Resumo: A presente exposição tenta, de maneira resumida, fazer uma análise da evolução dos direitos sucessórios dos companheiros no Ordenamento Jurídico pátrio.
Palavras-chaves: União estável; Companheiro(a); Direitos Sucessórios.
1) Introdução
Ainda que o casamento seja a forma tradicionalmente procurada para se formalizar a união afetiva entre um homem e uma mulher, desde sempre um considerável número de pessoas convive extra-matrimonialmente com o objetivo de constituição de uma família. Com o crescimento desse tipo de união, começaram a chegar ao Judiciário ações nas quais, finda a união, os companheiros viam-se desamparados por uma regulamentação. Tornou-se necessária, assim, a criação de normas que passassem a regular diretamente essas uniões e os direitos dos envolvidos no momento de dissolução, fosse por ato de vontade ou por morte de um deles.
Pode-se dizer que a regulação normativa se iniciou com o parágrafo terceiro do artigo 226 da Constituição da República de 1988. Depois disso, vieram as Leis 8971/94, 9278/96 e o atual Código Civil.
2- União estável
2.1- Conceito e requisitos
Considera–se união estável aquela relação afetiva entre um homem e uma mulher, não oficializada pelo casamento, mas que apresenta consistentes indícios de formação de verdadeira entidade familiar entre os parceiros, acompanhada de prole ou não.
Outrora chamou-se tal relação de concubinato. Tal denominação recebia forte conotação negativa, pois o concubinato era tido como uma relação clandestina, que estava às margens da lei. Percebeu-se mais tarde o equívoco de generalizar-se sob uma mesma expressão relações bastante diferentes. Isso porque nem sempre tais relações, que não eram oficializadas, representavam aquela mantida às margens da lei, por pessoa já casada, mas também aquelas nas quais nenhum dos parceiros apresentava qualquer impedimento legal para que fosse realizado o casamento, constituindo a “informalidade” da relação mera opção, ou verdadeira falta de recursos e instrução. Passou-se então a diferenciar-se o concubinato puro do concubinato impuro, em que o primeiro representaria a relação não oficializada, mas em que não haveria qualquer impedimento para oficializada fosse, enquanto o segundo seria aquela relação na qual os parceiros, por algum impedimento legal, não pudessem se casar.
A denominação “concubinato puro” foi, posteriormente, substituída pela “união estável”, que é a usada atualmente.
Os requisitos legais para a caracterização da união estável sofreram algumas mudanças ao decorrer do tempo. A primeira Lei a apresentá-los foi a 8971/94 que, em seu artigo 1º expressa:
A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei nº 5.478, de julho de 1968, enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade.
Parágrafo único: Igual direito e nas mesmas condições é reconhecido ao companheiro de mulher solteira, separada judicialmente, divorciada ou viúva.[1]
Posteriormente, a Lei 9278/96 apresentou novo conceito, retirando dessa vez a exigência de um lapso temporal mínimo ou a constituição de prole como requisitos da caracterização da união estável. Em seu artigo 1º dispunha:
É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.
A definição legal de união estável do Código Civil é, na verdade, quase uma repetição daquela expressa no artigo 1º da Lei 9278/96. De acordo com o caput do artigo 1723 do Código Civil:
É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Uma vez caracterizada e declarada pela autoridade judicial a existência de união estável, os parceiros passam a ser denominados, tecnicamente, companheiros.
2.2- Evolução Histórica
Parte do voto do ministro do Supremo Tribunal Federal, Hahnemann Guimarães, ilustra bem como era vista a união não formalizada em casamento, na década de 40:
A ordem jurídica ignora, avisadamente, a existência do concubinato, da união livre; não lhe atribui conseqüências ( rectius típicas de direito de família ). São situações que não tem relevância jurídica, mas isto não impediria que se pagassem, que se entendessem devidos à concubina honorários pela prestação de serviços. (STF, 2ª Turma, RE nº 7182/47, in RF, agosto de 1947, p. 422)
Essa fase de negação daquilo que hoje denominamos união estável, na qual não eram reconhecidos aspectos pessoais e afetivos da relação, mas tão-somente efeitos advindos do direito das obrigações, traduzia o apego da época ao instituto formal do casamento.
Tal fase culminou com a edição da Súmula 380 do STF:
Comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.
