A regularização de ocupação incidente em área pública é matéria hábil a despertar grande divergência tendo em vista a própria natureza dos bens públicos: bens indisponíveis, impenhoráveis, não passíveis de usucapião, o que se releva diante da preocupação com o patrimônio público.
No caso da regularização fundiária de ocupações incidentes em áreas localizadas na “Amazônia Legal” a polêmica é ainda maior já que existe uma preocupação mundial com a conservação do bioma amazônico.
A matéria enseja grande discussão. Não obstante, com o intuito de conferir substrato legal e específico à regularização fundiária das ocupações incidentes em terras da União situadas na “Amazônia Legal”, foi editada a Lei n. 11.952, em 25 de junho de 2009, por meio de conversão da Medida Provisória n. 458, de 2009.
Referido instrumento normativo foi recebido com aplausos por alguns setores da sociedade que a consideram um verdadeiro instrumento de justiça social[1]. Segundo tal perspectiva, a possibilidade de regularizar a ocupação de “propriedades rurais” que há muitos anos já estavam de fato ocupadas (sem que fossem garantidos aos ocupantes quaisquer direitos sobre as terras) é um importante instrumento de integração dos agricultores à vida econômica do país possibilitando, em contrapartida, o desenvolvimento da região Norte do Brasil.
Em sentido diametralmente oposto, a mesma lei é objeto de severas críticas por parte de ambientalistas e ONGs ligadas à defesa do meio ambiente. Para estes, a Lei n. 11.952, de 2009 recebeu a alcunha de “lei da grilagem”. O Greenpeace Brasil, por exemplo, chegou a divulgar notícia em seu sítio na internet[2], com a seguinte manchete: “Grilagem na Amazônia vira lei: aprovada a MP que incentiva a destruição da floresta”.
Não é objeto do presente ensaio adotar postura defensiva ou ofensiva em relação a edição da Lei n. 11.952, de 2009. Pretende-se apenas trazer à discussão alguns pontos relevantes para a compreensão jurídica da matéria.
I – Política Agrícola, Fundiária e Reforma Agrária: introdução ao tema
A Lei n. 11.952, de 2009 admite a “concessão de direito real de uso” de forma gratuita, dispensada a licitação, para áreas ocupadas de até 1 (um) módulo fiscal. Para a “ocupação de área contínua acima de 1 (um) módulo fiscal e até 15 (quinze) módulos fiscais”, a lei prevê que “a alienação e a concessão de direito real de uso dar-se-ão de forma onerosa, dispensada a licitação”. A questão é a de compatibilizar tal alienação de terras públicas com os demais artigos constitucionais que dispõem sobre a concessão/alienação de bens públicos.
Com efeito, a Constituição Federal de 1988, em seu Título VII, Capítulo III, ao versar sobre a ordem economia e social, trata especificamente da “política agrícola e fundiária e da reforma agrária”. Todavia, é necessário compreender o real sentido das expressões “política agrícola”, de um lado, e “política fundiária e reforma agrária”, de outro.
O Decreto n. 55.891, de 31 de março de 1965 já traçava o conceito de “política agrícola” ao dispor em seu art. 1º, inciso II, que: “política agrícola” corresponde a “promoção das providências de amparo à propriedade rural, que se destinem a orientar, nos interesses da economia rural, as atividades agropecuárias, seja no sentido de garantir-lhes o pleno emprego, seja no de harmonizá-las com o processo de industrialização do País.”
Nesse passo, a expressão “política agrícola” deve ser compreendida de modo a englobar o conjunto de medidas tributárias, econômicas e de fomento que tenham por objetivo estimular o desenvolvimento da atividade agropecuária no país, produzindo riquezas e diminuindo a desigualdade social (tudo consoante previsão do art. 187 c/c art. 3º, II e III, ambos da CF/1988).
Em outro vértice, a noção de “política fundiária” está vinculada à atuação do Estado Brasileiro no trato da malha agrária do país. O Constituinte de 1988 decidiu que, no Brasil, a “política fundiária” teria como principal objetivo a implantação de uma efetiva “reforma agrária”. Exemplo disso é a previsão expressa de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, do imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social. O texto constitucional também afirma que a destinação de terras públicas “será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária” (arts. 184 e 188 da CF/1988)
Importante esclarecer que o termo “reforma agrária” compreende uma completa modificação da composição da propriedade rural nacional, extinguindo-se o latifúndio improdutivo - o qual deve dar lugar a médias e pequenas propriedades produtivas.
