Resumo: O presente artigo traz um breve panorama de algumas das principais teorias a respeito do direito animal, desde a cultura cosmocêntrica grega, passando pelo antropocentrismo consagrado pelos socráticos, confirmado pela Escolástica e levado ao seu extremo pelo movimento renascentista. Ressalta, ainda, as primeiras teorias em defesa dos direitos dos animais, o que possibilitaria uma evolução semântica no contexto do direito animal, causando, inclusive, uma “irritação” do sistema política, que responde através da produção das legislações protetivas do direito animal. Por fim, descreve a evolução da legislação em proteção aos animais no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras chaves: Direito. Animal. Sujeito de direito.
Sumário: Introdução. 1. Antropocentrismo grego: animais como seres a serviço dos homens. 2. Império romano: do animal como res ao animal sujeito processual. 3. Escolástica: sobre necessária hierarquia entre as criaturas. 4. Renascimento e a teoria do animal máquina. 5. As primeiras teorias em defesa do direito dos animais. 6. Evolução da legislação protetiva dos animais no Brasil. Conclusão.
Introdução
O presente artigo pretende trazer um sintético panorama de algumas das mais importantes teorias a respeito da relação homem e animal no decorrer da história da civilização ocidental. Claro que tal pretensão não se pretende holística e, muito menos, exauriente, mas acreditamos ser importante ressaltar como a comunicação com relação ao reconhecimento dos direitos dos animais chegou ao atual patamar.
Inicialmente, descreveremos a superação da cultura cosmocêntrica dos chamados “filósofos da natureza” pelo antropocentrismo iniciado pelos sofistas e consagrado pelos Socráticos, que colocavam os animais na posição de escravos dos homens, dentro de uma estrutura societária estamental.
Após, será ressalto o aspecto patrimonial que os animais adquirem no direito romano, os animais, passando a serem considerados como res, como coisas, recebendo o mesmo regime jurídico conferido aos objetos inanimados e à propriedade privada.
No que diz respeito à Escolástica, demonstraremos como Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino retomaram a teoria helênica da grande cadeia da vida, voltando a ressaltar que os animais seriam seres imperfeitos, destituídos de espírito, devendo, pois, estar a serviço do ser perfeito e racional: o homem.
Ressaltaremos, ainda, que a centralidade do homem no interior da natureza permanece como dogma Renascentista e Iluminista, mas alguns nomes irão encampar as primeiras defesas dos direitos dos animais, dentre eles: Voltaire, Rousseau, Leonardo da Vinci, José do Patrocínio, Osvaldo Orico e Olavo Bilac, o que possibilitaria uma evolução semântica no contexto do direito animal, causando, inclusive, uma “irritação” do sistema política, que responde através da produção das legislações protetivas do direito animal.
Por fim, descreveremos a evolução da legislação em proteção aos animais no ordenamento jurídico brasileiro.
1 Antropocentrismo grego: animais como seres a serviço dos homens
A tradição ocidental, marcada pela instrumentalização do sentido das coisas (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 24), desde muito cedo excluiu os animais de quaisquer considerações morais, sendo os sofistas gregos os primeiros a se afastarem da perspectiva cosmocêntrica defendida pelos chamados pensadores pré-socráticos ou filósofos da natureza.
Esclarecendo o que se entende por cultura cosmocêntrica, remontamos à Escola de Mileto, para a qual a vida seria uma contínua transformação, defendendo a dinâmica das coisas, a evolução das espécies e, sobretudo, a origem animal do homem, nos mostrando “uma dimensão do pensamento mais originária do que as dicotomias e dualismos que marcaram o desenvolvimento da filosofia ocidental” (UNGER in CARVALHO; GRÜN; TRAJBER, 2009, p. 25).
Neste contexto, o homem seria parte integrante do Cosmos, do Universo, não possuindo qualquer tipo de autonomia diante da imensidão. Mesmo as construções teóricas a respeito da nomos (lei), considerada aspecto essencial da vida civilizada, fundamento da polis grega, desenvolviam-se com base nas leis da natureza. Neste diapasão, “a justiça do Estado se confundia com as leis da natureza, uma vez que o homem, imerso na totalidade do cosmo, obedecia às leis físicas ou religiosas que o regiam. Esta concepção é um jusnaturalismo cosmológico” (DIAS, 2004, p. 1).
