Resumo: O presente artigo tem por escopo assentar a viabilidade jurídica de uma efetiva responsabilização internacional do Estado, no âmbito civil, em função da imputação de ilícito internacional a órgão ou agente estatal. Afirma-se, para tanto, que a violação de uma norma ou obrigação internacional pelos Estados, na atual conjuntura jusinternacionalista, tem o condão de gerar a responsabilidade do sujeito de DIP, se configurados os elementos da atribuição e do fato ilícito. Reconhece-se como principais características da responsabilização internacional o seu caráter interestatal, sua finalidade reparatória de natureza civil, sua orientação de instituto consuetudinário, o aspecto político inerente ao ilícito praticado e a possibilidade, diante da gravidade do fato, do interesse de reparação não ficar limitado ao Estado vitimado.
Palavras-chaves: Estado. Responsabilidade. Direito Internacional.
Sumário: 1 Introdução; 2 A Teoria da Responsabilidade Internacional do Estado; 2.1 Desenvolvimento Histórico; 2.2 Definição e Características da Responsabilidade Internacional; 2.3 Elementos Constitutivos da Responsabilidade Internacional; 2.3.1 Elemento Objetivo: Fato Ilícito; 2.3.2 Elemento Subjetivo: Atribuição; 3 Conclusão.
1 INTRODUÇÃO
Nos moldes de um artigo científico e com adequação ao método dedutivo-dialético, o presente estudo busca efetuar uma análise bibliográfica-documental acerca da viabilidade da responsabilização internacional do Estado em razão de atos praticados por seus órgãos e nacionais. Nessa consecução, o estudo em aponte visa abordar o tema da responsabilidade estatal num olhar estritamente voltado à teoria jusinternacionalista, tendo por base a doutrina e as normas de Direito Internacional (positivadas e consuetudinárias).
Com base nesse problema de pesquisa, busca-se investigar um fenômeno relativamente novo na sociedade das nações: a capacidade do Estado ser responsabilizado perante a ordem internacional em razão do exercício irregular de suas funções internas. Situação essa que, respaldada nos avanços dos últimos séculos em prol de uma maior integração global, guarda estreita afinidade temática com a atual discussão internacionalista a respeito da possibilidade de incorporação das tradicionais práticas geradoras de responsabilidade ao Direito Internacional e sobre a adoção de procedimentos internacionais mais eficazes para a atribuição de responsabilidade a entes soberanos.
2 A TEORIA DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO
O tema da responsabilidade internacional do Estado tem sido apontado pela doutrina especializada[1], notadamente a partir do século XX, “como uma das mais importantes [questões] do direito internacional e centro das instituições de qualquer sistema jurídico” (Accioly; Silva; Casella, 2008, p 343), de maneira que não há se olvidar que a possibilidade de uma efetiva responsabilização do Estado na esfera internacional, por ato ou omissão que lhe seja imputável e do qual resulte a violação de norma ou obrigação internacional, é questão recorrente no debate jusinternacionalista.
Há de se observar, todavia, que a teoria da responsabilidade internacional do Estado tem recebido tratamento diverso na história, em razão do maior ou menor grau de aglutinação global em torno da efetivação de uma sociedade internacional rija, fundada na possibilidade de responsabilização de seus membros. As teorias elaboradas no decorrer do tempo demonstraram a inexistência de um regime jurídico que abranja de modo uniforme a questão.
2.1 Desenvolvimento Histórico
No período compreendido entre a Antiguidade e a Idade Moderna, vigeu, como regra, a teoria da irresponsabilidade internacional do Estado. Nesse momento histórico, preponderou o ideal de soberania irrestrita, fincando-se, na era dos Estados Absolutistas, premissas como the king can do no wrong e le roi ne peut mal faire, a ponto de Luis César Ramos Pereira (2000, p 33) elucidar que, até a consolidação do pensamento internacionalista do século XIX, “a noção de soberania absoluta do Estado não deixava campo para concebê-lo responsável ante outro Estado”.