É com base nesta compreensão que Gustavo Elias Kallás Rezek[3] assevera que “a correção da estrutura fundiária distorcida se dá principalmente através da reforma agrária integral [...], concepção ampla que abarca todo o conjunto de medidas tendentes a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural, e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio”.
É por tal razão que as expressões “política fundiária” e “reforma agrária” não raramente são utilizadas como sinônimas, quando na verdade a “política fundiária” decorre de decisões de Governo, traçadas na persecução dos objetivos do Estado brasileiro, quais sejam, melhorar a “política agrícola” e implementar de forma efetiva a “reforma agrária”.
Mas o que se entende pela expressão “reforma agrária”? O Constitucionalista Pinto Ferreira, citado por Ana Paula Gularte Liberato[4], afirma que:
“Reforma Agrária é, pois, na acepção etimológica a mudança do estado agrário vigente. Mas uma mudança tem de operar-se em determinado sentido. Procura-se mudar o estado atual da situação agrária. Esse estado que se procura modificar é o do feudalismo agrário e da grande concentração agrária em benefício das massas trabalhadoras do campo. Por conseqüência, as leis de reforma agrária se opõem a um estado anterior de estrutura agrária que se procura modificar”.
Conclui-se, pois, que o termo “Reforma Agrária” comporta uma acepção ampla e por isso engloba em seu conceito o conjunto de medidas que visam promover uma melhor distribuição de terras, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade – conceituação retirada, inclusive, do art. 1º, § 1º, do Estatuto da Terra (Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964).
Veja que com o fim de implementar uma justa “política fundiária” (conceito já aclarado ao longo do presente ensaio ensaio), a própria Carta Federal estipulou uma série de instrumentos voltados à extinção do latifúndio improdutivo, v.g., previsão de ITR progressivo (art. 153, §4º, I), usucapião agrário especial (art. 191), cumprimento da função social da propriedade rural (art. 186), desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária (art. 184), destinação especial para as terras públicas e devolutas (art. 188), confisco de terras com culturas ilegais de psicotrópicos (art. 243), controle de aquisição de terras por estrangeiros (art. 190).
Perceber, então, que a redistribuição de terras por meio da desapropriação-sanção não é o único mecanismo de efetivação da reforma agrária. Existem diversos outros instrumentos/institutos jurídicos que poderão ser utilizados pelo Estado com o fito de cumprir a missão constitucional de promover a justa distribuição de terras no país.
Após a contextualização da matéria, passa-se a análise do tema específico, qual seja, a possibilidade de regularização fundiária das ocupações incidentes em áreas da União localizadas na Amazônia Legal.
II – “Regularização Fundiária”: conceito e natureza jurídica
Inicialmente, de bom tom relembrar as grandes alterações sofridas pelo “regime jurídico do direito de propriedade” ao longo dos tempos - que de direito absoluto passou a ostentar a natureza de um “poder-dever”. Com a evolução da natureza jurídica do direito de propriedade, o poder do proprietário só encontra sua plenitude se observado o correlato dever assumido perante a comunidade na qual ele se integra. O direito de propriedade encontra limites para o seu exercício, sempre em prol da coletividade. Surge a noção de “função social de propriedade”.
No Brasil o princípio da “função social da propriedade” galgou natureza constitucional com a Carta de 1969. O artigo 160, III, da CF/1969, elencava a função social da propriedade como princípio da ordem econômica e social. Na Constituição vigente a função social foi inserida no rol dos direitos e garantias individuais, no art. 5º, XXIII, redação repetida quando da indicação dos princípios diretores da atividade econômica (art. 170, III, CF/88).
E é no contexto de cumprimento da função social da propriedade, vetor que orienta a implantação da reforma agrária no Brasil, que se insere a possibilidade de “regularização fundiária”, regulada de forma especifica pela Lei n. 11.952, de 2009.
A “regularização fundiária”, então, é um instituto de cunho político-jurídico que tem como foco principal a legalização das ocupações (e construções) incidentes em áreas públicas urbanas ou em áreas rurais.
