RESUMO: Aderindo à tendência mais recente de processualização da atividade administrativa do Estado, a CF/88 abriga diversos dispositivos sobre processo administrativo. Ao prever a exigência de contraditório em determinadas situações no âmbito da Administração Pública, a Constituição termina por impor que a edição de um ato ou de uma decisão administrativa, sempre que possível, emane de uma relação processual instituída para tal desiderato, mediante a configuração de posições jurídicas compatíveis com os direitos e os ônus de cada uma das partes interessadas, vale dizer, tanto a própria Administração, quanto os administrados. A processualização da função administrativa, destarte, passou a ser encarada como um dos reflexos do princípio democrático, ao submeter o exercício do poder da Administração Pública ao discurso dialético.
PALAVRAS-CHAVE: Processo administrativo. Princípio democrático.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. CONCEITO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO; 3. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO; 4. O PROCESSO ADMINISTRATIVO E SUA RELAÇÃO COM O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO; 5. CONCLUSÃO; 6. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
Seguindo a tendência de constitucionalização da função administrativa do Estado, a CF/88, de forma inédita, previu, no título consagrado aos direitos e garantias fundamentais, inúmeros preceitos relacionados direta e indiretamente ao processo administrativo. O art. 5º, inc. LV, por exemplo, assegura, aos litigantes em processo judicial ou administrativo, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Ao impor a observância da estrutura processual em diversas situações inseridas no âmbito administrativo, a CF/88 promoveu uma verdadeira revolução na função administrativa do Estado, passando a exigir estrita observância ao princípio democrático, como forma de controle e legitimação de suas decisões.
Com efeito, diante do enfoque dado pelo legislador constituinte, que inseriu o processo administrativo no rol dos direitos e garantias fundamentais, veremos, neste artigo, que o processo administrativo deve ser compreendido como um verdadeiro fórum de discussão e participação democrática, constituindo-se como um dos principais instrumentos de participação popular na Administração Pública.
2. CONCEITO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO
A ideia de processo esteve sempre associada ao exercício da jurisdição. Contudo, a partir de meados do século XIX, foi ganhando força a noção de processualidade ampla, ligada não apenas à função jurisdicional, mas também relacionada às funções legislativa e administrativa do Estado[1].
Com isso, passou-se a admitir a processualidade como imanente ao exercício do poder estatal, reconhecendo-se, destarte, a existência do processo no âmbito administrativo, vale dizer, a processualização da atividade administrativa do Estado[2].
Com efeito, nem todos os atos administrativos são editados de maneira isolada pelos agentes administrativos. Muitas vezes, o ordenamento jurídico impõe que a elaboração de um ato administrativo decorra como resultado de um processo administrativo, assim entendido como uma sucessão encadeada de atos, cujo desfecho consiste na edição de uma decisão administrativa[3].
Dentre as diversas tentativas de definir o real significado da expressão, importa destacar os quatro principais conceitos de “processo administrativo” que foram esboçados pela doutrina.
O primeiro deles é o conceito formal de processo administrativo, cuja caracterização, pelos prosélitos dessa corrente, dá-se pela série de documentos que formam a peça administrativa (identifica o conceito de processo administrativo com sua existência física)[4].
A segunda corrente delimita o conceito de processo administrativo como o conjunto de atos ordenados para a solução de uma controvérsia no âmbito administrativo, decorrente da relação travada entre a Administração Pública e o administrado. É a ideia de processo administrativo em sentido amplo[5].
O terceiro conceito esboçado pela doutrina é considerado ainda mais amplo, pois define processo administrativo como o conjunto de medidas preparatórias visando à edição de uma decisão administrativa[6].
Há, por fim, alguns autores que utilizam a expressão como sinônimo de processo disciplinar.
Como se pode perceber, nenhum dos sentidos acima expostos serve para emprestar à expressão o seu real alcance.
Bastante elucidativa é a definição trazida por Nelson Nery, segundo o qual processo administrativo seria o “[...] conjunto sistemático de atos dos órgãos públicos que regulam as relações jurídicas da Administração consigo mesma, com outras entidades estatais e com os administrados, pessoas naturais e jurídicas”[7].
Mais simples e preciso é o conceito trazido por José dos Santos Carvalho Filho, para quem processo administrativo é “[...] o instrumento que formaliza a sequência ordenada de atos e de atividades do Estado e dos particulares a fim de ser produzida uma vontade final da Administração”[8].
