RESUMO: A integração comunitária traz consigo uma nova ordem de problemas constitucionais, que entendemos não serem solucionados pelas concepções constitucionais clássicas, pautadas em uma racionalidade formal e ontológica. A pretensão de integração política, econômica e social de comunidades como a União Europeia e o Mercosul, faz com que os problemas constitucionais perpassem as fronteiras dos Estados Membros, tornando-se questões relevantes para mais de uma ordem constitucional, que não reconhecem uma relação hierárquica apriorística entre si. Nossa problemática gira em torno, portanto, dessa questão principal: “quando a mesma discussão de cunho constitucional for tratada de maneira diferente por cortes de ordens diversas, como resolver a questão?”. Nesse diapasão, a proposta teórica de Marcelo Neves, denomina Transconstitucionalismo, parece-nos confortável para lidar com a problematização apresentada. Contudo, antes de delimitá-la teoricamente, pretendemos revisitar as concepções clássicas de constitucionalismo e de soberania, bem como as tentativas de harmonização desenvolvidas pela União Europeia nos últimos anos, para depois questioná-las. Importante, ainda, ressaltamos a relevância acadêmica desse debate, que buscará desconstruir algumas ideias tidas como incontestes no contexto do constitucionalismo atual, que, em geral, apresentam-se na forma de discursos maniqueístas e redutores de complexidade, os quais reproduzem uma cultura acadêmica formalista e acrítica. Por fim, como forma de exemplificar a proposta, analisaremos dois casos de transconstitucionalismo: um envolvendo o Brasil, no contexto do Mercossul (Caso dos Pneumáticos) e outro envolvendo a Itália, no contexto da União Européia (Caso Lautsi), de maneira a comparar as soluções dadas pelas duas ordens constitucionais. Tal observação comparada será realizada a partir dos pressupostos metodológicos da teoria sistêmica de Luhmann e da racionalidade argumentativa habermasiana.
Palavras-chave: Transconstitucionalismo. Racionalidade Comunicativa. Teoria Sistêmica. Brasil. Itália.
sumário: Introdução: pressupostos metodológicos para definição de constitucionalismo e transconstitucionalismo. 1 Do constitucionalismo ao neoconstitucionalismo: 1.1. Constitucionalismo antigo; 1.2. Constitucionalismo liberal; 1.3. Constitucionalismo social; 1.4, Neoconstitucionalismo; 2. Harmonização do direito; 3. Transconstitucionalismo; 4. Exemplificação de casos transnacionais na experiência comparada entre Itália (união europeia) e Brasil (mercosul): 4.1. O caso lautsi; 4.2. O caso pneumático; 5 Considerações finais.
INTRODUÇÃO: pressupostos metodológicos para definição de constitucionalismo e transconstitucionalismo
A busca pela verdade, como descoberta da realidade em si, apresenta-se, pois, como mola propulsora do agir científico ocidental. Seja na cultura cosmocêntrica da Escola de Mileto, na qual as construções teóricas a respeito da nomos desenvolviam-se com base nas leis da natureza; seja nos pressupostos do conhecimento desenvolvidos pelos socráticos; na fundamentação teológica da escolástica; ou mesmo na reafirmação da concepção humanista a partir da Renascença, o pensar científico buscou conceitos representativos de uma verdade absoluta, universal e estática.
Neste contexto, entendemos que a tradição essencialista permanece pautando diversos ramos das ciências, marcadamente a do direito, mesmo quando retoricamente se defende o contrário. Não é difícil verificar que a dogmática jurídica atual, mesmo mencionando as mudanças promovidas pelo giro hermenêutico, continua a sua busca pela “natureza” do direito, ou pela “essência” das normas, construindo dicotomias do tipo: direito objetivo/direito subjetivo, direito público/direito privado, regras/princípios, dentre tantas outras.
Ocorre que, não mais podendo recorrer a fundamentos metafísicos (“natureza”, “Deus”, “Razão”), o direito passa a exigir novas formulações que atendam à necessidade de certeza, sem, contudo, recair no formalismo extremado do positivismo exegético, cujos pressupostos não se adequariam à complexidade social da dita “pós-modernidade” ou mesmo aos anseios de uma reaproximação entre direito e justiça, proposta pelos pós-positivistas.
A questão nos parece de extrema complexidade quando analisada no contexto dos Estados ditos pós-nacionais, pois ao mesmo tempo em que se almeja um sistema jurídico local que se adeque às necessidades sociais regionais, com fundamento no conceito clássico de soberania, também se busca delimitar um padrão ético-moral mínimo, que possa atender aos anseios de certeza e verdade, com fundamento num conceito de justiça com pretensões universais, gerando diversos paradoxos que estagnam a ciência jurídica.
Dito de outra forma, continuamos buscando verdades imutáveis, pois não sabemos lidar com as incertezas da dita pós-modernidade. Procuramos um mínimo de essência na qual possamos nos agarrar, de forma a superar o abismo gnosiológico, que nos separa da “verdade”. Tal pretensão, contudo, nos parece fadada ao insucesso no contexto hipercomplexo da sociedade contemporânea, que rompe paradigmas e quebra dicotomias com uma velocidade inimaginável, fazendo com que a “verdade” descoberta dure ínfimos instantes.
Por essa razão, reconhecendo a contingência que envolve o saber científico atual, propomos que as verdades científicas sejam compreendidas como circunstanciais, históricas e construídas intersubjetivamente. Superando a perspectiva ontológica da busca pela verdade, pela compreensão pós-linguística da construção de verdades.
A partir desses pressupostos, objetivamos inicialmente contextualizar os diversos constitucionalismos, que se desenvolveram no Ocidente. Claro que não se pretende fazer um amplo estudo histórico, mas apenas ressaltar alguns aspectos que julgamos relevantes para a compreensão do transconstitucionalismo como proposta teórica para compreender/solucionar os embates entre as diversas ordens constitucionais sobrepostas, no contexto de comunidades transnacionais.