A partilha a que se refere a Súmula era realizada de acordo com a contribuição de cada um dos parceiros, fato que por certo prejudicava a mulher, que, geralmente, não exercia profissão remunerada.
Posteriormente, começou-se a considerar a contribuição indireta para a formação do patrimônio comum como apta a garantir à companheira o direito da partilha. Nesse sentido:
A concubina faz jus à partilha de bens, se demonstrada sua contribuição para a formação do patrimônio, não se exigindo a participação direta. Compreensão que se harmoniza com o Enunciado nº 380 do egrégio STF. (STJ, 3ª Turma, relator Min. Cláudio Santos, 18/10/1994, in JSTJ e TRF-Lex 68/77).
Isto é, passou-se a entender a administração da casa e educação e criação dos filhos, por exemplo, como uma forma de colaboração para a formação do patrimônio do casal também.
Inicia-se nova fase de evolução dos direitos dos companheiros com a diferenciação entre o concubinato puro e o impuro, garantindo-se a inserção do primeiro no direito de família.
Segundo Gustavo Tepedino, pode-se dividir a evolução histórica do tratamento dado aos companheiros em três fases: a primeira inicia-se com a rejeição total no Código Civil de 1916 e culmina com o reconhecimento, pela jurisprudência, no campo do direito obrigacional, dos direitos dos concubinos. A segunda fase é considerada como o ingresso da relação, desde que não adulterina, no direito de família. E a última fase compreende a tutela da união estável no âmbito constitucional (TEPEDINO, 2004, 373).
No âmbito específico da tutela dos direitos sucessórios, a primeira Lei que se propôs regular os direitos do companheiro quanto à matéria sucessória foi a 8.971/94.
Posteriormente, com o intuito de regulamentar o § 3º do artigo 226 da Constituição da República, editou-se a Lei 9278/96.
2.3- Revogação das Leis 8971/94 e 9278/96?
Cumpre esclarecer, primeiramente, que trataremos aqui somente daqueles artigos que interessam ao presente estudo, ou seja, os artigos que se referem à regulação dos direitos sucessórios do companheiro.
Em respeito à ordem cronológica, comecemos por analisar a Lei 8971/94. O seu artigo 2°, in verbis:
As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições:
I – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos deste ou comuns;
II – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;
III – na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.
A nosso ver o artigo não suscita muita discussão. Os incisos I e II asseguram ao companheiro direito ao usufruto dos bens pertencentes ao casal, com proporções variáveis conforme a existência ou não de filhos, fossem eles do casal ou apenas do autor da herança. Já o Código Civil de 2002, em seu artigo 1790 assegura aos companheiros direito à propriedade plena, nas seguintes proporções:
A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a 1/3 (um terço) da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
É forçoso concluir, a nosso ver, que os incisos I e II do artigo 2º da Lei 8971/94 foram sim revogados pelo Código Civil de 2002, sob pena de, numa possível conjugação dos direitos garantidos pelas duas Leis, oferecer-se uma proteção excessiva e descabida ao companheiro em detrimento dos demais herdeiros, já que caberia àquele, além da propriedade plena sobre parte da herança, também o usufruto sobre porção da parte que restasse, obstaculizando quase que totalmente o direito dos filhos herdeiros.
Da mesma forma, entendemos que o inciso III da Lei 8971/94 apresenta-se totalmente revogado, pelo fato de regular de forma absolutamente contrária aos incisos III e IV do Código Civil de 2002.
Quanto ao artigo 3º da Lei 8971/94, que reserva metade dos bens deixados pelo autor da herança ao companheiro, desde que ele tenha contribuído para a aquisição dos mesmos, pode-se dizer que foi, de certa forma, repetido pelo artigo 1725 do Código Civil de 2002, que prevê o regime da comunhão parcial de bens como o regente da união estável, salvo a existência de contrato escrito entre os companheiros. Nesse mesmo sentido é o artigo 5º da Lei 9278/96.
A Lei 9278/96 apresenta, no entanto, aquela que é a mais polêmica das discussões no que se refere à revogação ou não, pelo Código Civil de 2002, das leis anteriores que tratavam da matéria sucessória relativa ao companheiro.
O artigo 7º, em seu parágrafo único, determina que o companheiro sobrevivente terá direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, desde que não constitua nova união ou casamento. A questão portanto é: o direito real de habitação do companheiro, garantido pela Lei 9278/96, subsiste, apesar de o Código Civil de 2002 nada dispor acerca disso?