Sem pretender encerrar a discussão sobre o tema, arrisco-me a caracterizar o processo administrativo como uma série de atos sucessivos e coordenados, destinados à elaboração de um ato administrativo, com o escopo de solucionar uma controvérsia entre a Administração Pública e os administrados, seus próprios órgãos entre si ou entre ela e os seus agentes, assim como visando à realização dos fins intrínsecos à função administrativa do Estado, sem necessariamente pressupor a existência de interesses contrapostos.
Por óbvio, o processo administrativo se forma não apenas mediante provocação do particular, como também pode ser instaurado por iniciativa da própria Administração Pública, por constituir instrumento destinado à realização dos fins estatais, como se pôde depreender do conceito acima delineado.
Dessa concepção decorre a noção de que a Administração Pública atua no processo administrativo como parte interessada, razão pela qual as decisões proferidas em sede administrativa não possuem aptidão para formar coisa julgada, sendo este um dos principais traços que as distinguem das decisões judiciais, pois, nestas, o Estado atua no processo como um terceiro estranho à lide[9].
A respeito dos principais traços distintivos entre o processo administrativo e o processo judicial, convém transcrever a lição de José dos Santos Carvalho Filho:
“No processo judicial, a relação é trilateral, porque além do Estado-Juiz, a quem as partes solicitam a tutela jurisdicional, nela figuram também a parte autora e a parte ré. No processo administrativo, a relação é bilateral, porque, quando há conflito, de um lado está o particular e de outro o Estado, a este incumbindo decidir a questão; o Estado é parte e juiz. Por fim, o processo judicial vai culminar numa decisão que pode tornar-se imodificável e definitiva, ao passo que no processo administrativo as decisões ainda poderão ser hostilizadas no Poder Judiciário[10].”
Ainda no que concerne ao sentido mais preciso que se pode dar à expressão “processo administrativo”, a doutrina não é unânime em reconhecer a existência de litigiosidade como elemento essencial para a sua caracterização.
Alguns autores concebem que o processo administrativo pressupõe o contraditório, a permitir o confronto de direitos do interessado ante a Administração. Contudo, essa não é a posição que se revela mais acertada. Deve-se admitir, portanto, a existência de processos administrativos litigiosos e não litigiosos, como reconhece José dos Santos Carvalho Filho em sua obra[11].
O certo é que, embora nem sempre a parte interessada integre uma relação processual administrativa com interesses contrários aos da Administração Pública (o que retiraria a noção de lide, ou conflito de interesses, como elemento integrante do conceito de processo administrativo), deve-se reconhecer, de fato, que o processo administrativo, além do vínculo entre os atos que se sucedem, também pressupõe um vínculo jurídico entre os sujeitos participantes do processo, devendo o interessado atuar sob o prisma do contraditório[12], com vistas a garantir que a decisão proferida pela autoridade administrativa lhe seja favorável, na medida em que não atinja os direitos por ele tutelados no curso do processo, de maneira legítima.
3. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO
A partir do Século XX, com a crise do Estado Liberal e o advento do Welfare State (Estado do Bem Estar Social), houve uma mudança de paradigma jurídico, pois o Estado, antes ausente nas relações econômicas e privadas, passou a intervir com maior frequência nesta seara. E tal interferência do Estado nas relações privadas era propiciada sobretudo pela edição de leis, que se tornaram cada vez mais abundantes, acarretando uma verdadeira inflação legislativa, que teve, como principais consequências, a desvalorização da lei e o fortalecimento da Constituição, que passou a ocupar o centro do ordenamento jurídico[13].
Nesse contexto, as constituições, antes limitadas a definir a estrutura básica do Estado e a estabelecer alguns direitos individuais e políticos dos cidadãos, passaram, com a mudança para o Estado Social, a instituir normas programáticas, que reclamam uma atuação do Poder Público, e não sua mera abstenção, bem como passaram a imiscuir-se em novas áreas, como a ordem econômica, as relações familiares, etc.
Com isso, as constituições promoveram a incorporação à ordem jurídica de valores como a dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, segurança jurídica, dentre outros, estabelecendo princípios constitucionais autoaplicáveis e com força vinculante, implicando a submissão de todos os outros instrumentos normativos (e delas próprias) aos preceitos e valores contemplados nas normas constitucionais.
Em poucas palavras, é nisso que constitui o processo de constitucionalização do Direito, que, no Brasil, somente ocorreu com maior intensidade a partir da Constituição Federal de 1988, que inaugurou uma nova fase do constitucionalismo brasileiro, marcada não apenas pela constitucionalização de uma série de direitos e garantias alçados ao nível de direitos fundamentais, como também pela preocupação com a efetividade de suas normas[14].