A regularização fundiária de ocupações incidentes em imóveis públicos rurais é um instrumento que visa implementar a política de reforma agrária, com o intuito de promover uma melhor distribuição de terras agricultáveis no país.
Como já dito algures, a Constituição Federal/1988 estipulou uma série de mecanismos voltados à promover a extinção do latifúndio improdutivo, v.g., previsão de ITR progressivo (art. 153, §4º, I), usucapião agrário especial (art. 191), cumprimento da função social da propriedade rural (art. 186), desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária (art. 184), destinação especial para as terras públicas e devolutas (art. 188), confisco de terras com culturas ilegais de psicotrópicos (art. 243), controle de aquisição de terras por estrangeiros (art. 190). A possibilidade de regularização fundiária é mais um dos institutos voltados a implementar uma melhor distribuição de terras.
De bom tom ressaltar que o instituto da regularização fundiária não encontra previsão expressa no texto constitucional. Assim, uma análise superficial das normas constitucionais poderia levar o intérprete ao entendimento equivocado de que existe vedação à regularização fundiária em nosso ordenamento constitucional, notadamente porque a Constituição Federal, em seu art. 191, parágrafo único, veda expressamente a aquisição de imóvel público por usucapião. Todavia, não é esta a melhor interpretação a ser conferida ao sistema jurídico brasileiro.
Já se apontou, no inicio da presente exposição, que a ocupação de bem público e sua posterior regularização é matéria hábil a despertar grandes divergências. Ocorre que, ao lado da preocupação com a preservação do erário (que guarda natureza de direito difuso) e mesmo diante da vedação constitucional prevista no art. 191, parágrafo único (que veda o usucapião de bens públicos), a possibilidade de “regularização fundiária” encontra guarida, ao menos de forma implícita, em nosso ordenamento constitucional.
Nesse sentido poder-se-á invocar como sustentáculo da regularização fundiária de bens públicos no Brasil o objetivo constitucional de se reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, CF/88), bem como o princípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CF/88).
Em mesmo passo, com o fim de justificar a constitucionalidade do instituto da “regularização fundiária”, pode-se evocar a “função social da propriedade”, princípio inserido no rol dos direitos e garantias individuais, no art. 5º, XXIII, CF/88, logo após da garantia do direito de propriedade.
Nesse contexto, deve-se perquirir se os imóveis rurais de propriedade da União, sejam eles compostos de terras ainda devolutas ou de terras já devidamente discriminadas e arrecadadas (mas desafetadas de qualquer fim específico), se submetem ao cumprimento da função social da propriedade, imposto pelos arts. 184/186 da Carta Magna de 1988.
O Estado estaria obrigado a cumprir o princípio constitucional da função social da propriedade? Tal questionamento se releva na esfera federal já que, como cediço, a União é proprietária de grandes extensões territoriais, notadamente na Região Norte do país.
Observe-se que na tentativa de garantir o cumprimento da função social da propriedade rural por parte do poder público o art. 188 da CF/1988 dispôs que as terras públicas federais (devolutas ou já discriminadas e arrecadadas) devem ter sua destinação voltada, preferencialmente, para o desenvolvimento da política agrícola e para propiciar uma melhor distribuição de terras por meio da reforma agrária.
Como já exaustivamente defendido o termo “reforma agrária” deve ser interpretado de forma ampla, conforme conceituado no art. 1º, § 1º do Estatuto da Terra, englobando o conjunto de medidas que visem a promover uma melhor distribuição de terras, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade (Estatuto da Terra, art. 1º, § 1º), conceito nitidamente ligado ao de “regularização fundiária”.
A regularização fundiária surge, pois, como um dos instrumentos de efetivação da reforma agrária! E é justamente dentro do contexto de função social da propriedade (aplicável inclusive ao Poder Público), visando promover a justa distribuição de terras (reforma agrária), que se pode defender a previsão constitucional implícita para permitir a regularização fundiária das ocupações incidentes em imóveis rurais da União.
Ocorre que traspassada a dificuldade inicial de situar juridicamente o instituto da “regularização fundiária” de ocupações incidentes em imóveis públicos, tendo em vista ausência de permissivo constitucional expresso, outro óbice surge quando nos deparamos com a forma prevista pela Constituição para possibilitar a transmissão de bens públicos para os particulares.