Na Idade Média, o conceito de responsabilidade apresentou, no entanto, características singulares. Pautou-se na idéia de “justiça pelas próprias mãos”, com a atuação dos senhores feudais nas hipóteses em que detivessem pretensos direitos violados em seus domínios ou quando seus súditos alegassem o ter. Tratava-se do denominado direito de represália, através do qual, sem a declaração necessariamente de uma guerra, era exercida uma forma de ressarcimento por suposto evento danoso praticado pelo estrangeiro[2].
Somente no século XVIII, com o advento da Revolução Francesa, a teoria da irresponsabilidade e o conceito de represália começaram a ser combatidos. O marco de ruptura inicial deu-se quando o erário francês, visando proteger-se de diversas ações em trâmite na Justiça, instituiu, no plano interno, a distinção entre ato de império[3] e ato de gestão[4], atribuindo a este último, com exclusividade, o condão de viabilizar o ressarcimento pelo Estado dos danos causados a particulares.
Houve também avanços com a Constituição Francesa de 1789 que, não obstante tenha encampado o princípio da irresponsabilidade do Estado, acolheu norma de responsabilidade de seus funcionários em decorrência de atos danosos que por culpa grave ou dolo praticassem em propriedades particulares. Começava-se a aplicar, desde então, as teorias da responsabilidade calcadas na idéia de culpa, em que pese somente nas últimas décadas do século XIX tais princípios fossem incorporados ao Direito Internacional por meio da doutrina de Triepel, presente na obra Völkerrecht und Landesrecht.
Dentro desse contexto histórico, a responsabilidade do Estado passou a constituir praticamente uma novidade do século XX, na medida em que, ainda no primeiro terço do século XIX, era rotina invocar-se o direito de intervenção na seara internacional. Mesmo porque, somente com as Convenções Interamericanas de 1902[5], pode-se dizer que foram firmados documentos na ordem internacional com a finalidade de introduzir temas relativos à responsabilização extraterritorial do Estado, embora não tenha sido implementada uma solução verdadeiramente duradoura ao problema.
Apenas após a Segunda Grande Guerra, alicerçando-se na idéia de que o Estado – enquanto pessoa jurídica – teria a titularidade de direitos e obrigações, foi que os Estados Unidos, através do Federal Tort Claim Act (1946), e o Reino Unido, através do Crown Procedding Act (1947), abandonaram, em definitivo, a teoria da irresponsabilidade, substituindo-a por teorias civilistas de responsabilização estatal apoiadas na idéia de culpa.
Iniciou-se, a partir daí, a tentativa de codificação dos costumes internacionais correlatos à responsabilidade dos Estados, através de atos da Liga ou Sociedade das Nações e da Organização das Nações Unidas[6]. Contudo, essas tentativas não foram plenamente consolidadas.
Importante avanço houve, entretanto, em 2001, com o Projeto da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas sobre Responsabilidade Internacional dos Estados. Texto que não se limitou a codificar os usos e costumes globais sobre responsabilidade estatal, mas, além de adaptar ao texto legal normas tidas e aceitas comumente como de Direito Internacional, tratou de propiciar certa evolução às reputadas normas:
[...] o trabalho desenvolvido pela CDI, no aspecto ora tratado, codifica norma primária e secundária, ou seja a primeira (primária) impõe obrigações aos Estados, cujo ato ou fato praticado por ele causa um evento danoso, dando origem à responsabilidade internacional; já a segunda (secundária), tem por objeto estabelecer as conseqüências jurídicas de um incumprimento da obrigação assinalada (PEREIRA, 2000, p 36).
Tal codificação, mesmo que pendente de aprovação pelos países, tem importância singular no estudo e na aplicação da atual dogmática da responsabilidade internacional do Estado, podendo e devendo, conforme se defende neste trabalho, servir, já hodiernamente, como fonte às decisões arbitrais e judiciais das Cortes Internacionais, tal qual a doutrina e a jurisprudência internacionalista.