Como não poderia ser diferente, o fortalecimento da jurisdição constitucional operou-se também no Direito Administrativo, delineando novos marcos a essa disciplina, ocasionando o fenômeno que pode ser chamado de “constitucionalização do Direito Administrativo”.
A supremacia da Constituição representou uma mudança de paradigma do Direito Administrativo, propiciando uma redefinição dos institutos que estruturam a matéria[15].
Diante desse novo quadro, o ordenamento jurídico deixou de servir apenas como limite negativo de atuação do Estado. Ao instituir direitos de caráter prestacional e estabelecer normas programáticas, a Constituição passou a servir como parâmetro de atuação para a Administração Pública, que deve agir em conformidade à lei, tornando ultrapassada a visão liberal (ou garantista) do Direito Administrativo.
Assim, o sistema jurídico deixou de cumprir apenas a função de impor limites ao exercício do poder estatal e de outorgar garantias aos cidadãos para a sua proteção contra os abusos cometidos pelas autoridades públicas. A Constituição assumiu papel de articulador da função administrativa do Estado, traçando diretrizes e impondo determinadas prestações ao Estado, comprometendo-se não somente com a efetividade dos direitos fundamentais assegurados pelo texto constitucional, como também com a eficiência dos serviços públicos.
Nesse contexto, o agir administrativo ganhou novos contornos, encontrando na própria Carta Magna as regras e os princípios que devem ser observados pelo administrador ao comandar da máquina pública.
Seguindo a tendência de constitucionalização da função administrativa do Estado, a CF/88 trouxe, já em seu texto original, diversos dispositivos relacionados à Administração Pública, traçando os principais parâmetros de sua atuação.
Além de dedicar seção específica à Administração Pública e aos servidores públicos em geral, a Carta de 1988 consignou, no título consagrado aos direitos e garantias fundamentais, inúmeros preceitos relacionados direta e explicitamente ao processo administrativo.
Diferentemente do que ocorreu nas Constituições anteriores, que, ao tratarem a matéria, limitaram-se a dispor apenas sobre o processo administrativo disciplinar, a CF/88 passou a abordar o tema de maneira mais ampla, trazendo dispositivos sobre o processo administrativo em geral[16].
O art. 5º, inc. LV, por exemplo, assegura, aos litigantes em processo judicial ou administrativo, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Ainda no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º da CF/88), há outros dispositivos que se relacionam ao processo administrativo, como a exigência do devido processo legal para que alguém seja privado da liberdade ou de seus bens (inc. LIV), a proibição, no processo, de provas obtidas por meios ilícitos (inc. LVI), dentre outros.
Mais recentemente, a EC nº 45/04 introduziu o inc. LXXVIII no art. 5º da CF/88, assegurando a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Ademais, o § 3º do art. 37 da CF/88, cuja redação foi alterada pela EC nº 19/98, prevê que a lei deverá disciplinar as formas de participação do usuário na Administração Publica direta e indireta, regulando especialmente as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo e a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função pública.
Assim, conformando-se às atuais preocupações do Direito Administrativo, a CF/88 não apenas prevê, como impõe a observância da estrutura processual em diversas situações inseridas no âmbito administrativo, emoldurando o poder discricionário do Estado e trazendo nova ordem de certezas e de garantias entre a Administração e os administrados[17].
De acordo com Gustavo Binenbojm, essa nova principiologia constitucional provocou uma reformulação da noção de discricionariedade administrativa, “[...] que deixa de ser um espaço de liberdade decisória para ser entendida como um campo de ponderações proporcionais e razoáveis entre os diferentes bens e interesses jurídicos contemplados na Constituição”[18].
Por outro espeque, a função administrativa do Estado ganhou novos parâmetros com a redefinição do princípio democrático, que exerceu significativas mudanças sobre os institutos do Direito Público, como será melhor abordado a seguir.
4. O PROCESSO ADMINISTRATIVO E SUA RELAÇÃO COM O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO
A partir da década de 1950 e com maior vigor a partir dos anos 70, surge entre os publicistas uma maior preocupação com o princípio democrático, estendendo o âmbito de sua abrangência, antes limitada à forma de eleição dos representantes políticos, para também alcançar o modo de exercício do poder e de tomada de decisões[19].
De fato, o componente democrático traz a ideia de que as estruturas do Estado e os objetivos de sua atuação devem corresponder à vontade geral do povo, deduzida não apenas da lei ou da Constituição, de maneira automática, mas sim extraída da conjugação de interesses legitimados pelo ordenamento e tutelados pelos diversos atores sociais no curso do procedimento.