Por fim, como forma de exemplificar a proposta, analisaremos dois casos de transconstitucionalismo: um envolvendo o Brasil, no contexto do Mercossul (Caso dos Pneumáticos) e outro envolvendo a Itália, no contexto da União Européia (Caso Lautsi), de maneira a comparar as soluções dadas pelos dois sistemas jurídicos.
1. DO CONSTITUCIONALISMO[1] AO NEOCONSTITUCIONALISMO[2]
1.1. Constitucionalismo Antigo
O movimento denominado Constitucionalismo, embora de difícil delimitação teórica, costuma ser caracterizado por duas ideias principais, quais sejam: exercício limitado do poder e a garantia de direitos fundamentais.
Sobre o tema, Luís Roberto Barroso afirma existir três ordens de limitações trazidas pelo constitucionalismo: limitações materiais, que diriam respeito aos valores e direitos fundamentais que adentram as constituições, tais como as ideias de direitos naturais ou dignidade da pessoa humana; limitações orgânicas, materializadas pela distribuição de atribuições estatais por distintos órgãos (tripartição dos poderes); e limitações processuais, sobretudo com a adoção do devido processo legal (formal e substancial), que submete o Estado às suas próprias leis. [3]
Sendo, pois, o constitucionalismo compreendido como um ideal de limitação do exercício do poder pela supremacia da lei, alguns teóricos defendem a existência de constitucionalismo antes mesmo das primeiras constituições escritas, remontando à antiguidade clássica o nascedouro do movimento.
Embora alguns se refiram a um constitucionalismo primitivo no Egito (2.600 a.c.), ou mesmo na Babilônia (1.700 a.c), com a sistematização das punições estatais promovida pelo Código de Hamurabi, é com os Hebreus que a lei passa a ter dimensão simbólica. A Torah (Lei escrita) e o Talmud (Lei Oral), ao expressarem as regras morais, sociais e religiosas que deveriam ser observadas pelo povo de Deus, representariam uma primeira limitação sistemática ao exercício do poder político, caracterizando um modelo constitucionalista de sociedade.
Mas foi a tradição grego-romana que melhor caracterizou um constitucionalismo antigo, sendo Atenas apontada como a primeira grande experiência de limitação ao poder do Estado.[4] Conhecida como berço da democracia, a Grécia desenvolveu um governo das leis, cujo processo de elaboração se legitimaria pela participação popular. Além disso, distribuiu o exercício do poder político por distintos órgãos, dentre os quais destacamos: a Assembléia, na qual deliberam os cidadãos; o Conselho, responsável pela execução das atividades administrativas cotidianas; e as Cortes, responsáveis pelos grandes júris populares.
O helenismo produziu, sem dúvida, reflexos nas instituições e política romana, que absorveram a noção de democracia e de exercício limitado do poder. É sabido que Roma vivenciou quase todas as formas de governo, mas foi na Roma Republicana que se desenvolveu o ideal de governo limitado, sendo o poder político exercido pela Assembleia (legislativo), pelos Cônsules (executivo), Pretores, Questores e Tribunos da Plebe, além do Senado (órgão consultivo) e do Júri.
Com a queda do império Romano do Ocidente, houve um “hiato constitucional”[5], que só teria fim com a construção do Estado Moderno.[6] Em quase mil anos de história, portanto, o ideal de governo limitado pelas leis esteve soterrado, com algumas aparições esporádicas, a exemplo da Magna Carta Inglesa de 1215, que, apesar de representar muito mais um pacto do que propriamente uma constituição, previu em seu texto direitos e garantias fundamentais de extrema relevância, como o devido processo legal.
1.2. Constitucionalismo Liberal
Após o desmoronamento do sistema pluralista medieval, nasce o Estado Moderno, fundado na ideia de soberania, qualificada por Jean Bodin como absoluta, indivisível e permanente. Dessa ideia básica derivam o reconhecimento da supremacia da ordem jurídica interna, bem como a independência dos Estados Soberanos no plano internacional.
Inicialmente absolutista, o Estado-nação atendeu aos anseios burgueses de unificação, indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, ao mesmo tempo em que afastou a Igreja do poder temporal, distinguindo o sistema jurídico do sistema religião. Nesse contexto, implementa-se o paradigma do monismo jurídico[7], identificando o Estado como única fonte produtora do direito, ao mesmo tempo em que não o distinguia da figura do próprio monarca soberano (“"L'État c'est moi", Luís XIV).
Como é sabido, o paradigma absolutista foi suplantado pelo liberal, tendo a Revolução Francesa de 1789 sido o grande marco do triunfo burguês. Nesse contexto, o conceito de soberania permaneceu legitimando o monismo jurídico estatal, sendo identificada agora não mais com a figura do soberano, mas sim com o conceito de nação.
Para sedimentar a vitória da Revolução, precisava-se de um direito fundado em princípios universais, válido para qualquer tempo e espaço, devendo tais princípios serem deduzidos da razão humana, numa concepção individualista que preponderava na filosofia social da época.
Desse modo, as bases do direito natural (antes de origem teológica) passam a ser colocadas no indivíduo, evoluindo, posteriormente para uma concepção positivista do direito, que reduz a noção de justiça à noção de validade, identificada com o direito legislado, posto pelo Estado.
Surge, pois, a necessidade de positivação e sistematização do direito estatal, inaugurando a segunda fase do monismo jurídico. Nesse contexto, nascem as primeiras constituições escritas (a Constituição dos EUA de 1787 e a Constituição Francesa de 1791), que caracterizam o chamado constitucionalismo clássico ou liberal.
Nesse primeiro momento, com exceção da experiência Americana, a Constituição não foi encarada como norma jurídica fundamental, sendo percebida como um documento de cunho meramente político, que não normatizava a vida em sociedade. Tal papel foi assumido, no contexto francês, pelo Código Civil de 1804, protagonista do sistema jurídico da época, o que demonstra uma prevalência do chamado direito privado sobre o direito público, conforme preconizado pela Escola da Exegese.[8]
Podemos destacar, ainda, outras características do constitucionalismo liberal, dentre as quais: a supremacia do parlamento; o juiz como “a boca da lei”; a prevalência do método de interpretação por subsunção lógica, utilizando os elementos gramatical e lógico-sistemático, apenas; a garantia dos direitos de liberdade formais, também chamados de direitos fundamentais de primeira dimensão; a oposição de tais direitos ao Estado, que ganha caracteres de Estado negativo (eficácia vertical dos direitos fundamentais) e a tripartição do exercício das funções estatais.