Dizemos que estes pensadores anteriores a Sócrates são pensadores originários porque se debruçaram sobre a origem de todas as coisas, o princípio, a arché da physis. Pertenceria à physis o céu, a terra, o sol, o homem, os deuses, o animal, a planta, ou seja, tudo aquilo que é. Esse “é” constituiria, portanto, o princípio unificador de uma totalidade aberta, correspondendo ao próprio processo de surgir, de parecer e perdurar por um tempo, dito de outra forma, esse processo se revelaria como Cosmos (UNGER in CARVALHO; GRÜN; TRAJBER, 2009, p. 26-27).
Em síntese:
(...) os pensadores da Antiguidade nunca separavam sentimento e conhecimento. O sentimento panteísta pré-cristão concebia o cosmos como uma força viva exprimindo-se de igual modo em cada criatura. Portanto, homens e animais compartilhavam qualidades que posteriormente passaram a ser atribuídas exclusivamente aos homens tais como inteligência, razão, sensibilidade. Para o homem antigo, os animais possuíam não apenas qualidades estéticas superiores mas também faculdades cognitivas e sensitivas extremamente aguçadas como por exemplo uma capacidade de observação e de previsão que nós homens estamos longe de possuir. Muitos pensadores antigos davam uma igual dignidade ontológica a todos os seres vivos (DOWELL, 2008, p. 20).
Diferentemente desta perspectiva cosmocêntrica, sofistas como Protágoras debruçaram-se unicamente sobre a questão do homem, fazendo nascer a cultura antropocêntrica, deslocando a questão do conhecimento do cosmos para o homem, que passa a ser referencial de medida para todas as coisas, das que são como são e das que não são como não são (MARCONDES, 2004, p. 44).
Firmado o discurso sofistico e inaugurado o humanismo grego, a vida do animal passa a ter uma única finalidade: a de servir o homem. Apesar da ferrenha crítica ao relativismo sofista, os filósofos socráticos caminharam em sentindo semelhando no que diz respeito à importância do humanismo, afirmando Sócrates que a questão fundamental da filosofia não corresponderia à compreensão da natureza e de seus fenômenos, mas se relacionava com o estudo do homem em sociedade (LEVAI, 2004, p. 18). É a famosa máxima do “conhece-te a ti mesmo”, que difunde inquestionavelmente a concepção de conhecimento a partir do próprio homem.
Neste contexto, o homem passa a ser objeto de si mesmo, reconhecendo-se livre, o que não aconteceria com os animais que não podem exercitar esse autoconhecimento. Não se sabendo livres, os animais se colocariam na posição de escravos, contentando-se com a escravidão, uma vez que são incapazes de pensar como um “eu”, podendo ser controlados através do medo e da dor (SANTANA, 2006, p. 54).
Mais do que isso, os homens se diferenciariam dos animais por seu espírito. Segundo a concepção socrática, todos os animais possuiriam alma, mas apenas o homem teria um espírito. Além disso, acreditava-se que no corpo dos animais teria abrigo a alma de homens não virtuosos. No diálogo atribuído a Sócrates por Platão, temos esse entendimento explicitado de forma clara:
Sim, sem dúvida, Cebes; e é muito verossímil também que não sejam as almas dos bons, mas sim as almas dos maus que são obrigadas a vagar por esses lugares onde pagam a pena de sua primeira vida, que foi má, e onde continuam vagando até que, pelo amor que têm a essa massa corpórea que as segue sempre, vêm a se unir aos mesmos costumes que foram a ocupação de sua primeira vida. – Como é isso Sócrates? - Digo, por exemplo, Cebes, que aqueles que gozaram apenas a intemperança sem pudor, sem nenhuma contenção, entram realmente nos corpos de asnos e animais semelhantes, não crês? (PLATÃO, 1981, p. 53)
Trilhando caminho semelhante ao seu mestre, Platão também distingue entre três espécies de alma, que seriam de um lado o desejo e a disposição, presentes nos homens, crianças, escravos e animais, que permite a compreensão de pensamentos simples como “meu senhor está vindo em minha direção”; e, de outro, o pensamento, exclusividade dos homens. Desta forma, a alma teria o sentido de substância ou causa, sendo vista como “a mais importante atuação de um corpo com uma vida em potência, mas que, diferentemente do espírito, não pode dele separar-se, já que constitui a sua própria atividade. A alma, portanto, é a própria vida, estando para o corpo como a visão para o aparelho ótico” (ABAGNANO, 1982, p. 25).