2.2 Definição e Características da Responsabilidade Internacional
O primeiro ponto a ser desenvolvido na busca pela definição e caracterização da moderna teoria da responsabilidade internacional do Estado consiste em estabelecer um conceito inicial para responsabilidade jurídica lato sensu. Nesse sentido, toma-se como válido o conceito elaborado por Florisbal de Souza Del’Olmo (2006, p 129), para quem a responsabilidade consiste no “compromisso decorrente de atos ou omissões, culposos ou dolosos, que tenham como resultado danos materiais ou morais a terceiros entes”.
Partindo desse pressuposto, percebe-se que é intrínseco a qualquer teoria da responsabilidade o fato de a pessoa a quem é imputado um ilícito auferir a obrigação de arcar com o encargo dele decorrente, em função do direito correlato do sujeito lesado de ver o seu dano ressarcido. Situação essa que também se entende à hipótese do ilícito afrontar norma de Direito Internacional, já que a ideia de responsabilidade está na base de todo sistema social:
Nas relações internacionais, como em outras relações sociais, a invasão da esfera jurídica de um sujeito de Direito por outra pessoa jurídica gera responsabilidade que reveste várias formas definidas por um sistema jurídico particular. A responsabilidade internacional é normalmente considerada a propósito dos Estados como sujeitos comuns de Direito (Brownlie, 1997, p 457).
Cabível, assim, é a aplicação da teoria da responsabilidade aos ilícitos praticados no seio da sociedade internacional, por representar uma segurança necessária às relações jurídicas extraterritoriais, conforme tem entendido majoritária doutrina internacionalista:
Deste modo, essa noção [de responsabilidade] penetrou, como não podia deixar de ser, em todos os ramos da ciência jurídica, inclusive no DI. [...] esta noção corresponde a uma “necessidade de equilíbrio social, de retribuição, de justiça, sendo esta a razão de o seu fundamento ser ético”.
Na ordem jurídica internacional ela tem a mesma razão de ser. Nenhum sistema jurídico pode existir sem atribuir aos seus sujeitos deveres ao lado de direitos. Ela surge, como já vimos, quando o Estado viola uma norma internacional, isto é, quando o Estado viola o dever que tem de respeitá-la (Mello, 2004, p 526).
Para haver essa espécie de responsabilização, deverá ocorrer a plena consonância entre a imputação da responsabilidade ao agente e o seu dever de reparar o dano proporcionado, de maneira que, por se tratar o agente em questão de um sujeito de Direito Internacional, tal responsabilização recairá, necessariamente, na pessoa de um Estado ou Organização Internacional, em razão do Direito em análise ter a peculiaridade de reconhecer tão-somente as pessoas jurídicas dantes mencionadas como capazes de responder civilmente frente à ordem internacional.
Nesse condão, a responsabilidade internacional será conferida a esse sujeito de DIP em decorrência de conduta que, de um modo geral, tenha sido praticada por órgão ou funcionário desse ente público no exercício de suas funções e seja tida como ilícita frente ao Direito Internacional, conforme nos adverte Luis Cezar Ramos Pereira (2000, p 41):
Autores clássicos [Anzilotti, Paul Fauchille e Akwyn Freeman] fundam suas Teses ou Teorias, no princípio de que se um Estado viola suas obrigações contra outro Estado ou súditos deste último o Estado infrator está obrigado a reparar o dano causado.
Será o Estado, portanto, responsável pelo ilícito internacional mesmo não sendo ele o autor imediato da antijuridicidade. Terá o dever de compensar os danos decorrentes dos atos praticados por seus órgãos internos, agentes políticos e particulares, sendo, no último caso, indispensável, além do requisito da nacionalidade vinculada, outros específicos, como a omissão ilícita do Estado[7].
É salutar enfatizar que, no atual estágio do Direito Internacional, não há se falar numa responsabilização civil do indivíduo de forma direta pelo ilícito praticado[8], ainda que, prima facie, seja o sujeito do ato antijurídico em questão. De igual modo, esse sujeito, em sendo a parte lesionada pelo ato antijurídico, também não poderá buscar, como regra[9], a reparação do dano sofrido em nome próprio. Precisará da atuação mediata do Estado através do endosso de sua reclamação:
[...] a responsabilidade internacional é o vínculo jurídico que se forma entre o Estado que transgrediu uma norma de Direito Internacional e o Estado lesado, visando ao ressarcimento desse dano (Del’Olmo, 2006, p 130).