1.3. O Constitucionalismo Social
O ultraindividualismo proposto pelo liberalismo clássico, bem como as pretensões holísticas da Escola da Exegese, foram postos à prova pela própria realidade social. A Revolução Industrial permitiu o fortalecimento de uma nova classe social, o proletariado, que possuía demandas específicas não resguardadas pela garantia de liberdade formal do Estado Burguês. Além disso, o próprio liberalismo econômico de Adam Smith foi derrotado pela “mão invisível do mercado”, como demonstrou a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929.
Nessa conjuntura, a figura da soberania do Estado, agora identificada com a ideia de “povo” e não mais com a “nação”, volta a ser fortalecida pela necessidade de intervenção social, política e econômica. Eis o apogeu do monismo jurídico, no qual o Estado Social de Direito assume importante papel na prestação de serviços básicos à população, por meio do reconhecimento dos direitos fundamentais de segunda dimensão, que são os direitos sociais e econômicos.
As Constituições do México de 1917 e a da República de Weimar de 1919 foram as primeiras a inaugurarem textualmente o Constitucionalismo Social, seguidas por diversas outras, a exemplo da Constituição Brasileira de 1934. Em comum, todas possuem um caráter de dirigismo social, de “Constituição Programa”, impondo ao Estado alguns objetivos fundamentais a serem alcançados, fazendo renascer consigo a promessa de vida boa da modernidade.
Contudo, diversos foram os entraves para concretização do dirigismo social, podendo ser ressaltado o inchaço da máquina estatal e o aumento exacerbado da despesa pública como aspectos negativos desse modelo, que, sobretudo em países ditos “periféricos”, como o Brasil, tornaram distante a concretização das promessas sociais.
Além disso, a própria ciência do direito permanecia presa a paradigmas formais, inadequados para solucionar os conflitos hipercomplexos da nova estrutura social. O positivismo jurídico, agora sistematizado pela Teoria Pura do Direito, concebeu o direito como “uma ordem normativa, como um sistema de normas que regulam a conduta de homens”[9], dito de outra forma, o direito seria um ordenamento coercitivo da conduta humana
Mas por que a norma jurídica valeria? Segundo Kelsen: “Dizer que uma norma que se refere à conduta de um indivíduo ‘vale’ (é ‘vigente’), significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma”.[10] Objetivando afastar qualquer influencia metafísica, econômica ou sociológica da explicação científica do direito, Kelsen complementa que “o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma”.[11] O que Kelsen quer dizer é que uma norma inferior busca sua validade numa norma que lhe é superior, e esta, superior a primeira, busca sua validade numa norma que lhe é superior também, e assim sucessivamente.
Ocorre que essa digressão não pode ser infinita, por isso Kelsen faz uso da ideia de que devemos pressupor uma norma fundamental (Grundnorm - constituição no sentido lógico-jurídico), última e mais elevada do ordenamento. Tal norma não poderia ser uma norma posta por uma autoridade, uma norma positiva, isto porque, para ser uma norma posta, deveria existir uma norma ainda mais elevada que conferisse competência a uma determinada autoridade, não resolvendo a questão da regressão ao infinito.[12]
A norma fundamental hipotética não teria, segundo Kelsen, nenhum conteúdo ético, moral, religioso, na realidade, não possuiria nenhum conteúdo predeterminado. Ou seja, a norma que constitui o ponto de partida do ordenamento jurídico não vale por força do seu conteúdo, da mesma forma que “uma norma pertence a um ordenamento que se apoia numa tal norma fundamental porque é criada pela forma determinada através dessa norma fundamental – e não porque tem um determinado conteúdo”.[13] Com isso, o positivismo Kelseniano passa a admitir que “todo e qualquer conteúdo pode ser Direito”[14], afastando qualquer explicação axiológica do fenômeno jurídico.
Dito de outra forma, na pressuposição da norma fundamental não se questiona justiça ou injustiça, pelo contrário, a teoria pura do direito busca conduzir a uma interpretação do ordenamento jurídico que seja livre de autoridades metafísicas, como Deus ou a natureza, bem como de divagações conteudísticas de justo ou injusto.
Logo abaixo da constituição no sentido lógico-jurídico, a pirâmide Kelseniana prevê a Constituição no sentido jurídico-positivo, norma positiva suprema, que regula a produção de normas gerais, podendo também determinar o conteúdo das novas leis, prescrevendo ou excluindo determinados conteúdos. Com esse escalonamento normativo, Kelsen afirma a supremacia formal da constituição, que passa a ser parâmetro para controle da produção normativa do Estado, dando origem ao modelo de controle de constitucionalidade Austríaco (concentrado).
Nesse diapasão, a Constituição passa a ser caracterizada norma jurídica fundamental, produzida pelo Estado no exercício da sua soberania, prevendo para a sua modificação um processo mais exigente, com um quorum mais elevado, diferente do processo legislativo comum (Constituição Rígida), tendo papel precípuo de dirigir a vida social e política do Estado, sem recorrer, contudo, a fundamentos axiológicos/metafísicos.
1.4. Neoconstitucionalismo
A separação entre direito e valores, promovida pelo positivismo jurídico, além de impossibilitar soluções adequadas às contradições culturais e materiais, tão comuns no contexto hipercomplexo da dita “pós-modernidade”, tornou válidas as atrocidades cometidas por regimes autoritários, cobrindo de juridicidade episódios como o holocausto nazista.
Com isso, sobretudo após a segunda guerra mundial, cresceu em importância um movimento teórico que objetivou reaproximar direito e valores, pressupondo a dignidade da pessoa humana como fundamento último do direito. Assim, nos últimos 50 (cinquenta) anos cresceu em importância o que se convencionou chamar de Neoconstitucionalismo, movimento jurídico de difícil delimitação teórica, em razão da mais variada gama de teóricos que se intitulam ou são intitulados como seus representantes.