Mantendo os mesmos pressupostos de Platão quanto à existência da alma, Aristóteles entendeu que o espírito seria uma espécie de alma intelectual, que poderia ser subdividida em espírito passivo, que se relacionaria com a alma sensitiva; e em espírito ativo, que produziria o pensamento, “assim como a luz conduz as cores do estado de potência ao ato” (ARISTÓTELES, 2001, p. 112-113). Portanto, desprovidos da alma sensitiva, não possuindo intelecção ou raciocínio, os animais não mereceriam qualquer consideração ética.
Segundo a concepção aristotélica, os animais possuiriam alma sensitiva, uma vez que possuem sentimentos, mas não possuiriam alma imaginativa, a inteligência, pertencente exclusivamente ao homem, único capaz de elaborar um discurso e de viver na polis. Sendo assim, a superioridade do homem em relação ao animal se daria, sobretudo, pelo dom da palavra, sendo natural, portanto, o domínio do homem sobre o animal, da mesma forma que também seria natural o domínio do de um homem que só tem força física por aquele que tem ideias. Nesse contexto de dominação, o animal se inclui na sociedade de forma equiparada ao escravo. Em suas próprias palavras: “A família se formou da mulher e do boi feito para lavra. O boi serve de escravo aos pobres” (ARISTÓTELES, 1951, p. XLV).
A grande cadeia dos seres criada com base nessa lógica de dominação faz o homem grego aparecer logo após os deuses, que estariam em seu topo, seguindo da mulher, das crianças, dos loucos e dos escravos, em ordem decrescente de parcela de espirito racional. Por fim, na base da pirâmide, encontram-se os animais, que não possuiriam espírito. Neste contexto, os seres que se posicionam na base da cadeia existiriam para servir aos que se encontram nos degraus mais elevados. Dessa forma, a posição dada aos animais é ainda mais penosa, uma vez que, embora reconheça que eles sintam dor e prazer, aprendam e experimentem os fenômenos, Aristóteles defende que eles são privados de um mundo espiritual, sendo incapazes de distinguir um ato de justiça e um ato de injustiça, não merecendo qualquer consideração moral (ARISTÓTELES, 2001, p. 114).
Comentando Aristóteles, Luhmann (2007, p. 728) esclarece que:
Coincidindo com as plausibilidades de uma ordem de sociedade estratificada e com a forma de cidade organizada, Aristóteles dita: “Em tudo o que é composto de parte e nasce delas para chegar a ser uma unidade comum (hén ti koinón)- seja de partes relacionadas ou separadas – sempre se apresenta também algo governante (to árchon) e algo governado (to archómenon)”. Para isso, Aristóteles apela maciçamente à natureza, à necessidade e à utilidade – e para a desigualdade só faz valer como argumento de justiça que as melhores partes são as que governam.
O homem pode, portanto, distinguir-se de outros seres e seu lugar no cosmos pode se determinar mediante estas distinções, uma vez que a ordem social de sua vida é manifestação da sua natureza. Se, por um lado, a natureza dá ao homem algumas características em comum com os demais animais, como a percepção sensorial, o movimento ou mesmo a morte, de outro lado, a natureza dota o homem daquela peculiaridade que o distingue dos demais e que a tradição chama de “razão”.
Em síntese, podemos concluir que o determinismo helênico partia do pressuposto de que todos os processos naturais estariam dirigidos a um determinado fim, definindo-se em função dele. A própria vida nada mais seria do que a realização de todas as possibilidades de existência que se contêm em potência nas ideias que correspondem às novas formas vivas. A natureza, portanto, seria uma grande ordem, dentro da qual cada uma das formas vivas ocuparia uma posição rígida e fixa, de forma a confirmar a imobilidade da grande cadeia do ser (ARAÚJO, 2003, p. 47).