Isso porque, como cediço, com o fito de garantir a observância dos princípios que devem reger a atuação da administração pública (quais sejam o da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, entre outros), o art. 37, XXI, impôs a necessidade de realização de licitação para as obras, serviços, compras e alienações de bens públicos, visando assegurar a igualdade de condições entre os concorrentes – tudo com o intuito de moralizar a gestão administrativa.
Para regular o procedimento licitatório foi editada a Lei nº 8.666, de 1993, legislação aplicável à administração direta e indireta, estabelecendo as normas gerais sobre licitação e contratos administrativos. Como, então, permitir-se a regularização fundiária das ocupações incidentes em imóveis rurais da União sem malferir o art. 37, XXI, da CF/1988?
Em verdade, a regularização fundiária de imóveis rurais é um dos instrumentos utilizados pelo Estado com o objetivo de efetivar a reforma agrária – tudo com espeque no art. 188 da Carta Magna. Ademais, a regularização fundiária visa legalizar a situação do ocupante que já possui o domínio direto da área pública, conferindo o devido cumprimento à função social do imóvel rural – o que per si já demonstra certa incompatibilidade com o procedimento licitatório.
Não obstante, para viabilizar a regularização fundiária sem violação da constituição federal, não restou alternativa ao legislador pátrio senão proceder a uma indispensável alteração da redação conferida à Lei n. 8.666/93, inserindo em seu art. 17, disposição que possibilita a expedição de título de propriedade ou de concessão de direito real de uso, dispensado o procedimento licitatório, para aqueles ocupantes de imóvel público rural que preencham os requisitos constantes da lei. Nesse sentido, veja a redação do art. 39 da Lei n. 11.952, de 25 de junho de 2009:
Art. 39. A Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 17. ........................................................................
I - ....................................................................................
i) alienação e concessão de direito real de uso, gratuita ou onerosa, de terras públicas rurais da União na Amazônia Legal onde incidam ocupações até o limite de 15 (quinze) módulos fiscais ou 1.500ha (mil e quinhentos hectares), para fins de regularização fundiária, atendidos os requisitos legais;
................................................................
§ 2º ..........................................................
..................................................................
II - a pessoa natural que, nos termos da lei, regulamento ou ato normativo do órgão competente, haja implementado os requisitos mínimos de cultura, ocupação mansa e pacífica e exploração direta sobre área rural situada na Amazônia Legal, superior a 1 (um) módulo fiscal e limitada a 15 (quinze) módulos fiscais, desde que não exceda 1.500ha (mil e quinhentos hectares);
................................................................
§ 2º-A. As hipóteses do inciso II do § 2o ficam dispensadas de autorização legislativa, porém submetem-se aos seguintes condicionamentos:
................................................................” (NR)
Mas ressalte-se que a possibilidade de regularização fundiária de ocupação incidente em imóvel público, aliada a dispensa de procedimento licitatório, é medida que só se justifica com o fito de cumprir o objetivo constitucional de se reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, CF/88), bem como em atenção ao princípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CF/88). Caso contrário estar-se-ia a violar, sem qualquer razão legítima, os princípios que devem reger a atuação da administração pública (notadamente o principio da impessoalidade e da moralidade)!
Bem assim, quando voltada a reger a situação de ocupações incidentes em áreas rurais, deve-se procurar compatibilizar a regularização fundiária com os demais princípios de política fundiária e da reforma agrária, sob pena de caracterização de desvio de finalidade e de inconstitucionalidade!
Como dito algures, para que se justifique a legalidade (e especialmente a constitucionalidade) da utilização do instituto de regularização fundiária em sede de ocupações incidentes em imóveis rurais públicos, notadamente pela dispensa de procedimento licitatório, não se tem como afastar a observância dos requisitos constitucionais que regem a política agrícola e a reforma agrária.
Nesse passo, além dos diversos requisitos existentes em legislação específica (a exemplo da cultura efetiva, ocupação e exploração direta, mansa e pacífica, entre outros) – e que condicionam o seu cumprimento à possibilidade de regularização da ocupação sem a necessidade de procedimento licitatório – deve-se observar os artigos constitucionais que regem a política agrícola e fundiária e reforma agrária (especialmente os artigos 188 e 189), sob pena de desvio de finalidade.
