Código Civil, aspectos civil, constitucional, processual e penal. São Paulo: Saraiva, 2005.
______. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen júris, 2010.
LEITE, Eduardo de Oliveira. Exame de DNA, ou, o Limite entre o Genitor e o Pai. In LEITE, Eduardo de Oliveira. (coord.). Grandes Temas da Atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
SILVA, Reinaldo Pereira e. Acertos e desacertos em torno da verdade biológica. In LEITE, Eduardo de Oliveira. (coord.). Grandes Temas da Atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
VELOSO, Zeno. A sacralização do DNA na investigação de paternidade.In LEITE, Eduardo de Oliveira. (coord.). Grandes Temas da Atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997.
VERUCCI, Florisa. O Direito de ter Pai. In LEITE, Eduardo de Oliveira. (coord.). Grandes Temas da Atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: RT, 2003.
[1] LEITE, Eduardo de Oliveira. Exame de DNA, ou, o limite entre o genitor e o Pai. IN LEITE, Eduardo de Oliveira. (Coord.). Grandes Temas da Atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 78.
[2] Nesse sentido, vale destacar as observações aduzidas por Mônica Aguiar : “A expressão latina supra epigrafada é reservada, exatamente, para as hipóteses em que seja exercida uma fazuldade em contradição com o comportamento anteriormente assumido pelo exercente. Indispensável à existência do instituto que haja dois comportamentos da mesma pessoa, válidos em si mesmos, mas realizados em momentos distintos, em que o primeiro é contrariado pelo segundo.
Ao prestar consentimento necessário à realização de ato médico destinado à procriação assistida, a pessoa exerce um direito potestativo apto ao estabelecimento de uma situação jurídica de filiação, que não pode mais, por sua vontade em sentido oposto desconstituir.” AGUIAR, Mônica. Direito á filiação e bioética. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 97-98.
[3] ZENO, Veloso. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 150.
[4] Como já referido no tópico acerca da filiação jurídica, o Código Civil de 2002, em seu art. 1.597, inc. V presumiu a paternidade e maternidade dos filhos concebidos na constância do casamento por inseminação artificial heteróloga, desde que realizada com a autorização do marido ou companheiro da genitora.
[5] VERUCCI, Florisa. O Direito de ter Pai. In LEITE, Eduardo de Oliveira. (Coord.). Grandes Temas da Atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 97.
[6] FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 579.
[7] “Nessa diapasão, o Enunciado 258 da Jornada de Direito Civil assevera não caber ‘ a ação prevista no art. 1.601 do Código Civil se a filiação tiver origem em procriação assistida heteróloga, autorizada pelo marido nos termos do inciso V do art. 1.597, cuja paternidade configura presunção absoluta’.” FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op cit., p. 578-580.
[8] WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: RT, 2003, p. 235.
[9] SILVA, Reinaldo Pereira e. Acertos e desacertos em torno da verdade biológica. IN LEITE, Eduardo de Oliveira. (Coord.)..Grandes Temas da Atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 250.
[10] A título de esclarecimento, vale citar o tratamento da matéria no direito comparado: “na Alemanha, os Tribunais entendem que toda criança tem o direito de ver estabelecida sua filiação paterna e, no caso de negatória do pai social, de uma criança nascida de inseminação artificial heteróloga, aqueles Tribunais atribuem, sistematicamente, a paternidade ao pai biológico, isto é, ao doador, que não pode ficar totalmente anônimo. Na França, continua-se a preservar o anonimato do doador. Implicitamente isto significa reconhecer que, neste país, se optou em favor da prevalência da vontade como valor fundador da filiação. Isto é, enquanto na Alemanha se privilegiou a mera paternidade biológica, na França, é a paternidade afetiva (ou social) que se impôs como regra.” LEITE, Eduardo de Oliveira. Exame de DNA, ou, o limite entre o genitor e o Pai. IN LEITE, Eduardo de Oliveira. (Coord.)..Grandes Temas da Atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 78.
[11] DONIZETTI, Leila. Filiação Socioafetiva e direito à identidade genética. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 119.
[12] WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: RT, 2003, p. 235.
[13] WELTER, Op. cit., p. 235.
Procuradora do Estado de São Paulo. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduada em Direito do Estado pelo JusPodivm.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NERI, Renata Viana. Breves comentários acerca da disciplina jurídica da inseminação artificial heteróloga Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39613/breves-comentarios-acerca-da-disciplina-juridica-da-inseminacao-artificial-heterologa. Acesso em: 23 dez 2024.
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