Mesmo diante da dificuldade de caracterização do movimento, costuma-se atribuir ao Neoconstitucionalismo, dentre outras particularidades: a reaproximação entre direito e justiça, fundada na filosofia pós-positivista; o reconhecimento da força normativa da constituição; a centralidade da Constituição, com a consequente constitucionalização do direito; a prevalência dos princípios sobre as regras; a substituição da subsunção pelo sopesamento; a prevalência da justiça particular sobre a justiça geral; o protagonismo do judiciário, destacando-se o seu papel no controle de constitucionalidade.
Muito embora se reconheçam alguns benefícios trazidos pelo modelo proposto pelos chamados neoconstitucionalistas, diversas são as críticas que vêm sendo levantadas ao movimento no Brasil. Uma delas merece especial atenção, qual seja: o agravamento do problema da consistência do sistema jurídico (já tão característico da história constitucional brasileira), sobretudo, em razão do uso abusivo dos princípios e da aplicação da “ponderação desmedida”. Tal prática gera o risco de construirmos um modelo no qual a consistência jurídica acabe por se diluir no social, permitindo que os princípios sejam articulados para encobrir favorecimentos a interesses particularistas envolvidos na solução do caso.[15]
Apesar da relevância de tais críticas, o aprofundamento desse debate nos levaria para longe do nosso objeto principal, qual seja: os conflitos entre ordens constitucionais transnacionais. A crítica que nos interessa fazer, portanto, restringe-se a incapacidade da teoria neoconstitucional de superar o conceito clássico de soberania, o que limita suas propostas teóricas a circunscrição dos Estado-nacionais, tornando-a insuficiente para atender as demandas de uma sociedade globalizada.
A integração comunitária traz consigo uma nova ordem de problemas constitucionais, que entendemos não serem solucionadas pelas concepções de Constitucionalismo até aqui apresentadas. A pretensão de integração política, econômica e social de comunidades como a União Europeia e o Mercosul, faz com que os problemas constitucionais perpassem as fronteiras dos Estados Membros, tornando-se questões de relevância para diversas ordens constitucionais, que proferem decisões que se sobrepõem, ao mesmo tempo em que não se reconhece uma ordem hierárquica apriorística entre elas.
Nossa problemática gira em torno, portanto, de uma questão principal: “quando a mesma discussão de cunho constitucional for tratada de maneira diferente por cortes de ordens diversas. Como, então, resolver a questão?” Nesse diapasão, a proposta teórica de Marcelo Neves, denomina Transconstitucionalismo, parece-nos confortável para lidar a problematização apresentada. Contudo, antes de delimitá-la teoricamente, pretendemos apresentar algumas outras soluções para os conflitos entre ordens jurídicas soberanas.
Para tanto, utilizar-mos-emos dos conhecimentos adquiridos durante o curso de Direito Europeu ”Tradizione civilistica e Armonizzazione del diritto nelle Corti Europee”, sobretudo das anotações da aula do Professor RICARDO CARDILLI, intitulada “Fondamenti del diritto europeo”, ministrada em julho de 2013, na cidade de Roma/Itália.
3. HARMONIZAÇÃO DO DIREITO[16]
Como já afirmado, o panorama social e econômico sofreu profundas modificações com a estruturação de sociedades regionais, contudo a visão jurídica não acompanhou a evolução social, com isso permanecemos analisando problemas jurídicos mundiais com base em direito ainda nacional.
Várias foram as propostas teóricas para solução dessa moderna problemática no âmbito da União Europeia, as quais passaremos a apresentar de forma sistematizada:
A - A primeira tentativa de solução consistiu em buscar uma unificação do direito supranacional, no âmbito do Direito Internacional Público, via tratados e acordos entre os Estados Membros da União Europeia. Assim, os Estados signatários de tratado, poderiam ceder parte de sua soberania, visando construir um direito internacional, que solucionasse os conflitos entre si. A Convenção Viena de 1980 representou a principal tentativa nesse sentido. Para sua formulação, previu-se que cada Estado-membro enviaria um jurista como representante para compor uma comissão responsável pela elaboração do tratado. Tal pretensão esbarrou, contudo, nas grandes diferenças entre os Estado envolvidos, sobretudo entre os sistemas jurídicos do Civil Law e do Common Law.
B – O Direito internacional privado representou outra tentativa de solução para os problemas transnacionais. Contudo, o direito internacional privado é, por definição, a negação de um direito uniforme. É a utilização de direito nacional para negócio internacional, esbarrando, portanto, nas mesmas limitações da proposta anterior.
C – A terceira tentativa diz respeito aos projetos de unificação do direito, não mais por meio de convenções ou tratados, mas por atuação de especialistas de diversos países, que ficariam responsáveis por elaborar projetos de unificação das legislações nacionais. Interessante ressaltar que tais projetos não são formulados pelo Estado, mas por Institutos de pesquisa, como o UNIDROIT (International Institute for the Unification of Private Law), com sede em Roma, cuja finalidade é a unificação do direito mundial, e não do direito europeu apenas.
D – Por fim, propôs-se um Parlamento Europeu para construção de uma constituição transnacional. A proposta inicial previa a elaboração de um projeto por grandes juristas de cada um dos países com o objetivo de unificar os direitos nacionais. Tal projeto seria, então, apresentado em cada país, nas cortes e nas universidades. Tal pretensão também não obteve sucesso em razão das diferenças jurídicas, sociais e culturais entre os países membros da União Europeia.
Após tantas falhas na tentativa de unificação, a solução foi alterar o objetivo para a tentativa de harmonização do direito, que consistiria na descrição de regras e princípios que fossem comuns a todos os Estados, impondo a esses a elaboração de uma legislação nacional coerente com esses princípios. Ocorre que alguns países não elaboraram a legislação local em conformidade com o Direito Comum Europeu, tendo que recorrer à técnica de harmonização promovida pela Corte Europeia, que, em seus mais de 30 (trinta) anos de atividade, terminou por criar um catálogo de topoi para solucionar os problemas transnacionais, dentre os quais destacamos os princípios da boa-fé, da concorrência e do contraditório substancial.