Com essas considerações, percebe-se que a responsabilidade internacional é um dos mecanismos jurídicos basilares do Direito Internacional, que envolve tanto os entes políticos, quanto os seus representados. Trata-se de uma técnica fundamental de sanção pela não-aplicação das normas internacionais pelo Estado, que observa a lógica de que o ente público civilmente responsável pela prática de um ato ilícito segundo o Direito Internacional deve, ao Estado ao qual tenha causado o dano, uma reparação adequada.
Salvo hipótese de excludente[10], a responsabilidade internacional ocorrerá nas situações em que o sujeito de direito tiver praticado, através de seus órgãos, um ato ou fato ilícito (ou mesmo lícito, em situações excepcionais[11]) que contrarie dever estabelecido em norma de Direito Internacional, positivada ou consuetudinária, e que afete com isso um Estado alienígena, súdito deste ou organização internacional.
Daí se depreende que o Estado responde por qualquer violação de deveres internacionalmente impostos, pautadas na obrigação de respeitar os compromissos livremente assumidos (responsabilidade contratual) e de reparar todo o prejuízo injustamente causado (responsabilidade delituosa), mediante a observância de premissas jusnaturalistas de dignidade e respeito aos direitos dos demais Estados.
A responsabilidade internacional engloba, assim, a pronta responsabilização do ente agressor perante a ordem internacional, através de cortes arbitrais ou judiciais internacionais, sempre que negada uma reparação espontânea através do ordenamento interno dos países. Além disso, a responsabilidade em contexto será sempre de Estado a Estado[12] e terá como finalidade a cessação de uma prática antijurídica e a reparação do prejuízo causado, já que sua natureza decorre de preceitos civilistas.
Serão as principais características dessa responsabilização internacional o seu caráter interestatal, a sua finalidade reparatória de natureza civil, a sua orientação de instituto consuetudinário, o aspecto político do ilícito praticado e, para alguns, a possibilidade, diante da gravidade do fato, do interesse de reparação não ficar limitado ao Estado da vítima[13].
2.3 Elementos Constitutivos da Responsabilidade Internacional
Há certo consenso na doutrina internacionalista tradicional que o ato ilícito, a imputabilidade e o dano são os elementos indispensáveis à configuração da responsabilidade internacional[14]. Hildebrando Accioly (2008, p 345) aborda a questão de modo sistemático, aduzindo que a responsabilidade jurídica do Estado dar-se-á quando, em se tratando de ato ilícito, houver dano a direito alheio com imputação de responsabilidade ao Estado.
A Comissão de Direito Internacional da ONU tem consagrado, no entanto, uma metodologia um tanto diferenciada ao trabalhar a matéria. O art. 2º do Projeto da CDI sobre Responsabilidade Internacional do Estado prescreve:
Há um ato internacionalmente ilícito do Estado quando a conduta consistindo de uma ação ou omissão:
a) é atribuível ao Estado consoante o Direito Internacional; e
b) constitui uma violação de uma obrigação internacional do Estado.
Para a referida Comissão, a responsabilidade internacional estaria respaldada em apenas dois elementos de configuração: um de caráter objetivo (a violação de uma obrigação internacional pelo Estado) e outro de caráter subjetivo (a possibilidade de atribuição desta violação a um dado ente estatal), ou, no dizer de Celso Mello (2004, p 524-525):
Ela [Comissão de DI da ONU] considera que há um fato internacionalmente ilícito quando existe: um comportamento (ação ou omissão) atribuível ao Estado conforme o direito internacional e este comportamento é uma violação de obrigação internacional.
Com base nesse entendimento, fica claro que o dano, na conjectura contemporânea, passou do status de integrante da definição de responsabilidade do Estado a pressuposto desta mesma responsabilização, restando inserido no ato causador do evento danoso ou do prejuízo jurídico, de modo a demonstrar que a atual concepção de responsabilidade internacional do Estado funda-se na violação de um direito posto e que o dano, em verdade, é mera consequência dessa violação.
