I) Introdução
Questão até hoje pouco explorada pela doutrina diz respeito à aplicação do art. 1º, da Lei nº 9.469/97, que permite à Fazenda Pública Federal a celebração de acordo ou transação, em juízo, para terminar litígios relativos aos seus créditos não-tributários.
O presente artigo procura aprofundar o estudo do tema, sem a pretensão de esgotar o exame de um dispositivo legal tão útil, mas ao qual não tem sido conferida a efetiva aplicabilidade em toda a extensão prevista pelo legislador infraconstitucional.
II) Desenvolvimento
O art. 4º, inciso VI, da Lei Complementar nº 73/1993, dispõe que:
Art. 4º - São atribuições do Advogado-Geral da União:
(...)
VI - desistir, transigir, acordar e firmar compromisso nas ações de interesse da União, nos termos da legislação vigente;
A fim de regulamentar referido dispositivo, sobreveio a Lei nº 9.469/1997 que, no seu artigo 1º, com redação dada pela Lei nº 11.941/2009, assim preceitua:
Art. 1o. O Advogado-Geral da União, diretamente ou mediante delegação, e os dirigentes máximos das empresas públicas federais poderão autorizar a realização de acordos ou transações, em juízo, para terminar o litígio, nas causas de valor até R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).
§ 1o Quando a causa envolver valores superiores ao limite fixado neste artigo, o acordo ou a transação, sob pena de nulidade, dependerá de prévia e expressa autorização do Advogado-Geral da União e do Ministro de Estado ou do titular da Secretaria da Presidência da República a cuja área de competência estiver afeto o assunto, ou ainda do Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, de Tribunal ou Conselho, ou do Procurador-Geral da República, no caso de interesse dos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, ou do Ministério Público da União, excluídas as empresas públicas federais não dependentes, que necessitarão apenas de prévia e expressa autorização de seu dirigente máximo.
§2º (Revogado pela Lei nº 12.348/2010)
§ 3o. As competências previstas neste artigo podem ser delegadas.
Inicialmente, a redação desse dispositivo legal poderia suscitar dúvida acerca da sua aplicabilidade naquelas situações nas quais os órgãos e entes públicos federais figurem como credores – e não somente quando forem devedores. Em outras palavras, o art. 1º, da Lei nº 9.469/97, deve ser aplicado somente quando a Fazenda Pública Federal for devedora ou também quando ela for credora de créditos não-tributários?
O aludido dispositivo legal deixa entrever que os requisitos básicos para sua aplicabilidade seriam a presença de órgão jurisdicional investido de competência para homologar o acordo ou transação; o objetivo de por fim a um litígio; a observância da regra de competência para autorizar o acordo ou transação.
Assim, existindo um litígio e havendo interesse do órgão ou ente público federal em encerrá-lo, não há razão, em tese, para impedir que a autorização contida no artigo 1º, da Lei nº 9.4697, incida também sobre os processos que tenham por objeto a cobrança de créditos não-tributários de titularidade da Administração Pública Federal Direta e Indireta, devendo fazê-lo de maneira fundamentada.
De fato, tal preceito legal não estabelece como requisito que as entidades públicas federais figurem como devedora nas ações judiciais; basta que haja conflito de interesses, in casu, consubstanciado na existência de um crédito devidamente constituído pela Administração Pública Federal e a recusa de adimplemento por parte do devedor.
Mas esse fundamento, por si só, não é suficiente para se concluir pela viabilidade jurídica da celebração do acordo ou transação.
Isso porque o art. 1º, da Lei nº 9.469/1997, é expresso ao consignar que tal dispositivo autoriza pôr termo a litígio por meio de acordo ou transação, em juízo.
Essa prescrição legal admite a celebração de acordo ou transação, em juízo, para terminar litígio, não exigindo que se trate de litígio judicial.
Nesse passo, importante consignar que litígio pode ser definido como a situação em que se verifica o conflito de interesses e que, eventualmente, pode vir a ser apreciado pelo Poder Judiciário.
Assim, não se pode conferir interpretação demasiadamente restritiva à expressão terminar litígio para admitir sua aplicabilidade tão-somente quando for para pôr fim a litígios judiciais.
A admissão da formulação de acordo ou transação neste caso somente na existência de prévio litígio judicial entraria em rota de colisão com os anseios da sociedade, que clama por soluções conciliatórias e que garantam a célere tramitação dos processos no âmbito administrativo e judicial, tal como previsto no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República de 1988[1].
De fato, não se justificaria, em princípio, a judicialização prévia da demanda tão-somente para deflagrar medidas conciliatórias de resolução da questão.
Em todo o caso, em razão do disposto expressamente no art. 1º, caput, da Lei nº 9.649/1997, o ajuste celebrado entre o órgão ou ente público federal e a parte devedora deverá, necessariamente, ser submetido ao crivo do Poder Judiciário, mesmo que celebrado anteriormente ao ingresso de qualquer demanda judicial (ação cautelar, ação anulatória e/ou execução fiscal).