Nesse ponto acredito que louvável foi a previsão contida no art. 15, § 3º, da Lei n. 11.952/2009, ao prever que “os títulos referentes às áreas de até 4 (quatro) módulos fiscais serão intransferíveis e inegociáveis por ato inter vivos” pelo prazo de 10 anos (prazo previsto no caput do art. 15).
Isso porque, pelo exposto acima, acredita-se que a expedição de título de domínio, em sede de regularização fundiária deve observar, realmente, a cláusula de “inalienabilidade decenal” inserida no art. 189 da Constituição Federal – sob pena de malferir artigo constitucional voltado a reger a reforma agrária.
Ressalto, todavia, que a referida Lei n. 11.952/2009 estabeleceu prazo diferenciado para transferência dos títulos de domínio recebidos pelos ocupantes de áreas “superiores a 4 (quatro) módulos fiscais”, “se a transferência for a terceiro que preencha os requisitos previstos em regulamento”. Assim, para esses ocupantes, o prazo para negociabilidade do título de domínio será de 03 (três) anos - art. 15, § 4º da citada Lei.
Destaque-se que existe Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI n. 4269) em curso perante o Supremo Tribunal Federal, questionando, entre outros aspectos, a constitucionalidade dos §§ 3º e 4º da Lei n. 11.952/2009, por “violação da igualdade e desvio de Poder Legislativo”. Por oportuno, destaque-se brano da inicial da referida ação, onde a Procuradora Geral da República assevera que:
“46.Da leitura dos §§ 3º e 4º do art. 15 da Lei n. 11952/2009, acima transcritos, percebe-se que, em relação às áreas regularizadas de até 4 (quatro) módulos fiscais, o prazo de inalienabilidade fixado pelo legislador é de 10 (dez) anos, mas para as áreas que tenham entre 4 (quatro) e 15 (quinze) módulos fiscais, este prazo é de apenas 3 (três) anos.
47. Qual a justificativa para esta diferenciação, que trata de maneira muito mais favorável os que adquirem terras maiores em relação àqueles que recebem áreas menores? Não há, aqui, qualquer justificativa legítima, calcada em interesse público. Pelo contrário, tem-se uma flagrante discriminação, que beneficia os que menos precisam, e ainda favorece a especulação imobiliária da Amazônia, às custas do patrimônio público.”
Realmente, como já destacado a Lei n. 11.952/2009 preocupou-se em seguir o mandamento constitucional previsto no art. 189 da CF/1988 – que impõe cláusula de “inalienabilidade decenal” - apenas para o pequeno produtor, que detiver área de até 4 módulos fiscais. Para os demais, ocupantes de áreas maiores (médias propriedades) existiria permissão de transferência de domínio das terras concedidas em prazo bem menor: de apenas 3 anos.
A peça inaugural da ADI n. 4269 não se ateve a estudar a natureza jurídica da regularização fundiária bem como a necessidade de compatibilizar tal instituto com as normas constitucionais que regem a política agrícola e fundiária e a reforma agrária. Todavia, atentou-se para a violação do princípio da isonomia tendo em vista o tratamento díspare e sem qualquer justificativa conferido pela Lei n. 11.952/2009 ao pequeno e ao médio ocupante de terra pública.
Ainda não houve pronunciamento de mérito do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. Espera-se, todavia, que seja igualado o prazo para transmissão do título de domínio concedido aos ocupantes de terras públicas em razão da Lei n. 11.952/2009, observando-se o que dispõe o art. 189 da constituição federal.
Caso contrário, teme-se que o instituto da regularização fundiária de áreas ocupadas na Amazônia Legal seja desvirtuado, servindo de estímulo à grilagem e ao “mercado de terras” na Região Norte do país – o que poderá favorecer, inclusive, a reconcentração de terras naquela região!
Por todo o exposto pode-se concluir que:
O princípio da função social da propriedade também é aplicável aos imóveis públicos urbanos e rurais de propriedade do Estado.
Especialmente na Região Norte do país, a insegurança fundiária tem gerado notória violência e se mostrado um entrave para o desenvolvimento da sociedade.