A doutrina é divergente. Inácio de Carvalho Neto opina pela revogação do direito real de habitação do companheiro. Argumenta que o novo Código Civil regula por completo a sucessão dos companheiros e, como o mesmo não lhes concede o direito real de habitação, tal direito foi revogado tacitamente (CARVALHO NETO, 2002, 35). Já César Fiuza sustenta que o companheiro é detentor dos direitos conferidos pela Lei 9278/96 e pelo novo Código Civil, visto que o texto legal não pode ferir a dignidade da família, mesmo quando não consubstanciada pelo casamento.
Para se chegar a uma conclusão, é importante saber se o Código Civil, em seu artigo 1790, regulou inteiramente a sucessão entre companheiros - e concluir, portanto, que não houve omissão quanto ao aludido direito real de habitação, mas silêncio eloqüente do legislador - ou, do contrário, constatar que esse benefício não é incompatível com qualquer dispositivo do novo Código Civil e, por isso, ainda vigora. Essa segunda corrente parece ser a mais adequada, não só pelos motivos já expostos, mas também pelo fato de que o direito real de habitação foi garantido ao cônjuge no Código Civil, inexistindo razão lógica para não se estender tal direito aos companheiros, levando-se sempre em consideração que, por norma constitucional, a lei deverá “facilitar a conversão da união estável em casamento” (artigo 226, §3º, CR/88).
3- O ARTIGO 1790 do Código Civil
Exemplo da falta de técnica legislativa, o artigo 1790 é aquele que regula os direitos sucessórios do companheiro no Código Civil de 2002.
A primeira crítica que se faz reside no fato de o mesmo estar inserido no Capítulo das “Disposições Gerais”, ao invés de estar naquele destinado à “Ordem de Vocação Hereditária”. Segundo Caio Mário da Silva Pereira:
Chama atenção do intérprete, desde logo, a inadequada inserção do dispositivo em Capítulo dedicado às “Disposições Gerais” do Título I (“Da Sucessão em Geral”), e não, como teria sido próprio, naquele pertinente à ordem de vocação hereditária, no Título II (“Da Sucessão Legítima”), em ostensivo prejuízo à sistematização das regras sobre o assunto. É evidente que o companheiro não poderia ter deixado de figurar, a rigor, na lista dos herdeiros legítimos (art.1829) [...] (PEREIRA, 2002,154).
Corroborando essa posição, Inácio de Carvalho Neto afirma que:
[...] também é criticável o fato de o novo legislador ter regulado a sucessão do companheiro no capítulo das disposições gerais da sucessão em geral (Capítulo I do Título I do Livro V da Parte Especial), enquanto que a sucessão do cônjuge é corretamente tratada no capítulo da ordem de vocação hereditária, que se coloca no âmbito da sucessão legítima (Capítulo I do Título II). Isto só se explica pelo fato de que o Projeto original não se referia ao companheiro, tendo sido o tema acrescentado, sem muito cuidado, em revisão no Congresso. (CARVALHO NETO, 2002, p.30/31)
Passemos então à análise das regras contidas no artigo 1790:
A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a 1/3 (um terço) da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
A primeira constatação a se fazer é a de que o legislador, no caput, cingiu a participação do companheiro na sucessão do outro àqueles bens adquiridos onerosamente durante o período de vigência da união estável, restrição essa que não era observada na Lei 8971/94. Apesar de a lei pretérita garantir tão-somente o direito de usufruto ao cônjuge sobrevivente, nas hipóteses de concorrência com descendentes e ascendentes do de cujus, não fazia a exigência de que deveria haver um patrimônio comum dos companheiros para que um participasse da sucessão hereditária dos bens do outro. Portanto, nesse aspecto houve um retrocesso, visto que os companheiros que não chegaram a formar patrimônio conjunto durante a vigência da união estável, não têm, em princípio, o direito de suceder um ao outro.