Aliás, defende Luis Cezar Ramos Pereira (2000, p 26) que a Comissão de Direito Internacional da ONU, ao retirar a expressão dano dos elementos da responsabilidade estatal, pretendeu, na realidade, dar maior amplitude ao termo em comento. Essencialmente porque, se a violação do Direito acarreta, pela nova teoria, a responsabilização internacional automática do Estado, a violação do Direito Internacional passou a ser em si mesma um prejuízo que dá ao sujeito lesado o direito de restabelecer a ordem jurídica vigente.
Tanto é assim que, na hipótese do ato praticado ser eminentemente ilícito, caberá responsabilizar o Estado frente á sociedade internacional mesmo sem a prova da existência do dano, posto que, em o Estado-vítima tendo sofrido um prejuízo jurídico, haverá sempre a presunção iuris tantum de que este terá o interesse de ver o Direito Internacional respeitado (MELLO, 2004, p 525).
Diferentemente ocorrerá no caso da prática de um ato não proibido pelo normamento internacional[15], ocasião em que se farão indispensáveis, enquanto pressupostos da violação internacional, a prova da existência de dano efetivo e da recusa na sua compensação pelo ente estatal para, a partir de então, restar configurada a responsabilidade do Estado[16].
Demais disso, independente de haver ou não um fato ilícito a ensejar a conduta estatal reparatória, o dano efetivamente causado ao ente vitimado deve ser entendido como o resultado não só de um dano material (aspecto patrimonial), mas também de uma ofensa ou violação moral ao Estado ou a seu nacional (aspecto moral).
2.3.1 Elemento Objetivo: Fato Ilícito
Assentadas as considerações acima, cumpre explanar, adiante, os elementos essenciais da moderna teoria da responsabilidade internacional do Estado por ela contemplados.
De plano, é mister consignar que a Comissão de Direito Internacional da ONU preferiu utilizar o termo fato ilícito à nomenclatura tradicional ato ilícito para sintetizar o elemento objetivo da responsabilidade internacional, por conceber a primeira acepção como mais ampla[17] e suficiente à consubstanciação da violação de um direito.
Se avaliarmos que a expressão ato ilícito (em seu sentido estrito de comportamento humano em que a vontade atua na formação do ato) exclui a responsabilização do Estado por negócios jurídicos[18] (comportamentos humanos em que há vontade na criação e no efeito do ato) e por fatos jurídicos[19] (acontecimento independente de vontade lato sensu), há de se conceder a correção da terminologia adotada pela CDI, a qual engloba todas as categorias anteriores.
Por essa perspectiva, o fato internacionalmente ilícito ocorrerá quando ao Estado couber a atribuição de um comportamento que importe em violação a obrigação de Direito Internacional[20], seja qual for a sua origem ou natureza, de modo que não fará diferença para a materialização da violação internacional o fato da conduta em vislumbre se encontrar ou não em consonância com o direito interno do Estado, importando tão-somente se há incongruência entre o fato antijurídico e o regramento internacional.
Forte nesse argumento também são as proposições de Francisco Rezek (2005, p 271), para quem o Estado será responsável por qualquer ação ou omissão de órgão, agente ou particular sobre sua jurisdição que comprometa o Direito Internacional, independentemente da norma violada encontrar lastro no direito interno:
A responsabilidade de uma pessoa jurídica de direito internacional público – Estado ou organização – resulta necessariamente de uma conduta ilícita, tomando-se aquele direito (e não o direito interno) como ponto de referência. Assim, não há excusa para o ato internacionalmente ilícito no argumento de sua licitude ante a ordem jurídica local.
2.3.2 Elemento Subjetivo: Atribuição
Embora amplamente consagrado pela teoria clássica, outro vocábulo que tem perdido espaço na moderna teoria da responsabilidade internacional é a imputabilidade. O maior argumento dos defensores dessa sub-rogação terminológica foca-se na suposta diferença de acepção entre o termo epigrafado e o conceito de atribuição.