A celebração de acordos ou transações em situações deste jaez não deve ficar ao mero talante da autoridade competente – até mesmo como forma de se evitar qualquer alegação futura de privilégios a determinados sujeitos ou tratamento desigualitário, o que infringiria o princípio da isonomia.
Segundo Rui Barbosa[2], o princípio da isonomia busca “quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam”, cabendo ao aplicador do direito estabelecer critérios que apontem desigualdade entre as situações e justifiquem o tratamento diferenciado. Por exemplo, devedores com interesse de saldar seu débito não-tributário em face de uma autarquia não se encontraria, em tese, em situação de desigualdade em relação àquele que possui débito não-tributário com a União, a menos que haja algum discrimen justificável.
O preceito da igualdade visa firmar a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas. Para analisar a existência de isonomia em cada caso deve-se: i) verificar o elemento tomado como fator discriminante; ii) estabelecer uma relação lógica abstrata entre o fator e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico; iii) verificar a consonância dessa correlação com o ordenamento jurídico[3].
Para que não haja ofensa ao princípio da isonomia, é mister que os três aspectos sejam observados cumulativamente, sob pena de descumprimento desse preceito constitucional.
Desse modo, deve haver regulamentação específica pelo próprio Advogado-Geral da União, a fim de permitir tratamento igualitário e evitar, desse modo, a concessão de privilégios que decorram de casuísmos ou discriminações, o que, por certo, não se coaduna com os princípios da isonomia, legalidade, moralidade e impessoalidade, dentre outros[4].
De fato, apesar de, em tese, o artigo 1º da Lei nº 9.469/97 autorizar o Advogado-Geral da União a realização de acordos e transações, em juízo, com o objetivo de terminar litígios – o que inclui a possibilidade de concessão de descontos aos devedores de créditos não-tributários da Administração Pública Federal Direta e Indireta –, ainda não existe essa possibilidade, pois não há efetivamente um ato normativo próprio que regulamente a concessão de tal benesse, disciplinando a forma e o limite de atuação dos membros da Advocacia-Geral da União.
A fim de subsidiar possível regulamentação do tema, a respeito dos requisitos para a realização de uma transação convém trazer à lume as lições de Caio Mário da Silva Pereira[5], ipsis litteris:
a) Um acordo, realizado mediante declaração de vontade de ambos os interessados. Não há transação por força de lei, nem pode provir de provimento judicial ex officio. Quando realizado em juízo, a palavra jurisdicional é simplesmente homologatória.
b) Extinção ou prevenção de litígios, sem o que o negócio jurídico se desfigura como transação. Assim já se configurava no Direito Romano, caráter que conserva em todos os sistemas modernos. Este é o seu efeito básico, convertendo um estado jurídico incerto, em situação segura.
c) Reciprocidade das concessões, traço característico, que a distingue de qualquer outro negócio jurídico, onde haja datio solutum, ou doação, ou renúncia, ou confissão, ou pagamento. A transação se tipifica pelo fato de ambos os transatores fazerem um ao outro concessões, mutuamente.
d) Incerteza em torno do direito de cada um dos transatores, ou ao menos de um deles. (...) A incerteza tanto pode ser subjetiva quanto objetiva, isto é, insegurança pessoal do interessado como qualificação duvidosa do próprio direito. (...) O Direito Brasileiro acompanha a orientação romana, admitindo a transação desde que impere dúvida no espírito dos interessados.
A propósito, o Tribunal de Contas da União ressaltou a necessidade de comprovação de vantagem para o erário para a formulação de acordos ou transações, por ocasião de consulta formulada pelo então Advogado-Geral da União[6]:
“31. É importante salientar que a indisponibilidade do interesse público não significa a proibição de os entes de direito público realizarem transações, tanto que há o permissivo legal mencionado [art. 4º, inc. VI, da LC nº 73/93, c/c art. 1º, da Lei nº 9.469/97], e sim vedar a realização de transações desvantajosas, que ofendam os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade e da economicidade.
32. Assim, o instituto importado do Direito Civil não deve ser usado para promover interesses escusos, favorecimento de particulares ou dano ao erário, devendo o gestor público acautelar-se e justificar meticulosamente o acordo.
33. Um litígio não definitivamente solucionado pelo Poder Judiciário envolve a criteriosa análise dos possíveis cenários do seu desfecho. Assim, deve-se observar tanto o pior cenário, quanto o mais favorável, assim como uma estimativa de probabilidade de suas ocorrências. Esses constituem os parâmetros iniciais para o estabelecimento do valor de um possível acordo.
(...)