O inciso I trata da sucessão do companheiro em concorrência com filhos comuns dele e do autor da herança. Mais uma imprecisão do legislador: deve-se entender a expressão “filhos” como descendentes, haja vista a distinção que se procurou estabelecer entre esse inciso e o inciso II do artigo. Além disso, não há como se imaginar que o Código Civil enquadre descendentes comuns (não filhos) dos companheiros no inciso III em “outros parentes sucessíveis”, em posição menos vantajosa do que aqueles descendentes só do autor da herança, alocados no inciso II. Afora isso, o inciso é claro: deve-se repartir a herança entre os descendentes comuns e o companheiro igualmente, tal como ocorre com o cônjuge em certos regimes de casamento - com a importante diferença de que não é reservada ao companheiro a quota mínima de ¼ (um quarto) da herança garantida ao cônjuge na concorrência com descendentes comuns (art. 1832 do Código Civil).
O inciso II trata, por sua vez, da concorrência do companheiro sobrevivente com descendentes só do autor da herança. Em princípio, não existe muito o que se questionar com relação a esse inciso: reparte-se o monte-mor de tal forma que os descendentes fiquem com uma quota-parte que represente duas vezes aquela que foi atribuída ao companheiro. Ao se vislumbrar prováveis situações concretas constata-se, entretanto, que o inciso também apresenta imprecisões graves, a começar do fato de que ele parte do pressuposto, tal qual como o inciso I, de que todos os descendentes que irão concorrer com o companheiro encontram-se na mesma classe da ordem de vocação hereditária, isto é, o Código não deixa claro, por exemplo, como se deve proceder quando a concorrência se der entre companheiro, filhos e netos do autor da herança. Caberia ao companheiro metade da fração equivalente às dos filhos ou às dos netos do de cujus? Outra indagação consiste em se saber como deve ser feita a partilha quando houver, concomitantemente, descendentes comuns e descendentes exclusivos do autor da herança.
Comecemos pelo primeiro questionamento. Na hipótese do companheiro vir a concorrer com filhos e netos do autor da herança, por exemplo, a lógica nos faz entender que a concorrência deve ser feita com base nas quotas-partes daqueles que herdaram por cabeça.
A “metade” a que se refere o texto legal, deve ser, pois, calculada sobre a fração que couber aos descendentes chamados por direito próprio: havendo a simultânea vocação de filhos e netos (apenas) do de cujus, a parte do companheiro deverá corresponder à metade do que tocar singularmente a cada filho e à(s) estirpe(s) do(s) filho(s) pré-morto(s) (PEREIRA, 2002, p.158).
Com relação à segunda indagação: deve o companheiro receber fração igual à atribuída ao descendente comum ou à atribuída ao descendente apenas do autor da herança, quando houver ambos? De início, por força do artigo 227, §6º da Constituição da República: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”
Ou seja, é inadmissível qualquer tentativa de solução da questão que venha estabelecer diferenciação de direitos entre os descendentes pelo fato de serem eles filhos exclusivos do autor da herança ou de ambos os companheiros. Dessa forma, ou o companheiro recebe a metade das frações que couberem aos filhos, ou recebe fração idêntica àquela que eles receberem. Parece mais justa a segunda solução, mais favorável ao companheiro, tendo em vista que ele só participa da sucessão dos bens adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável e, na hipótese de haver grande número descendentes, sua participação na herança poderia ser injustamente pequena, não obstante existir posição contrária.
O inciso III, assim como o inciso IV, do artigo 1790 traz à tona mais uma imprecisão técnica do legislador. Ambos os incisos se referem à “herança” do de cujus, contrariando a regra do caput do artigo, que determina ficar a participação do companheiro restrita aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável. Alguns autores defendem que, pelo fato de a interpretação dos incisos ser vinculada à interpretação do caput, a palavra “herança” não deve ser entendida em seu sentido técnico, como expressão da totalidade dos bens do patrimônio do de cujus, mas sim em um sentido vulgar, no qual fosse possível reduzi-la aos “bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável”. Esta é a posição de Silvio Rodrigues:
O inciso III afirma que se o companheiro sobrevivente concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança [...] Como os descendentes do falecido já foram mencionados nos incisos I e II, os ‘outros parentes sucessíveis’, de que cogita o inciso III, são os ascendentes e os colaterais até o quarto grau (irmãos, sobrinhos, tios, primos, tios-avós e sobrinhos-netos do de cujus) [...] A lei não distinguiu, de forma que na concorrência com esses outros parentes sucessíveis, seja um ascendente do de cujus, seja um primo ou um tio-avô do falecido, o companheiro receberá a mesma quota: um terço da herança. Não de toda a herança, pois, insisto, a matéria está presa, vinculada, e tem de ser compreendida diante do comando do caput do art. 1790: a sucessão dos companheiros limita-se aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável (RODRIGUES, 2003, 118).