Segundo alegam tais doutrinadores[21], há a busca, nessa substituição, pela cessação de qualquer espécie de vínculo entre o conceito de atribuição do ilícito (responsabilização do sujeito de DIP) e a autoria imediata da ilicitude, já que, como visto, o Estado, em razão de preceitos de soberania, embora não pratique imediatamente a antijuridicidade, responde pelos atos praticados por seus funcionários, em nome próprio.
Para essa moderna teoria, enquanto a imputação é o nexo que liga o ilícito a quem o promove diretamente – ou seja, o elo entre a ação e seu agente ou entre a omissão e a pessoa que com sua inação causou o dano a outrem –, a atribuição reflete o fato de que o Direito Internacional se restringe a imputar ao Estado as consequências legais desse ato.
Com o fito de estatuir uma posição mais coesa acerca do tema, torna-se necessário confrontar, de início, o conceito de imputabilidade acima com aquele declinado na teoria tradicional.
Nesse mister, tomemos o posicionamento de Hildebrando Accioly (2008, p 345-346):
Quanto à imputabilidade, esta resulta, naturalmente, de ato ou omissão que possam ser atribuídos ao estado, em decorrência de comportamento deste. [...] a imputabilidade exige certo nexo jurídico entre o agente do dano e o estado, é preciso que o agente tenha praticado o ato na qualidade oficial de órgão do estado ou com meios de que dispõe em virtude de tal qualidade.
Observa-se, de plano, que, mesmo no padrão tradicional, o termo imputabilidade já não era compreendido como a vinculação imediata do Estado com o ato ilícito, pois, enquanto pessoa jurídica de direito público, o ente estatal não age, tal qual o particular, por ato próprio em sentido estrito, mas sim por meio de órgãos, entidades ou agentes públicos e, por essa razão, a imputação sempre consistirá em uma autoria mediata do ilícito por parte do Estado.
Ambos os vocábulos carregam, em seu bojo, o mesmo conceito de nexo causal do ilícito e possuem a aptidão para conferir ao Estado o dever de reparação. Trata-se, assim, de verdadeira sinonímia de termos, a rigor do defendido por Celso Mello (2004, p 525):
O estado pratica um ato ilícito quando há uma conduta de ação ou omissão que possa ser atribuível ao Estado conforme o DI; ou ainda, quando é o rompimento de uma obrigação do Estado. O elemento de atribuição é denominado de subjetivo. A obrigação pode ser oriunda de um tratado ou de um costume. A atribuição pode ser substituída por imputação.
Desta feita, quer o termo imputação, quer o termo atribuição, são amplamente válidos para designar esse liame entre a atuação do Estado na ordem internacional e a situação jurídica lesiva, os quais, juntamente com o fato ilícito, são elementares à conformação da hodierna teoria da responsabilidade internacional.
3 CONCLUSÃO
Com as proposituras formuladas, pretendeu-se examinar a capacidade do Estado, enquanto ente soberano, de responder junto à sociedade das nações por ações ou omissões que afrontassem a norma de Direito Internacional ou gerassem dano ao estrangeiro. Buscou-se debater as bases jurídicas para a adoção de uma efetiva teoria da responsabilidade internacional do Estado pautada na conduta de agentes internos que, no exercício de suas funções, viessem a afetar compromissos assumidos livremente pelos países ou praticassem ilícito civil rechaçado pelo normamento internacional.
Num primeiro momento, foi possível constatar que a teoria da responsabilidade internacional do Estado incutida no Projeto da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas sobre Responsabilidade Internacional dos Estados é aplicável na conjuntura internacional vigente, por corresponder a um mecanismo genuíno de resguardo da licitude nas relações internacionais. Até mesmo porque a reportada teoria mostrou-se hábil a consolidar, no seio da comunidade global, a superação do antigo sistema de irresponsabilidade irrestrita do Estado reinante até a Idade Moderna, engendrando um modelo mais contemporâneo de responsabilização pautado na teoria da culpa e, excepcionalmente, na teoria da responsabilidade objetiva, se relacionado a direitos difusos e coletivos.