Mesmo os estoicos, defensores da ideia de que todos os seres vivos são parte integrante da ratio universal, estando sujeitos ao mesmo Deus e à mesma lei, fizeram a ressalva de que a justiça estaria reservada apenas aos seres racionais, excluindo os animais desse universo (DIAS, 2004, p. 1). Neste contexto, “como o que distingue os seres humanos dos animais e os fazem participar da natureza divina é a razão, toda vida natural é sempre vida irracional e por isso os animais não podem ser incluídos na esfera da moralidade” (SANTANA, 2006, p. 50).
Conclui-se, portanto, que o patrimônio conceitual da sociedade helênica, ou seja, o conjunto de formas utilizáveis para a função de seleção dos conteúdos de sentido, não possui o tema direito subjetivo animal à disposição para emissão da comunicação. Dito de outra forma, o conceito de direito animal não faz parte dos significados de sentido condensados e reutilizáveis que está disponível para a emissão da comunicação.[1]
2. Império romano: do animal como res ao animal sujeito processual
Caminhando um pouco mais adiante na história, o trabalho dos jurisconsultos romanos, influenciado pelo estoicismo, possibilitou a difusão do ordenamento jurídico romano pelo ocidente, inserindo os animais num contexto privatista em que a noção do direito alcançaria apenas os homens em sociedade.
A concepção romana reduz o direito à realidade, caracterizando-o fundamentalmente por seu caráter objetivo, em algo externo ao sujeito, como a partilha de bens materiais, dentre os quais estavam os animais, que passaram a serem considerados como res, como coisas, recebendo o mesmo regime jurídico conferido aos objetos inanimados e à propriedade privada (LEVAI, 2004, p. 19).
Neste contexto, duas seriam as classes de animais, a depender do interesse econômico que se tinha sobre eles. Os animais domésticos, de tração e carga eram classificados como res mancipi, ou seja, coisa passível de apropriação para fins econômicos e socioculturais. Já os animais silvestres eram classificados como res nec mancipi, que significa coisa não passível de apropriação. Num momento posterior, época em que o Império Bizantino preservou a tradição jurídica romana, houve uma modificação dessa forma de classificação dos animais, que passaram a ser considerados como bens móveis e semoventes, conforme previa uma Constitutio de Justiniano, do ano de 531 D.C; ou como res nullius, coisa de ninguém, a exemplo dos animais silvestres, ou, ainda, res derelicta, coisa abandonada por seus proprietários que, renunciando a seu direito de propriedade, possibilitariam que outros viessem a adquirir a propriedade originária (ALVES, 1999, p.140-147).
O interesse econômico nos animais se tornou ainda mais intenso com a conhecida política do pão e circo, desenvolvida por Roma. Objetivando desviar a atenção da população dos reais problemas enfrentados pelo Império Romano, surgem formas de entretenimento do grande público que se utilizam dos animais. Primeiramente o Circo Máximo de Roma e, um pouco depois, o imenso Coliseu, foram cenário para exibição de animais exóticos, dentre outras raridades e excentricidades. “No período de perseguição ao cristianismo, as arenas foram ocupadas por espetáculos de violência, como a sangrenta entrega de cristãos a felinos” (MARTINS, 2008, p. 119).
Sobre o tema, esclarece Jamieson (2008, p. 51) que:
Os Romanos, por exemplo, mantinham animais como isca viva para os jogos. Seu entusiasmo para os jogos era tanto que até os primeiros tigres levados a Roma, presente para Augustos César de um governante indiano, iriam para arena. O imperador Trajan durou 123 dias consecutivos de jogos para celebrar a conquista de Dácia. Durante os jogos, onze mil animais foram sacrificados, incluindo, leões, tigres, elefantes, rinocerontes, hipopótamos, girafas, búfalos, renas, crocodilos e serpentes. Os jogos eram populares em todas as partes do Império. Quase todas as cidades tinham uma arena e coleções de animais para colocar nela. Na França do século V, havia vinte e seis arenas que continuaram a triunfar até o final do século VIII.