Em sentido diverso, posiciona-se César Fiuza:
O Código Civil é incerto em sua redação, deixando margem à dúvida quanto à participação do companheiro na sucessão do outro. O caput do art. 1790 refere-se aos bens adquiridos, onerosamente, no transcorrer da união estável. Dá a entender que, em relação aos demais bens, o companheiro não participaria da sucessão, sendo, então, convocados os outros herdeiros [...] Por outro lado, os incisos III e IV do mesmo art. 1790 referem-se à herança do companheiro morto, dando a entender que o sobrevivente participaria da sucessão, não só quanto aos bens a que se refere o caput, como a todo o acervo hereditário [...] Em minha opinião, seria absurdo interpretar a norma no sentido de colocar o companheiro em situação inferior à do Estado. A se interpretar o art. 1790 apenas de acordo com seu caput, poderá ocorrer o caso em que o companheiro nada herdará, por não haver patrimônio adquirido a título oneroso durante a união estável. Supondo que haja outro patrimônio, este seria incorporado aos cofres municipais. Tal situação iria muito além das raias do absurdo [...] Assim sendo, por mais atípica que seja a sucessão do companheiro, a interpretação do art. 1790 e seus incisos deve ser favorável a ele, convivente [...] (FIÚZA, 2003, p.973).
Ao se tentar dar um sentido minimamente lógico e, sobretudo, justo para a matéria sucessória regulada no Código, esta segunda posição se mostra bem mais adequada, demonstrando que o legislador não teve a devida preocupação com o sentido técnico das expressões por ele utilizadas. Dessa forma, “herança” deve ser entendida, nos incisos III e IV, em seu sentido jurídico, como representação de todo o patrimônio deixado pelo de cujus.
Mais um retrocesso do legislador nesse artigo: ao contrário do que era estabelecido na Lei 8971/94, art. 2º, III, de que, na falta de descendentes e ascendentes, o companheiro sobrevivente teria direito à totalidade da herança, o artigo 1790 do Código só confere direito à totalidade da herança ao companheiro na hipótese de não existirem quaisquer parentes sucessíveis do autor da herança. A piora da situação do companheiro nesse aspecto, em benefício dos herdeiros colaterais, não se justifica, principalmente se não perdermos de vista que a caracterização da união estável demanda a comprovação de que os companheiros tinham por objetivo a constituição de uma família, instituição que, segundo a Constituição de 1988, é a base da sociedade e conta com especial proteção do Estado.
4- Companheiro: herdeiro necessário?
Questão que para os mais incautos pode parecer simples, vem causando polêmica doutrinária: poder-se-ia, a partir do novo Código Civil, atribuir ao companheiro a condição de herdeiro necessário ou deve-se considerar o elenco previsto no artigo 1845, cuja clareza não pode ser questionada, taxativo. Comecemos pela transcrição do artigo: “São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”. Antes de tudo, é preciso salientar que a colocação expressa do cônjuge na condição de herdeiro necessário já significou um avanço em relação ao Código Civil de 1916, que só assegurava a legítima aos descendentes e ascendentes. Tal mudança veio ao encontro de todas as outras ocorridas em matéria de direito sucessório, haja vista o claro intuito do legislador de garantir maior participação dos cônjuges na sucessão.
Voltando à questão central deste tópico, a se interpretar de acordo com a literalidade do texto legal, não existe qualquer possibilidade de se enquadrar o companheiro como um herdeiro necessário, o que, como é sabido, não impediria o autor da herança de, vivendo em união estável, dispor livremente de seu patrimônio mediante ato de última vontade, caso não tivesse ascendentes nem descendentes. Os defensores dessa interpretação literal sustentam que, pelo fato de o artigo representar uma limitação à liberdade de testar, a interpretação deve ser restritiva.
Existe, contudo, interpretação que procura harmonizar o artigo 1845 às outras regras de direito sucessório estabelecidas no Código e com a Constituição de 1988.