Sob esse prisma, mais do que simplesmente estratificar a teoria da responsabilidade como um fator característico do sistema jurídico internacional, a teoria em comento buscou exteriorizar toda a preocupação da sociedade contemporânea com a efetivação dos preceitos de justiça no plano supranacional, precipuamente através do desenvolvimento de uma imputação imparcial de responsabilidade aos países e da implementação de um sistema de executoriedade que consagrasse a responsabilidade como eixo central da ordem internacional.
Em um viés mais teórico, a presente pesquisa ainda tornou possível definir um conceito seguro de responsabilidade internacional. Trata-se do vínculo jurídico entre o Estado que praticou, comissiva ou omissivamente, a violação de norma ou obrigação internacional e o Estado vitimado, por meio da atribuição de um ilícito internacional a esse sujeito transgressor e da consequente geração ao imputado dos reflexos obrigacionais de cessação do ato ilícito e de reparação do dano. Premissas essas que, dentre outros desígnios, serviram para validar a atribuição e o fato ilícito enquanto elementos suficientes para ensejar a responsabilização internacional.
Outro ponto assentado foi a diferença entre a acepção de responsabilidade internacional do Estado e o ideal de responsabilidade jurídica geral, de feição interna. Nesse talante, firmou-se o caráter interestatal da responsabilidade internacional, a sua finalidade reparatória de natureza civil, a sua orientação de instituto consuetudinário, o aspecto político inerente ao ilícito praticado e a possibilidade, diante da gravidade do fato, do interesse de reparação não ficar limitado ao Estado vitimado.
Esclareceu-se, nesse contexto, que a atribuição de ilícito ao Estado por atos de órgãos e agentes internos que desconsiderassem em sua atividade laboral os princípios basilares do Direito Internacional ou as obrigações advindas de regramentos internacionalmente pactuados é passível de configurar a responsabilidade internacional desse sujeito político. Defendeu-se que, para a estruturação de um sistema jurídico eficaz, a nível internacional, faz-se mister o fortalecimento da concepção de responsabilidade a ele inerente – inclusive como engenho de proteção dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo e das coletividades –, importando rechaçar as argumentações doutrinárias fincadas na impossibilidade dos países perpetrarem injustiças e na temeridade da criação de uma instância superior a do Estado, usadas, erroneamente, para afastar a viabilidade da responsabilização internacional.
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[1] Nesse sentido, ARANTES NETO, Adelino. Responsabilidade do Estado no Direito internacional e na OMC. 2ª ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2007, p 21, e DEL’OLMO, Florisbal de Souza. Curso de Direito Internacional Público. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p 129.
[2] Em seu livro The rights of war and peace (2005), Hugo Grotius defende que somente quando houvesse efetiva denegação de justiça poderia cogitar-se o direito de represália; não tendo esta o condão de autorizar, por si só, a alienação das coisas obtidas a força, mas tão-somente o direito de guardá-las, com o intuito de obter um ressarcimento e, apenas se não ocorrida a reparação devida, é que os súditos poderiam aproveitar ou alienar a coisa apreendida.
[3] “[...] atos de império seriam os praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial exorbitante do direito comum [...]” (Di Pietro, 2007, p 204-205).
[4] “Atos de gestão são praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares, para a conservação e desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão de seus serviços;como não diferem a posição da Administração e a do particular, aplica-se a ambos o direito comum” (Di Pietro, 2007, p 205).
[5] Convenção relativa aos Estrangeiros e Tratado sobre Reclamações por Danos e Prejuízos Pecuniários, ambas no México.
[6] Em destaque, o projeto da American Institute of International Law (1925), intitulado “Proteção Diplomática”; a Resolução 799/VIII (1953) da Assembléia Geral da ONU que incumbiu a CDI de codificar os princípios de direito internacional sobre responsabilidade do Estado; e os relatórios da Comissão Jurídica Interamericana (1961 e 1965) sobre princípios de direito internacional em matéria de responsabilidade do Estado.