Com a queda do Império Romano, a influência das superstições dos povos ditos bárbaros produz uma radical mudança no tratamento dos animais pelo direito, reconhecendo-lhes uma capacidade processual, tanto no âmbito cível, possibilitando sua responsabilização por danos materiais causados, quanto no âmbito penal, sendo-lhes imputados os crimes cometidos, a exemplo dos casos de atentados à vida humana. Sobre o tema, Azkoul (1995, p. 27) esclarece que:
Durante a época dos bárbaros os animais foram incluídos na relação de direitos comuns, a qual sempre regulou as relações de pessoas na atualidade. Sendo certo que o animal na atualidade é irresponsável pelos próprios atos, respondendo por eles aqueles titulares que têm sob sua guarda o referido animal. A contra senso, antigamente, caso o animal cometesse uma falta devia ser punido; no entanto, eram-lhes reconhecidos direitos legais de serem assistidos por advogados e todos os meios de provas admitidas.
Neste momento histórico particular, houve, portanto, uma igualdade de tratamento, ao menos processual, entre homens e animais, submetendo-lhes aos mesmos suplícios, como a prisão e a pena de morte. Contudo, tal tratamento deriva não do desenvolvimento de uma consideração moral para com o animal, mas sim de um conjunto de fatores típicos do início da Idade Média, como a forte crença em superstições ou, ainda, como forma de justificar os males que recaiam sobre a sociedade da época, que exigiam uma resposta perante a população faminta e miserável.
Desse modo, a Igreja e a nobreza feudal, que, dentro do modelo pluralista do medievo, criavam e aplicavam normas de conduta, buscaram responsabilizar pelos males da sociedade qualquer tipo de seres, até mesmo os inanimados. Homens, ratos, insetos e até mesmo pedras foram responsabilizados juridicamente pelas pragas e outros males que assolavam a Europa da época, como forma de expiar o mal (SANTANA; OLIVEIRA, 2006, p. 78).
Este tratamento processual isonômico de homens e animais é explicado em detalhes por Azkoul (1995, p. 29-31):
Poderia se interrogar como poderiam os animais responder a quaisquer processos judiciais se, durante o Medievo, mal havia se fortalecido o Estado Nacional? Sucede que durante a Idade Média, por razões históricas, a autoridade jurisdicional era distribuída entre a Igreja Católica, ente supranacional que predominava na época e que herdara a processualística romana, e os Feudos, cujo direito era extremamente casuístico, salvo pouquíssimas exceções que tentavam aplicar alguns institutos do Direito Romano adequando-o à realidade local. Assim, boa parte dos processos contra animais tramitavam nas instâncias judiciais eclesiásticas, havendo, primeiro, uma fase pré-processual com a autoridade religiosa do lugar, um padre, por exemplo, proferindo maldições contra os animais que causassem quaisquer danos materiais, em casos que não haviam atentado direto à vida humana, pois estes implicavam em imediata prisão do animal. Em seguida, era redigida uma petição ao juiz eclesiástico o qual oficiava o Promotor de Justiça para acompanhar os autores da ação e nomeava um advogado dos réus. “Os animais eram citados e intimados a comparecer ao tribunal” e caso não comparecessem após a terceira citação, eram condenados por revelia, sendo aplicada a pena de expulsão, ao mesmo tempo em que o advogado dos animais recorreria da decisão, fazendo as alegações que entendesse pertinentes, cabendo ao Promotor de Justiça replica-las, reafirmando a condenação.
Pode-se pensar, equivocadamente, que, sendo equiparados em responsabilidade, homens e animais possuiriam os mesmos direitos. Sendo assim, tanto deveria ser punido o animal que lesionasse o homem, quanto o homem que lesionasse o animal. Mas não era assim que ocorria, pois só haveria crime se um animal lesasse um ser humano, visto que o “seu gesto representava objectivamente uma insurreição contra a ordem hierárquica estabelecida pelo Criador, que colocava o homem numa posição incomensuravelmente superior à dos não-humanos, uma posição valorativamente inexpugnável” (ARAÚJO, 2003, p. 75). O julgamento dos animais ainda tinha outro objetivo prático: servia como advertência para que os humanos não atentassem contra a hierarquia e estratificação social, caracterizadoras da época medieval.