Além dessas perspectivas de soluções substancialistas, que buscam delimitar um conteúdo mínimo universal e apriorístico para o direito europeu, existem, ainda, as propostas procedimentalistas, que pretendem reconhecer uma hierarquia da Corte Europeia sobre as Cortes Locais, solucionando os conflitos transnacionais por meio de regras de autoridade.
Entendemos, contudo, que todas as soluções apresentadas ignoram um aspecto de extrema importância para a superação dos problemas constitucionais envolvendo mais de uma ordem jurídica, qual seja: a necessidade de diálogo transversal entre elas. Por isso, entendemos o transconstitucionalismo como proposta adequada para trabalhar os problemas transnacionais.
3 – TRANSCONSTITICIONALISMO[17]
O próprio constitucionalismo, como vimos, foi erigido a partir da lógica do Estado Soberano, que, sob o paradigma do monismo jurídico, seria detentor do monopólio da jurisdição, não reconhecendo qualquer poder superior ao seu. Ocorre que, cada vez com mais frequência, um mesmo problema constitucional passa a ter importância para duas ou mais ordens jurídico-estatais distintas.
Para solucionarmos tais problemas transconstitucionais, necessário se faz desenvolver métodos, que ultrapassem a noção clássica de soberania, prevendo a necessidade de diálogos transversais entre as ordens constitucionais que possuam interesse na solução da demanda.
Entendemos que tal solução não se faz possível com a imposição unilateral de uma ordem sobre a outra, sendo necessário uma fusão de horizontes de compreensão para superar os “pontos cegos” existentes em cada uma das visões de mundo. Neste sentido, Neves esclarece que:
(...) todo observador tem um limite de visão no ponto cego, aquele que o observador não pode ver em virtude da sua posição ou perspectiva de observação. (...) cabe observar que o ponto cego de um observador pode ser visto pelo outro. Nesse sentido, pode-se afirmar que o transconstitucionalismo implica o reconhecimento dos limites da observação de uma determinada ordem, que admite a alternativa: o ponto cego, o outro pode ver. [18]
Com isso não se pretende defender o fim do direito constitucional interno, fundado na lógica da soberania. Muito pelo contrário, entendemos que o modelo constitucional clássico é capaz de solucionar a maioria dos conflitos cotidianos em sociedade. Contudo, cada vez mais os problemas transconstitucionais estão se afirmando como qualitativamente relevantes, sobretudo no âmbito dos debates acerca dos direitos humanos, das intolerâncias religiosas e étnicas, das questões econômicas, dentre tantas outras.
Apresentando-se uma questão transnacional, entendemos que as teorias clássicas não são suficientes para a sua solução das demandas. Para tanto, entendemos ser indispensável uma atuação coordenada dos sistemas jurídicos envolvidos, e não a subordinação de um deles, ou de ambos, a um modelo único de solução apriorística.
O que se propõe, portanto, não é apenas uma simplesmente abertura cognitiva do sistema jurídico nacional para absorver a comunicação desenvolvida pelo seu entorno, mas sim um verdadeiro acoplamento estrutural, que pressupõe uma atuação coordenada entre as ordens jurídicas sob a ótica da racionalidade comunicativa, com objetivo de buscar uma solução adequada do problema.
A ideia de acoplamento estrutural, desenvolvida pela teoria dos sistemas sociais de Luhmann, pressupõe que as operações do sistema dependem das condições do entorno, que se mediam por estes acoplamentos. Em suas palavras:
(...) os limites de um sistema não bloqueiam as influencias em nenhuma direção. Uma comunicação faz vibrar o ar ou colore o papel, muda os estados eletromagnéticos dos aparatos correspondentes aos estados dos sistemas de consciência que participam; isto afeta aos meios respectivos, que passam de um acoplamento frouxo a um acoplamento temporalmente firme (LUHMANN, 2007:96-97). [19]
Com isso, entende-se que a pluralidade de ordens jurídicas implica numa relação de complementariedade entre alter e ego, pressupondo a questão da dupla contingência e das pretensões de validade recíproca entre os dois sistemas. Daí por que, em vez da busca de uma Constituição Supranacional, composta de regras hercúleas, o transconstitucionalismo aponta para a necessidade de enfrentamento dos problemas “hidraconstitucionais mediante a articulação de observações recíprocas entre as diversas ordens jurídicas da sociedade mundial.”[20] (NEVES, 2009, p. XXV).
A teoria habermasiana da racionalidade nos ajuda a melhor explicar o que propomos, pois se apresenta-se como uma tentativa generalizante de abarcar todas as manifestações racionais do sujeito. Qualquer asserção ou ação poderá ser tida como racional, desde que suscetível de criticismo e fundamentação, ou seja, desde que possa fornecer razões e fundamentos. Segundo Habermas:
(...) uma expressão satisfaz a pré-condição de racionalidade, se e na medida em que corporifica conhecimento falível e, portanto, tem uma relação com o mundo objetivo (isto é, uma relação com os fatos) e está aberta ao julgamento objetivo.[21]
A racionalidade se produz graças a uma relação dialógica prévia e não se move no vazio de uma interioridade constituída à margem de toda comunicação, como querem os filósofos da tradição da filosofia da consciência.[22] Nesta perspectiva, uma pessoa (no nosso caso, um tribunal ou um organismo internacional) se expressa racionalmente à medida que se guia, relativamente, por pretensões de validade, ou seja, pressupõe uma relação reflexiva da personalidade com aquilo que crê, faz ou diz.
Isto não implica que as crenças racionais e as convicções sejam sempre compostas de juízos verdadeiros, dito de outra forma, a racionalidade de um juízo não implica sua verdade, mas apenas sua aceitabilidade fundamentada num contexto dado. Em contra partida, irracional é aquele que defende dogmaticamente suas crenças e que a elas se prende apesar de não as poder fundamentar.[23]
Do posto de vista pragmático, adotado por Habermas, a linguagem assume relevância enquanto elemento mediador das relações que os falantes estabelecem entre si, quando se referem a algo no mundo. Quando assim o fazem, assumem os papeis dialogais de ego e alter, em que ego se utiliza de um ato de fala para expressar um estado de coisas referentes ao mundo, para o qual busca a anuência do alter.[24] Cada ego se utiliza, então, de um ato de fala, o qual traz em si implicitamente a pretensão de ser verdadeiro e poder ser reconhecido como tal pelo alter. O alter vai adotar, por sua vez, uma posição de concordância em relação à pretensão de validade embutida no conteúdo do proferimento do ego.