Essa corrente usa como um de seus argumentos o fato de que o companheiro, nos casos dos incisos I e II do artigo 1790, está situado na primeira classe de herdeiros legítimos, em concorrência com os descendentes. Ora, os descendentes são, sem qualquer sombra de dúvida, herdeiros necessários e, como o Código chama à sucessão descendentes e companheiro simultaneamente, não há como excluí-lo da sucessão.
Nos casos de sucessão previstos nos incisos III e IV do artigo 1790, o argumento possui mais uma fundamentação doutrinária do que legal. A proteção à família é considerada como um dos princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido:
A união estável, no direito brasileiro, constitui modalidade de família (Constituição Federal, art. 226, § 3º), à qual se estende, pois, aquela ‘especial proteção do Estado’, prometida no texto constitucional (art. 226, caput). Se, na hipótese de que ora se cogita, for permitido a um dos companheiros dispor da totalidade de seu patrimônio, o exercício dessa irrestrita liberdade de testar poderá comprometer, em muitos casos, a própria sobrevivência do mais próximo de seus familiares – o resultado, manifestamente indesejável, parece condenar qualquer interpretação em sentido contrário. (PEREIRA, 2002, 167)
Além disso, seria estranho considerar o companheiro um herdeiro necessário apenas em algumas situações.
Outro reforço de argumento dessa corrente fundamenta-se no artigo 1850 do Código Civil: “Para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar”. Ora, se não fosse da vontade do legislador garantir a legítima ao companheiro, porque a referência se daria apenas aos colaterais?
Apesar de, mais uma vez, o Código apresentar incoerências, expressão da falta de técnica e cuidado em sua redação, entendemos que se harmoniza mais com o espírito empreendido pelo legislador, e pelo próprio Constituinte, a segunda interpretação, que estende ao companheiro a garantia de sua legítima. Quanto ao fato do artigo 1845 ser taxativo, fica mais uma vez constatado que a inserção da regulamentação dos direitos sucessórios do companheiro em um Projeto de Código Civil que originalmente não tratava da matéria, não veio procedida da devida harmonização e sistematização com as outras regras do próprio Código.
5) Conclusão
O objetivo deste trabalho foi, ao se analisar a evolução dos direitos sucessórios garantidos ao companheiro, procurar se chegar a uma conclusão que nos permitisse dizer se o Código Civil de 2002 representou realmente um avanço ou se ele apenas veio apenas polemizar ainda mais essa questão.
Na análise da evolução histórica, constatamos que o Código Civil de 1916 não se preocupava em proteger a relação afetiva não oficializada perante o Estado. Essa relação, ainda quando pública, contínua e duradoura, permaneceu por longo tempo estranha à proteção do ordenamento jurídico brasileiro. Não se pensava em conceder qualquer garantia ao convivente, que, na ocorrência da morte do parceiro, se via sozinho. Tal situação prejudicava sobremaneira a mulher, que, geralmente, não tinha condições de se manter sozinha. A única modalidade de família tida como legítima era aquela fundada no casamento.
Essa mentalidade foi mudando paulatinamente. O primeiro passo dessa mudança foi a criação, por parte da doutrina, da “sociedade de fato”. O raciocínio, fundamentado no direito obrigacional, consistia em tratar os conviventes como verdadeiros sócios. Ora, se ambos os parceiros foram responsáveis pela aquisição de bens durante a constância da união, nada mais justo que, ao término da mesma (fosse por ato de vontade ou causa mortis), tais bens fossem partilhados. Nesse sentido foi emblemática a edição da Súmula 380 do STF.[2]
A evolução prosseguiu com o reconhecimento, mais tarde, da chamada “participação indireta” da companheira (os serviços domésticos e a educação dos filhos, por exemplo) como apta a garantir a participação da mesma na partilha. É bom lembrar que, até então, não eram garantidos direitos sobre herança.
A Constituição de 1988 veio então dar novo rumo para o tratamento dispensado à união estável. O reconhecimento de que a mesma constituía modalidade de entidade familiar, trouxe a questão definitivamente para o âmbito do direito de família e sepultou de vez a idéia de que o casamento possuía aptidão exclusiva para servir de fundamento à entidade familiar. A mudança de enfoque foi clara: passou-se a proteger, a partir daquele momento, não apenas um parceiro em relação ao outro, mas também a relação em si perante terceiros.