Esta concepção define os lugares apropriados para todos os estratos da ordem hierárquica por meio de três dicotomias que tendem a convergir: todo/parte; mais alto/mais baixo e fins/meios, tendo sido introduzidas por Aristóteles, como vimos, e utilizada como fórmula de coerência no marco geral de uma cosmologia religiosa, como em Tomás de Aquino, conforme veremos (LUHMANN, 1998, p. 77).
Vê-se, portanto, que não houve uma real modificação no conteúdo do sentido do conceito de animal durante a Idade Média, muito embora tenha havido um tratamento processual igualitário. O patrimônio semântico do medievo se manteve praticamente inalterado, o que podemos atribuir à filosofia clássica, sobretudo às ideias de Platão e Aristóteles, incorporadas pela Igreja Católica, que insistiu no aspecto teleológico da vida animal, que ocuparia uma posição estanque na base da grande cadeia do ser, conforme vermos a seguir. Ou seja, “a distinção ser - humano/animal ocupou o lugar que hoje gostaríamos que ocupasse uma teoria da sociedade. É precisamente neste sentido de autodescrição da sociedade que a antiga Europa se concebe humanisticamente” (LUHMANN, 2007, p. 740-741).
3. Escolástica: sobre necessária hierarquia entre as criaturas
Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, retomando a teoria helênica da grande cadeia da vida, voltam a ressaltar que o pensamento é um atributo espiritual exclusivo do homem, que corresponde à diferença fundamental entre o ser humano e os demais seres animados. Sendo os animais seres imperfeitos, destituídos de espírito, deveriam estar a serviço do ser perfeito e racional. Não possuindo capacidade de pensar, os animais não poderiam, através do livre arbítrio, participar do acordo político.
Para Agostinho, não existe pecado em matar um animal, pois a providência divina permite o uso dos demais seres pelo homem, uma vez que a Lei estabeleceria uma necessária hierarquia entre as criaturas. Tal concepção encontra respaldo no dogma cristão de que Deus outorgou ao homem o domínio sobre todas as criaturas vivas. Segundo o Livro Gênesis (1995, p. 33-34, vers. 26-30):
E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.
E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.
E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento.
E a todo o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento; e assim foi.
Em sua obra “Sobre a potencialidade da alma”, Agostinho se propõe a responder os questionamentos de seu aluno Evódio, sobretudo no que diz respeito à origem e à natureza da alma humana. Utilizando-se da maiêutica socrática, Agostinho desenvolve o tema por meio de perguntas e, utilizando-se da argumentação e da retórica, leva o seu Evódio a induzir e deduzir por ele mesmo o que seria a verdade.
Uma das conclusões a que chega Evódio é a de que o animal tem alma, mas não tem espírito, o animal sente, mas não sabe disso. Nas palavras de Agostinho, muitos animais “superam o homem no uso de determinados sentidos do corpo, e não é esta a hora de estudar o fato. Mas Deus nos colocou acima dos irracionais, concedendo-nos a mente, a razão e o entendimento.” (AGOSTINHO, 2005, p. 129). Pressupondo a superioridade dos homens sobre os animais, Agostinho conclui que, “por justíssima ordenação do Criador, a vida e a morte das plantas e dos animais está subordinada ao homem” (AGOSTINHO, 2002, p. 126).
Reforçando o teleologismo escolástico, Tomás de Aquino defende que, assim como os pulmões existem para o benefício do coração, todas as partes do universo são destinadas ao benefício do todo, da mesma forma que:
(...) a substância intelectual utiliza as demais em seu próprio benefício, para a perfeição do intelecto, que vê a verdade como em um espelho, ou para a execução do poder e desenvolvimento deste conhecimento, e da mesma forma que um artesão desenvolve a concepção de sua arte na matéria corpórea, o homem sustenta o seu corpo através de uma alma intelectual (SANTANA, 2006, p. 51).
Com fundamento neste dogma é que Tomás de Aquino, em seu “Tratado de justiça”, afirmou que “ninguém peca por usar uma coisa para o fim a que foi feita. As plantas vivem em função dos animais e os animais das plantas” (AQUINO apud DIAS, 2004). Analisando a tese de Agostinho sobre a não aplicabilidade do mandamento do 5º mandamento (não matarás) aos animais, Tomás de Aquino concorda com seu antecessor, invocando para tanto a “ordem das coisas”, que faz dos animais meros sujeitos mecânicos de leis causais, naturalmente escravizados aos interesses do homem (ARAÚJO, 2003, p. 55).