Dessa forma, uma asserção pode ser dita racional somente se o falante satisfizer as condições necessárias para alcançar um entendimento sobre algo no mundo com pelo menos um outro participante na comunicação, buscando o reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis (consenso).[25]
Dito isso, passaremos a analisar dois casos que exemplificariam problemas transconstitucionais: o Caso Lautsi e o Caso Pneumáticos. Ressaltamos, contudo, que a análise não entrará na descrição detalhada de cada um dos casos, pois a nossa pretensão é apenas exemplificar situações transconstitucionais envolvendo o Brasil e a Itália.
4 – EXEMPLIFICAÇÃO DE CASOS TRANSNACIONAIS NA EXPERIÊNCIA COMPARADA ENTRE A ITÁLIA (UNIÃO EUROPEIA) E O BRASIL (MERCOSUL)
4.1. O Caso Lautsi[26]
Os pais de duas crianças italianas (Dataico e Sami Albertin) pleitearam, junto à Administração da Escola Pública na qual os filhos estudavam, a retirada dos crucifixos presentes na sala de aula, sob o fundamento de que presença do símbolo cristão estaria ferindo a liberdade religiosa de sua família, bem como estaria em contradição com o princípio da laicidade.
Tal requerimento foi negado pela diretoria da escola, passando, ainda, pelo Conselho Escolar, Tribunal Administrativo de Veneza, e Conselho de Estado, que mantiveram o indeferimento do pedido. Diante disso, a Soile Lautsi, mãe das crianças, propôs recurso à Corte Europeu de Direitos Humanos, que, por unanimidade, julgou que a conduta do governo italiano violou o art. 9º da Convenção Europeia de Direitos Humanos - CEDH[27], cumulado com o art. 2º do Protocolo nº 1 da mesma Convenção[28]. Nesse sentido, o acórdão do Tribunal conclui que:
La presenza del crocifisso, che è impossibile non notare nelle aule scolastiche, potrebbe essere facilmente interpretata dagli studenti di tutte le età come un simbolo religioso, che avvertirebbero così di essere educati in un ambiente scolastico che ha il marchio di una data religione.
Tutto questo, potrebbe essere incoraggiante per gli studenti religiosi, ma fastidioso per i ragazzi che praticano altre religioni, in particolare se appartengono a minoranze religiose, o che sono atei. La Corte non è in grado di comprendere come l'esposizione, nelle classi delle scuole statali, di un simbolo che può essere ragionevolmente associato con il cattolicesimo, possa servire al pluralismo educativo che è essenziale per la conservazione di una società democratica così come è stata concepita dalla Convenzione europea dei diritti umani, un pluralismo che è riconosciuto dalla Corte costituzionale italiana.
L'esposizione obbligatoria di un simbolo di una data confessione in luoghi che sono utilizzati dalle autorità pubbliche, e specialmente in classe, limita il diritto dei genitori di educare i loro figli in conformità con le proprie convinzioni e il diritto dei bambini di credere o non credere
Diversas foram as críticas da sociedade italiana, bem como de políticos e juristas de diversos países, à decisão da Corte Europeia, a maioria delas alega a intolerância de tal decisão com a tradição cristã, ou mesmo uma imposição do “laicismo” aos Estados membros da União Europeia. Além disso, argumentou-se que houve a prevalência do interesse individual da senhora Lautsi frente ao interesse social de referencia histórico-cultural da comunidade italiana e europeia. [29]
Inconformado, o governo italiano requereu a reanálise da matéria pela Grand Chambre da Corte de Estrasburgo, participando como Amicus Curiae outros dez países membros da União Europeia: Armênia, Bulgária, Chipre, Grécia, Lituânia, Malta, Mônaco, San Marino, Romênia e a Federação Russa. A participação de outros Estados na causa, demonstra por si só a relevância transconstitucional do caso Lautsi, “pois, em geral, os Estados membros privam-se de intervir ou intervêm somente quando o caso afeta um cidadão de seu Estado”[30]
Em síntese, a Itália alegou que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos não teria competência para impor o laicismo a um país, em particular para a Itália, caracterizada por sua majoritária prática religiosa e identidade católica. Considerando as críticas e alegações levantadas, por 15 (quinze) votos a 2 (dois), a Corte de Estrasburgo decidiu que a presença de símbolo cristão em escola pública não violaria os direitos humanos, considerando o seu valor cultural e histórico na Itália.
Como se percebe, estamos diante de um caso clássico de transconstitucionalismo, ou seja, de ordens constitucionais se deparam com problemas que não podem ser solucionados pelos critérios do constitucionalismo tradicional, pois decorrem do entrelaçamento de ordens jurídicas. O presente caso é extremamente emblemático ao demonstrar ser impossível uma solução satisfatória a partir de uma imposição unilateral, de quaisquer das partes.
4.2. O Caso Pneumático
No contexto da tutela ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o Brasil procura adotar uma política social e econômica que vise a reduzir os riscos de doenças oriundas de problemas sanitários e ambientais. E é nesse contexto que se inclui a proibição de importação de pneus usados e recauchutados.
Contudo, por trazer diversos reflexos econômicos no contexto regional e internacional, a vedação de importação dos pneus usados se caracteriza como mais um caso de transconstitucionalismo, pois envolveu, como veremos, não apenas as Decisões do Supremo Tribunal Federal, mas chegou a ser o centro dos debates no âmbito do Tribunal Arbitral ad hoc do Mercosul e do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC.[31]
Em 2000, a Portaria 8/00 SECEX proibiu toda concessão de licença para importação de pneus usados e recauchutados. Contra essa medida restritiva, insurgiu-se o Uruguai, que levou o caso para o Tribunal Arbitral do Mercosul, o qual decidiu ser a atitude do Governo brasileiro contrária aos princípios fundamentais do Mercosul, uma vez que os argumentos levantados pelo governo Brasileiro restringia-se a aspectos comerciais, não se aventando a questão ambiental e de saúde pública que envolviam a importação de pneus usados.