Apesar da ausência de permissivo constitucional expresso, é possível alcançar uma interpretação constitucional que, conciliando as aparentes barreiras constantes do art. 191, parágrafo único, e do art. 37, XXI, permita a regularização fundiária de ocupações incidentes em imóveis rurais, mediante a concessão direta de título de domínio.
A constitucionalidade da regularização fundiária só se sustenta diante do princípio da função social da propriedade (art. 5º, XXIII e art. 170, III, CF/88), como instrumento utilizado pela Reforma Agrária (Título VII, Capítulo III, da CF/88), com o fim de se atingir o objetivo constante do art. 3º, III, qual seja, a redução das desigualdades sociais e regionais, levando-se em conta, igualmente, o princípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CF/88).
Não se sustenta a dispensa de procedimento licitatório, privilegiando o particular que ocupa até então irregularmente bem público (e em detrimento de outros interessados) se o beneficiário não se comprometer a continuar a cumprir a função social do imóvel por um período de tempo razoável.
Ademais, de bom tom condicionar a possibilidade de regularização com o cumprimento de requisitos que visem a garantir o atendimento da função social da propriedade e a justa distribuição de terras. Isso porque a regularização fundiária não pode ser vista como incentivo para a ocupação desenfreada de áreas públicas. Nesse ponto, lembre-se que especialmente na Região Norte ainda existem grandes áreas públicas, distantes da presença efetiva do Estado, sujeitas a atuação de grileiros de terras.
Por outro lado, não é demasiado lembrar que o patrimônio público é um interesse público primário (patrimônio do povo e não do Governo), direito difuso de toda a sociedade.
Alerte-se, ainda, para a possibilidade de a regularização fundiária, quando desvirtuada de seus objetivos, tornar-se instrumento que favorece a reconcentração de terras no Brasil.
Lembre-se que, malgrado a grande extensão territorial do Brasil, as terras agricultáveis são um meio de produção limitado e finito. Se afigura um contra-senso regularizar a ocupação em áreas públicas, concedendo título de domínio para particulares sem observância dos princípios que regem a reforma agrária para, em momento posterior, obrigar o Estado a desapropriar referidas áreas para fins de reforma agrária (pagando-se indenizações milionárias).
Por derradeiro, ousa-se a afirmar que a possibilidade de regularização fundiária por meio de titulação direta (concessão de título de propriedade, dispensado o procedimento licitatório) só se justifica diante dos princípios que regem a reforma agrária e após a demonstração dos requisitos indispensáveis à comprovação da função social da propriedade rural (sob pena de inconstitucionalidade e desvio de finalidade).
Essa conclusão não impede a existência concomitante de formas de “legalização” de ocupação, tendo em vista o interesse público, a exemplo da concessão de direito real de uso e de licença de ocupação, mediante licitação, onde seja assegurado o “direito de preferência” ao ocupante. Nesse caso, garantindo-se a igualdade de oportunidades, não haveria problemas em se liberar a cláusula de inalienabilidade decenal.
[1] Lembre-se que o Governo Militar, utilizando-se de um discurso nacionalista, já incentivava a ocupação da Amazônia. Registros históricos apontam que em 1966 o Presidente Castelo Branco teria defendido a tese de “Integrar par não Entregar”.
Grandes obras, como a rodovia Transamazônica datam dessa época. Criou-se a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) – entidade por meio da qual o governo oferece incentivos aos interessados em produzir na região.
[2] Vide notícia constante no endereço eletrônico http://www.greenpeace.org/brasil/amazonia/noticias/grilagem-na-amaz-nia-vira-lei
[3] Imóvel Agrário – Agrariedade, Ruralidade e Rusticidade. Juruá Editora. 2007. Pág. 149.
[4] Reforma Agrária – Direito Humano Fundamental. Juruá Editora. 2006. Pág. 54.
Procuradora Federal .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAGA, Maíra Esteves. Regularização Fundiária na Amazônia Legal: alguns aspectos relevantes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39877/regularizacao-fundiaria-na-amazonia-legal-alguns-aspectos-relevantes. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Medge Naeli Ribeiro Schonholzer
Por: VAGNER LUCIANO COELHO DE LIMA ANDRADE
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