[7] “[...] é necessário, no plano internacional, que haja o endosso da reclamação do Estado nacional da vítima, ou, ainda, o Estado cujo particular cometeu o ilícito e que virá a ser responsabilizado.” (MELLO, 2004, p 523).
[8] Ao menos não em sede das Cortes Internacionais (ex.: Corte Internacional de Justiça).
[9] A exceção fica por conta da legitimação da pessoa natural para formular reclamações em Cortes Internacionais de Direitos Humanos, até mesmo contra seus próprios Estados.
[10] Como nos casos de consentimento, contramedida, força maior, caso fortuito e perigo externo.
[11] Sobre os fatos lícitos, indica Celso D. de Albuquerque Mello (2004, p 528-529) que somente haverá responsabilidade por atos que contenham “riscos excepcionais”, sem desembaraço, contudo, da prova de negligência na origem do dano. Como exemplo, a responsabilidade suplementar do Estado por danos nucleares em empreendimentos particulares, a responsabilidade do Estado no Direito Espacial por lançamento de engenhos e as convenções internacionais sobre direito do meio ambiente.
[12] Embora a regra de responsabilidade seja de Estado a Estado, vem-se entendendo na doutrina jusinternacionalista a possibilidade de uma organização internacional figurar nos pólos passivo ao ativo da reparação. Para estudos mais aprofundados, vide Francisco Rezek (2005, p 269-270).
[13] Nesse entendimento, o Capítulo IV do Projeto da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas sobre Responsabilidade Internacional do Estado e, ainda, Celso Mello (2004, p 523), para quem teríamos como exemplos de tutela universal o aparthied e o genocídio.
[14] SOARES, Guido Fernando Silva. Manual de Direito Internacional Público. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2004; PEREIRA, Bruno Yepes. Curso de Direito Internacional Publico. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008; e MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Publico. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2009.
[15] Nas palavras de Luis Cezar R. Pereira (p 26-27): “Lembro, que se o dano desapareceu do Projeto [da CDI], ele reaparece na questão da responsabilidade não interditada pelo Direito Internacional, pois, neste caso o dano é o fato gerador no tocante à responsabilidade por risco”.
[16] “Há situações em que mesmo atos lícitos na esfera internacional podem gerar responsabilidade de seu agente. O uso pacífico de energia nuclear, assim como a poluição marítima por hidrocarbonetos, conduzem à responsabilidade, sobretudo das empresas privadas, enquanto o lançamento de engenhos espaciais admite a responsabilidade objetiva do Estado [...]” (Del’Olmo, 2006, p 130).
[17] Importa-se da teoria civilista o termo fato jurídico para englobar os fatos jurídicos em sentido estrito, os atos jurídicos em sentido estrito e os negócios jurídicos.
[18] Exemplos clássicos de negócios jurídicos no Direito Internacional são os tratados, acordos e compromissos internacionais.
[19] Cabe a responsabilização do Estado por fato ilícito em sentido estrito na hipótese de acontecimento natural aglutinado à omissão estatal.
[20] O art. 13 do Projeto da CDI prescreve que “um ato de um Estado não constitui uma violação de uma obrigação, a menos que o Estado esteja vinculado pela obrigação em questão no momento em que o ato ocorre”.
[21] CASELLA, Paulo Borba. Fundamentos do Direito Internacional pós-moderno. Porto Alegre: Quartier Latin, 2008.
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (2010) e especialista em Direito e Comércio Internacional pela Universidade Anhanguera-Uniderp (2014). Fundador do Núcleo de Estudos de Direito Internacional (NEDIN - UFMA). Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Internacional, Direito Público e Direitos Humanos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MADEIRA, João Bruno Farias. A Teoria da Responsabilidade Internacional do Estado: Definição, Desenvolvimento Histórico e Elementos Constitutivos de uma Efetiva Responsabilização do Estado na Esfera Internacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jun 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39726/a-teoria-da-responsabilidade-internacional-do-estado-definicao-desenvolvimento-historico-e-elementos-constitutivos-de-uma-efetiva-responsabilizacao-do-estado-na-esfera-internacional. Acesso em: 23 dez 2024.
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