A questão também foi levada à OMC em razão das restrições ao mercado internacional. Em sua defesa, o governo brasileiro mudou o discurso e incluiu o elemento ambiental como justificativa para as restrições empreendidas. Analisando os argumentos de tutela ao meio ambiente e de garantia da saúde pública, a OMC concluído que a medida restritiva brasileira poderia justificar-se como uma medida “necessária” para proteger a saúde ou vida humana, animal ou vegetal, mas não deveria subsistir em razão das importações permitidas via decisões liminares, que se multiplicavam no ordenamento jurídico interno. Sendo assim, a restrição, que apenas recaia sobre alguns, foi entendida como discriminação “arbitrária e injustificada” e uma restrição “disfarçada” ao comércio internacional.[32]
Buscando solucionar a controvérsia das liminares, a Presidência da República propôs ADPF junto ao Supremo Tribunal Federal, que terminou por decidir pela inconstitucionalidade de se importar pneus usados. Em seu relatório, a Ministra do Carmen Lúcia Antunes Rocha esclareceu que:
[...] a questão deve ser solucionada com base na Constituição Federal, que garante o direito à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado [...] a dificuldade na decomposição dos elementos que compõem o pneu e de seu armazenamento, os problemas que advém com sua incineração, o alto índice de propagação de doenças, como a dengue, decorrente do acúmulo de pneus descartados ou armazenados a céu aberto, o aumento do passivo ambiental – principalmente em face do fato de que os pneus usados importados têm taxa de aproveitamento para fins de recauchutagem de apenas 40%, constituindo o resto matéria inservível, ou seja, lixo ambiental –, considerou demonstrado o risco da segurança interna, compreendida não somente nas agressões ao meio ambiente que podem ocorrer, mas também à saúde pública, e inviável, por conseguinte, a importação de pneus usados.[33]
Percebe-se com essa decisão um claro diálogo entre as decisões das cortes locais, regional e internacional, em mais um caso que exemplifica o transconstitucionalismo. Ressaltamos que o Supremo Tribunal Federal, embora tenha argumentado com base na lógica da soberania interna, reconheceu a necessidade de se adequar à decisão da OMC. Neste sentido, outro trecho do voto da Ministra Cármen Lúcia, que bem explicita o problema de consistência jurídica gerado pela profusão de decisões liminares concedidas pela justiça brasileira:
Essa a razão fundamental de cá estarmos reunidos hoje, a resolver definitivamente sobre uma pendência que, conforme o resultado a que chegarmos, no plano internacional, justificaria a derrocada das normas proibitivas sobre a importação de pneus usados, pois, para o Órgão de Apelação da OMC, se uma parte do Poder Judiciário brasileiro libera empresas para importá-los, a despeito da vigência das normas postas, é porque os objetivos apresentados pelo Brasil, perante o órgão internacional do comércio, não teriam o fundamento constitucional que as justificariam e fundamentariam. Fosse o contrário, sendo uma única e mesma Constituição a do Brasil e tendo eficácia plena e efetividade jurídica incontestável a matéria, não haveria as frestas judiciais permissivas do que nelas se veda.
Percebe-se, portanto, o entrelaçamento entre as diversas ordens normativas para solução de problemas constitucionais comuns. No caso brasileiro, diferente do que ocorreu com o caso Lautsi na Itália, a ordem interna reconheceu como válidas as considerações do Organismo Internacional, no que diz respeito ao tratamento isonômico nas relações de comercio internacional, conformando-se, em partes, ao que lhe foi recomendado.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, nossa proposta foi a de apresentar um panorama do Constitucionalismo Contemporâneo, demonstrando de maneira crítica a ineficiência dos modelos constitucionais clássicos, fundados na ideia tradicional de soberania, para solucionar os conflitos entre ordens constitucionais transnacionais, quando estas proferem decisões divergentes sobre um mesmo caso concreto.
Entendemos que tais problemas não podem ser solucionados por uma tradição jurídica formalista, pautada na busca de certeza e de verdades universais, mas sim através do reconhecimento de que todo ato de fala deve ser proferido apenas com pretensão de validade, que pode ser revista a partir do reconhecimento recíproco entre alter e ego. Dito de outra forma, a solução para os conflitos entre ordens jurídicas transnacionais seria possível através de um agir comunicativo dos países e organismos internacionais envolvidos, produzindo um verdadeiro acoplamento estrutural para uma atuação coordenada entre diversos sistemas jurídicos para solução de problemas constitucionais comuns.
Neste contexto, reconhecendo a inexistência de hierarquia formal entre as diversas ordens transnacionais, a solução que nos parece mais adequada é a de reconhecer a necessidade de diálogo transversal entre elas, propondo o transconstitucionalismo como modelo teórico adequado para analisar os fenômenos transconstitucionais que crescem tanto quantitativa quanto qualitativamente, no contexto das sociedades regionais.
O que pretendemos, contudo, não foi apresentar uma solução teórica com pretensões de verdade absoluta. Ou seja, não atuamos aqui como o personagem de Bosh, lembrado por Maturana e Varela, que tenta aprisionar o Cristo na obra “Cristo coroado de espinhos”, fixando sua perspectiva, com a tentação da certeza. Tal compromisso, sabemos, não representa tarefa das mais fáceis, vez que tendemos a viver num mundo de certezas e de solidez, “em que nossas convicções provam que as coisas são somente como as vemos e não existe alternativa para aquilo que nos parece certo. Essa é nossa situação cotidiana, nossa condição cultural, nosso modo habitual de ser humanos”. [34]
Com se observa destes escritos, procurou-se mais fomentar a discussão e gerar questionamentos, que se chegar a respostas absolutas, numa catalogação ingênua de “certos” e “errados”. Pretendeu-se demonstrar a necessidade de se repensar o modelo de ciência jurídica atual e sua capacidade de lidar com os problemas hipercomplexos da pós-modernidade. E assim concluímos, parafraseando Luciano Oliveira, um tanto inclusamente.[35]
REFERÊNCIAS
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[1] Sobre o constitucionalismo e sua evolução histórica: BARROSO. Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraíva, 2009. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 2 ed. São Paulo: Saraíva, 1998. FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: de la antigüedad a nuestros días. Madrid: Trotta, 2001. LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constituición. Barcelona: Ariel, 1986. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, e SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Forum, 2013.