Nesse contexto de evolução, editaram-se as Leis 8971/94 e 9278/96, sendo que a última se propôs expressamente a regulamentar o artigo 226, §3º da Constituição. Em termos de direitos sucessórios, a Lei 8971/94 foi, entretanto, bem mais importante, com a ressalva de que foi a segunda que garantiu o direito real de habitação dos conviventes.
O diploma legal posterior que se encarregou de tratar da matéria foi o Código Civil. Variadas foram as críticas apresentadas com relação a essa regulamentação, sejam elas de imprecisões terminológicas do legislador, falta de harmonia e sistematização do Código, etc. Mas será que, não obstante essas graves falhas, poderíamos concluir que o Código apresentou um avanço no trato do direito sucessório dos companheiros?
Para tentarmos responder a essa pergunta, enumeraremos alguns aspectos importantes. Primeiramente, é importante ressaltar que a substituição do usufruto, garantido pela Lei 8971/94, pela garantia da propriedade plena ao companheiro é salutar. A reserva de usufruto é prejudicial à economia e à circulação de riquezas, além de representar pouco para aquela pessoa que ajudou a construir o patrimônio do casal.
O Código, entretanto, apresenta muitas falhas. Infere-se que o legislador procurou proteger de maneira significativa aquele que foi casado com o autor da herança, mas existem situações nas quais o companheiro terá mais direitos frente à herança do que se casado fosse. É o caso, por exemplo, da pessoa casada sob o regime da comunhão universal ou da comunhão parcial de bens que tinha como acervo patrimonial tão-somente bens adquiridos onerosamente na vigência do casamento. Na ocasião de sua morte, seu cônjuge não terá direito a concorrer com os seus descendentes na herança, enquanto que, se fossem companheiros, o convivente concorreria.
Como o objetivo do Código parece ser o de se privilegiar o cônjuge, uma alternativa simples poderia ser, talvez, a de se limitar a participação do companheiro na herança à quota-parte que seria cabida a uma pessoa casada sob o regime da comunhão parcial de bens, que é o regime que deve ser aplicado à união estável quando não houver pacto escrito dispondo em contrário.
No entanto, entendemos que a principal falha do Código foi a de tentar distanciar os direitos sucessórios conferidos ao companheiro e os conferidos ao cônjuge. O legislador perdeu, sem dúvida alguma, a oportunidade de dar continuidade ao processo de mudança de mentalidade que foi propugnado pela Constituição de 1988.
A união afetiva entre um homem e uma mulher, sem as formalidades do casamento, sempre existiu. Antes de ser um fato jurídico é um fato social.
É perceptível uma tendência das pessoas de não quererem a intromissão estatal num terreno eminentemente privado como é o relacionamento afetivo. O “ar de definitividade” imposto pelo casamento muitas vezes assusta os indivíduos que se acostumaram a viver numa sociedade dinâmica como é a atual, sem que isso signifique, no entanto, que o amor dispensado por aqueles que não oficializaram a sua união perante o Estado seja menor do que o do casal que constituiu matrimônio.
O próprio Código apresenta casos em que o fim do casamento no plano fático se sobrepõe à sua continuidade no plano formal. Como exemplo, o artigo 1830:
Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de 2 (dois) anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente (destaque nosso).
Ora, se o Código permite a exclusão dos direitos sucessórios dos cônjuges em casos de separação de fato há mais de dois anos, porque não pode considerar aquela relação afetiva não oficializada que, no plano fático espelha um verdadeiro casamento, possa se equiparar, em determinados efeitos, à relação “oficial”. E um desses efeitos a que podem ser equiparados ambos os institutos é o relativo aos direitos sucessórios.
Obviamente, a equiparação dos direitos sucessórios teria que vir acompanhada de uma adaptação e harmonização com o restante do Código: os requisitos para caracterização da união estável poderiam tornar-se mais rigorosos, por exemplo.
Dessa forma, concluímos que o Código Civil de 2002 não se apresentou como um avanço na regulação dos direitos sucessórios do companheiro. Sobretudo por ter faltado coragem ao legislador para equiparar ou, no mínimo, aproximar mais tais direitos aos direitos de sucessão do cônjuge.
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Advogado da União. Pós-graduado em Direito Privado e em Direito Público. Graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais;
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, João Gomes Dutra. A União Estável e os Direitos Sucessórios no Ordenamento Jurídico Brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jun 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39801/a-uniao-estavel-e-os-direitos-sucessorios-no-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 26 dez 2024.
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