Com a redefinição do princípio democrático, a atividade administrativa ganhou novos arredores e incorporou à sua estrutura a própria noção de processualidade.
A processualização da função administrativa, destarte, passou a ser encarada como um dos reflexos do princípio democrático, ao submeter o exercício do poder da Administração Pública ao discurso dialético, substituindo a ideia de atos administrativos unilaterais e imperativos pela noção de decisões formadas mediante o consenso democrático.
Deve-se acrescentar que essa nova concepção de democracia é marcada não só pela abertura, como também pelo estímulo à participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisão.
Com efeito, um dos maiores avanços do Direito Administrativo contemporâneo consiste na previsão de participação dos titulares dos direitos individuais, difusos e coletivos, assim como das entidades destinadas à defesa de tais interesses, no processo de tomada das decisões que possam lhes afetar, como forma de conferir maior legitimidade aos atos e decisões administrativas.
De fato, sempre que o exercício do poder discricionário de que dispõe a autoridade administrativa puder ocasionar lesão a direitos individuais ou coletivos dos administrados, nada mais justo que os titulares e defensores desses interesses possam atuar no processo administrativo, apresentando seus argumentos e perspectivas acerca da matéria e, destarte, contribuindo não só para a formação do ato administrativo, como também para o controle da legalidade e da própria efetividade das decisões.
A processualização da atividade administrativa do Estado acarretou uma importante consequência: o resgate da noção de parte no processo administrativo[20]. Ao introduzir a processualidade no exercício de suas funções, a Administração Pública deixa de ser vista como único sujeito parcial nos procedimentos administrativos por ela instaurados para a consecução de seus fins, incorporando a outra parte (no caso, os administrativos, considerados individualmente ou apreciados sob o seu aspecto coletivo) à lógica processual.
Sucede que a acolhida da processualidade na função administrativa do Estado nem sempre se fez acompanhada do uso do nome “parte”. Em verdade, é possível perceber que a legislação de diversos países veio adotar o termo “interessados” ao se referir àqueles que possuam direitos ou interesses legítimos, individuais ou coletivos, que possam ser afetados pela decisão administrativa, como é o caso da lei espanhola de procedimento administrativo (Lei 30/1992) e da lei brasileira que trata do processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal (Lei nº 9.784/99).
Em outros países, no entanto, foi adotado o termo “parte” (ou de sujeito parcial), o qual se mostra mais compatível com a noção de processualidade que se quer imprimir aos procedimentos administrativos, por expressar, com maior clareza, a condição de sujeitos detentores de direitos, garantias e ônus na relação processual administrativa, tal qual ocorre no processo judicial. É o caso da lei alemã de processo administrativo, editada em 1976, da lei federal norte-americana de processo administrativo, hoje integrada no Código Administrativo (USCA), e da lei italiana de processo administrativo, de 1990[21].
Na Itália, de acordo com o art. 9º da lei de processo administrativo, qualquer sujeito, titular de interesses públicos ou privados e também os detentores de interesses difusos, que possam sofrer prejuízos decorrentes do ato, têm a faculdade de intervir no processo. Observa-se, a exemplo do que ocorreu no processo jurisdicional, a tendência de se admitir, como sujeito ou parte no processo administrativo, os defensores de direitos coletivos ou difusos.
Embora no Brasil, conforme dito acima, a lei que cuida do processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal (Lei nº 9.784/99) tenha se valido do termo “interessados”, ao se referir às pessoas titulares de direitos ou interesses individuais que iniciem o processo no exercício do direito de representação ou, embora não tenham iniciado, possam ser afetadas pela decisão a ser adotada, e às entidades destinadas à tutela dos interesses difusos e coletivos, pode-se afirmar que o tratamento que o referido diploma legal confere a tais sujeitos legitimados a atuarem no processo é de “parte”, assegurando-lhes inúmeras garantias processuais.
Note-se, a propósito, que, além da prerrogativa de atuar no processo administrativo como parte (ou interessado, valendo-se do termo utilizado pela lei), existem outros mecanismos de participação popular nos processos de tomada de decisão, como a consulta pública e a audiência pública. Contudo, o simples comparecimento a tais modalidades de participação dos administrados no processo administrativo, por si só, não confere o status de parte interessada a quem tenha participado da consulta pública aberta para a manifestação de terceiros, por expressa ressalva legal (nos termos do parágrafo 2º do artigo 31 da Lei Federal nº 9.784/99).