40. Por conseguinte, pode ser esclarecido à AGU que a transação pode ser efetuada pelo Poder Público, desde que observados os contornos legais, expostos na Lei nº 9.469/1997, especialmente quanto à anuência das autoridades mencionadas nesse diploma legal, que não seja instrumento para burlar o estabelecido no art. 100 da Constituição Federal, ou seja, o respeito à ordem do pagamento de precatórios, e que haja uma criteriosa avaliação em termos de economicidade, ou seja, que o acordo seja financeiramente benéfico à União”.
Nesse sentido, Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves lecionam que “uma gestão responsável do dinheiro público, além de manter o equilíbrio das contas públicas, renderá obediência a padrões éticos de conduta próprios daquele que deve gerir interesses de terceiros, preservando o primado da ordem jurídica e garantindo a consecução da finalidade pública que é subjacente à própria concepção de Estado”[7].
Assim, respeitadas as balizas traçadas pela lei nº 9.469/1997 e atendido ao interesse público, admite-se, em tese, a celebração de acordo ou transação, em juízo, para terminar litígios que trate de créditos não-tributários da Administração Pública Federal Direta e Indireta, desde que a matéria seja regulamentada previamente pelo Advogado-Geral da União, evitando-se, deste modo, a ocorrência de casuísmos que possam representar ofensa aos princípios que regem a administração pública, sobretudo os princípios da isonomia e da legalidade.
III) Conclusão
Ante ao exposto, o art. 1º, da Lei nº 9.469/97, permite a realização de acordo ou transação, em juízo, para terminar litígio, tanto de débitos quanto de créditos não-tributários da Fazenda Pública Federal, sejam estes objeto de ação judicial ou não.
O acordo ou transação deverá ser homologado em juízo, conforme exigência contida no art. 1º, da Lei nº 9.469/97. Assim, mesmo na hipótese de inexistência de ação judicial, celebrado o acordo ou transação entre a Administração Pública Federal credora e a parte devedora, tal ajuste deverá ser submetido à homologação do Poder Judiciário, em observância ao texto expresso da lei.
Em todo caso, o dispositivo supracitado só pode ser aplicado nos moldes propostos se houver regulamentação pelo Advogado-Geral da União, disciplinando a forma e o limite de atuação dos membros da Advocacia-Geral da União, sob pena de ofensa ao princípio da isonomia.
IV) Referências bibliográficas
- BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3a edição, 16a tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.
- BARBOSA, Rui, Oração aos Moços, 5. ed., Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999, p. 26, apud BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves, Transações administrativas: um contributo ao estudo do contrato administrativo como mecanismo de prevenção e terminação de litígios e como alternativa à atuação administrativa autoritária, no contexto de uma administração pública mais democrática, São Paulo: Quartier Latin, 2007.
- GARCIA, Emerson. ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 6ª edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011.
- PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Contratos. Vol. 3. 11ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[1] “LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
[2] BARBOSA, Rui, Oração aos Moços, 5. ed., Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999, p. 26, apud BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves, Transações administrativas: um contributo ao estudo do contrato administrativo como mecanismo de prevenção e terminação de litígios e como alternativa à atuação administrativa autoritária, no contexto de uma administração pública mais democrática, São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 125.
[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3a edição, 16a tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2008, pg. 21.
[4] O Tribunal de Contas da União deixou entrever raciocínio semelhante nos autos nº 011.105/2004-3 (Acórdão 1234-31/04-P), que tratavam de Consulta formulada pelo Advogado-Geral da União a partir de um caso concreto no qual se objetivava a análise de um pré-acordo para quitação de dívida da Fundação Oswaldo Cruz: “Conceituado como espécie de ato administrativo, inevitável a submissão dos acordos (ou transações) aos princípios que regem as ações da Administração Pública, tais como aqueles enunciados nos arts. 37, caput, e 71, caput, da Constituição da República - legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, legitimidade e economicidade -, bem como outros reconhecidamente admitidos na doutrina e na jurisprudência - supremacia do interesse público, indisponibilidade da coisa pública, proporcionalidade e razoabilidade.”
[5] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Contratos. Vol. 3. 11ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[6] A Consulta formulada pelo Advogado-Geral da União ao Tribunal de Contas da União baseou-se em caso concreto no qual se objetivava a análise de um pré-acordo para quitação de dívida da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ.
[7] GARCIA, Emerson. ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 6ª edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011, pág. 481.
Procurador Federal. Especialista em Direito Processual Civil.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Gustavo D' Assunção. A possibilidade de a Fazenda Pública Federal celebrar acordos ou transações, em juízo, para terminar litígios quanto aos créditos não-tributários de sua titularidade, e a necessidade de regulamentação do artigo 1º, da Lei nº 9.469/97 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39843/a-possibilidade-de-a-fazenda-publica-federal-celebrar-acordos-ou-transacoes-em-juizo-para-terminar-litigios-quanto-aos-creditos-nao-tributarios-de-sua-titularidade-e-a-necessidade-de-regulamentacao-do-artigo-1o-da-lei-no-9-469-97. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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