[2] Sobre o Neoconstitucionalismo: CARBONELL, Miguel. El neoconstitucionalismo en su labirinto. In: Teoria del neoconstitucionalismo. Madrid: Trotta, 2007. pp. 9 a 12; SANCHÍS PRIETO, Luis. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2000. p. 132; FERRJOLI, Luigi, in: Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003. p. 15 e ss; ÁVILA, HUMBERTO. Neoconstitucionalismo: entre a ciência do direito e o direito da ciência. In: Revista Eletrônica de Direito do Estado, nº 17, 19pp. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-17-JANEIRO-2009-HUMBERTO%20AVILA.pdf. Acesso em: 08/09/2013. MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Neoconstitucionalismo: a invasão da Constituição. São Paulo: Método, 2008. SARMENTO, Daniel. SOUZA NETO, Cláudio Pereira (orgs.). A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007. Nesse livro, conferir sobre o neoconstitucionalismo: BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional do Brasil, p. 203-249; SCHIER, Paulo Ricardo. Novos desafios da filtragem constitucional no momento do neoconstitucionalismo. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em: 08/09/2013.
[3] BARROSO, p. 5-6.
[4] Fazemos uso do conceito amplo de Estado, entendido como sociedade política organizada, e não o conceito moderno, que o reduz ao que seriam seus elementos essenciais: povo, território, governo (soberania interna) e finalidade.
[5] Expressão no sentido utilizado por DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 2 ed. São Paulo: Saraíva, 1998, p. 72.
[6] Importante ressaltar que alguns autores defendem a existência de constitucionalismo durante o medievo. Dentre eles, destacamos FIORAVANTI, que reconhece no caráter fragmentado do poder político da Era Medieval, uma forma de limitação recíproca de poder, caracterizando uma espécie de constitucionalismo. . FIORAVANTI, Maurizio, p. 35.
[7] Sobre as fases do Monismo Jurídico: WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001.
[8] A tese fundamental dessa escola é a de que o Direito é revelado pelas leis, sendo um sistema sem lacunas reais. Assim, o verdadeiro jurista deve procurar dentro da lei positiva as respostas para solução dos conflitos sociais. Surge, nesse contexto, a ideia de uma dogmática conceitual, cabendo ao jurista fazer uso apenas das interpretações lógica, gramatical e sistemáticas. REALE, Miguel. Filosofia do direto. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 415-416.
[9] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 215.
[10] Idem.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem, p. 217.
[13] Ibidem, p. 220.
[14] Ibidem, p. 221.
[15] NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 190-191.
[16] Para o desenvolvimento desse tópico, utilizamo-nos das anotações pessoais, bem como das transcrições de aula da colega Aline Weber, que foram fundamentais para esse trabalho.
[17] NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. 1a. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
[18] Idem, pp. 297-298.
[19] LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Universidad Iberoamericana. MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar, 2007, p. 96-97.
[20] NEVES, 2009, p. XXV
[21] HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p.9.
[22] HABERMAS, Jürgen. Individuación por via de socialización., em In: Pensamiento postmetafísico. Madrid: Taurus, 1990, pp. 188-190.
[23] HABERMAS, Jürgen. Verdade y justificación: ensayos filosóficos. Tradução de Pere Fabra e Luis Díez. Trottaa., 2001, p. 90.
[24]ARAGÃO, Lucia Maria de Carvalho. Razão comunicativa e teoria social crítica em Jürgen Habermas. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 28.
[25] HABERMAS, Jürgen. Racionalidade e comunicação. São Paulo: Edições 70, 1988, p. 96.
[26] Acórdão disponível em: <http://www.echr.coe.int>. Acesso em 01/08/2913.
[27] Artigo 9°- Liberdade de pensamento, de consciência e de religião
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou coletivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.
2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou coletivamente, não pode ser objeto de utras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem.
[28] Artigo 2° (do Protocolo nº 1) Direito à instrução
A ninguém pode ser negado o direito à instrução. O Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas.
[29] PUPPINCK, Grégor. Il caso Lautsi contro l’Italia. Rivista telemática. 13/02/2012. Disponível em: www.statoechiese.it. Acesso em: 01/09/2013.
[30] Idem.
[31]SAVIO, Adriana Macena S. O caso dos pneus perante a OMC e o Mercosul. Univ. Rel. Int., Brasília, v. 9, n. 1, p. 349-370, jan./jun. 2011, 351.
[32] MOROSINI, Fábio. A disputa dos pneus no MERCOSUL e na OMC: Reabilitando a Competição Regulatória na Regulamentação do Comércio Internacional e Meio Ambiente. Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Disponível em: http://www.cebri.org. Acesso em: 09/08/2013.
[33] ADPF 101, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 11-3-2009, Plenário, Infor- mativo 538. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/ artigobd. asp?item=%201814>
[34] MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco J.. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athenas, 2001, p. 22.
[35] OLIVEIRA, Luciano. Sua excelência o comissário e outros ensaios de sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004, p. 69.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Chiara Michelle Ramos Moura da. Transconstitucionalismo na União Européia e no Mercosul: sobre a solução de problemas constitucionais que perpassam o âmbito da soberania da ordem jurídica interna Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jun 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39634/transconstitucionalismo-na-uniao-europeia-e-no-mercosul-sobre-a-solucao-de-problemas-constitucionais-que-perpassam-o-ambito-da-soberania-da-ordem-juridica-interna. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Guilherme Waltrin Milani
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Por: MARA LAISA DE BRITO CARDOSO
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