Com isso, torna-se evidente a distinção que a lei imprimiu aos sujeitos parciais do processo (ou interessados) e os demais cidadãos que tenham atuado no processo mediante o comparecimento a consulta pública ou audiência pública, sendo estas modalidades de participação democrática no processo administrativo destinadas a conferir maior legitimidade às decisões, tendo lugar apenas quando não houver prejuízo à parte interessada.
A propósito, convém, neste ponto, diferenciar esses dois mecanismos de participação popular previstos em lei. Conforme nos ensina José dos Santos Carvalho Filho, na consulta, a Administração visa compulsar a opinião pública por meio de manifestações firmadas em peças formais, escritas, a serem juntadas no processo administrativo, enquanto que a audiência pública consiste em “[...] modalidade de consulta, só que com o especial aspecto de ser consubstanciada fundamentalmente através de debates orais em sessão previamente designada para tal fim.”[22]
O certo é que, independente da posição que os indivíduos possam ocupar no processo, seja como parte interessada, seja como terceiro que comparece às consultas ou audiências públicas, a prerrogativa de participação nas decisões administrativas tem a natureza de direito fundamental, sobretudo após o advento promovido pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998, que modificou a redação do parágrafo 3º do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, para consignar que a lei disciplinará as formas de participação do usuário na Administração Publica direta e indireta.
5. CONCLUSÃO
É inegável a atual tendência do Direito Administrativo contemporâneo, que prestigia cada vez mais a processualização da função administrativa do Estado para conferir às decisões administrativas maior legitimidade, pressupondo que sejam emanadas de um procedimento que tenha oportunizado a atuação das partes interessadas e a busca pela consensualidade, propiciando, destarte, a submissão do exercício do poder ao ordenamento jurídico.
Com a redefinição do princípio democrático, a atividade administrativa ganhou novos arredores e incorporou à sua estrutura a própria noção de processualidade. Estabeleceu-se, destarte, uma estreita relação entre o processo administrativo e a legitimação do poder estatal.
Com isso, os atos administrativos deixam de ser editados de forma isolada e passam a ser o resultado de um processo dialético, assegurando-se uma efetiva participação de todos os sujeitos interessados.
Contudo, em que pese a existência de suporte constitucional e infraconstitucional, o estágio de processualização da atividade administrativa do Estado brasileiro revela-se incipiente, posto que ainda não atingiu, na prática, níveis compatíveis com os ditames constitucionais.
Assim, impõe-se aos órgãos da Administração, direta e indireta, uma cultura de maior zelo aos processos administrativos por eles instaurados, aperfeiçoando as estruturas processuais e a própria celeridade de sua tramitação, para adequá-las às exigências legais e constitucionais e compatibilizar o exercício da função administrativa que exercem com a plena efetivação do princípio democrático.
6. REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24 ed. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2011
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001
COSTA, Nelson Nery. Processo administrativo e suas espécies. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999
MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008a
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008b
[1] Cf. MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008a, p. 18-20.
[2] Cf. MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008b, p. 160.
[3] Cf. Ibid., p. 160.
[4] Cf. MEDAUAR, 2008a, loc. cit.
[5] Cf. Ibid., p. 6-7.
[6] Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 483.
[7] Cf. COSTA, Nelson Nery. Processo administrativo e suas espécies. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, op. cit., p. 6.
[8] Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24 ed. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 893.
[9] Cf. DI PIETRO, 1999, p. 482.
[10] Cf. CARVALHO FILHO, 2011, p. 891-892.
[11] Ibid., p. 893-894.
[12] “Assim, o processo administrativo caracteriza-se pela atuação dos interessados, em contraditório, seja ante a própria Administração, seja ante outro sujeito (administrado em geral, licitante, contribuinte, por exemplo), todos, neste caso, confrontando seus direitos ante a Administração”. MEDAUAR, 2008b, p. 162.
[13] Cf. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 62.
[14] Cf. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, passim.
[15] Cf. BINENBOJM, 2006, p. 69-70.
[16] Cf. MEDAUAR, 2008a, p. 77.
[17] Cf. Ibid., p. 77.
[18] Cf. BINENBOJM, 2006, p. 71.
[19] Cf. MEDAUAR, 2008a, p. 87-88.
[20] Cf. Ibid., p. 105-106.
[21] Cf. MEDAUAR, 2008a, p. 106-107.
[22] Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 186.
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia; Pós-graduado em Direito do Estado pelo JusPodivm; Servidor do Ministério Público do Estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Augusto César Borges. Processualização da função administrativa do Estado e participação democrática Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39658/processualizacao-da-funcao-administrativa-do-estado-e-participacao-democratica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
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