Percebe-se, portanto, que as formas semânticas expressadas por Aquino e Agostinho são orientadas a fins. Sobre o assunto Luhmann esclarece que, depois do alfabeto, se descobre a teologia como uma possibilidade de ordenar materiais que se tornam mais complexos quando expostos ao tempo. A ideia era a de que os movimentos naturais possuíam um fim natural, um modo de estado de perfeição, que uma vez alcançado, descansam, mas o incremento de possibilidades de comparação e controle através da impressão sabota essa lógica teleológica (2007, p. 321).
De um lado, a orientação sobre um fim temporal e o conhecimento da natureza vão se reestruturar com o auxilio das leis da natureza e/ou de princípios de equilíbrio. De outro lado, a teleologia se subjetiviza a partir do momento em que os fins já não dizem respeito à necessidade de que o movimento natural leve necessariamente a um fim naturalmente bom, mas sim a necessidade de antecipação mental, que por sua vez dá origem à ação humana com as consequências correspondentes (2007, p. 321).
A escolástica mantém, portanto, a racionalidade normativa muito viva em suas discussões. Mas o que aqui nos importa ressaltar é a ausência do desenvolvimento de qualquer tipo de comunicação sobre a possibilidade de se atribuir direito aos animais, mantendo-se inalteradas as estruturas dos sistemas sociais neste contexto.
4. Renascimento e a teoria do animal máquina
Já na Idade Moderna, com a reafirmação do humanismo pela Renascença, enfatiza-se a livre intervenção do homem na natureza. No seio das revoluções econômica e social da Europa do século XVI, ocorria também uma inovadora revolução epistemológica, ressaltando a autonomia da razão natural humana, afirmando a própria autonomia ontológica do homem e do mundo. Neste contexto, a filosofia moderna também defende a centralidade do homem no interior da natureza, embora tenha partido de outros pressupostos, que romperam com o paradigma teológico.
A tradição humanista europeia, portanto, conferiu ao conceito de racionalidade uma forma muito específica, ao mesmo tempo em que ocultou a especificidade desta forma mediante a obviedade de uma tradição que não admitia outra possibilidade de pensamento. O fundamento desta tradição está na ideia de que a razão pertenceria à natureza do homem distinguindo-o do animal, pensando o conceito de natureza com um componente normativo. Em síntese, podemos dizer que na tradição humanista europeia, um “conceito normativo de racionalidade se fundamenta sobre uma compreensão normativa da natureza” (LUHMANN, 2007, p. 130).
Tal modelo de racionalidade leva a um cientificismo, que entende o conhecimento como derivado dos dados da experiência. Dever-se-ia abandonar as falsas noções para tornar possível um entendimento correto da natureza, afim de nela poder intervir. Utilizando-se dessa racionalidade normativa, Francis Bacon foi o primeiro teórico a enfatizar a capacidade de intervenção humana na natureza, explicitando, de maneira forte, a íntima relação entre saber e poder. Instaura-se, portanto, outra maneira de se visualizar a relação do homem com a natureza, cabendo-lhe dominá-la e utilizá-la em seu proveito (SEVERINO in CARVALHO; GRÜN; TRAJBER, 2009, p. 51–53).
É neste contexto que Bacon recomenda que o homem não se deixe dominar por ídolos que o impeçam de contemplar a verdade. A verdade seria clara, manifesta, o ser humano que não a visualizasse estaria cometendo o erro de se deixar enganar pelos próprios preconceitos. Os ídolos de Bacon seriam, portanto, uma espécie de noção falsa que ocupa o intelecto humano, obstruindo o acesso à verdade. Tal obstrução só poderia ser superada através da formação de noções e axiomas construídos por um processo indutivo (BACON, 1997, p. 12, 40).
É assim que, objetivando abandonar os ídolos, Bacon defendeu uma atitude experimentalista face aos animais e a filosofia de dominação e manipulação da natureza. Bacon propõe o abandono da tradição, seja ela científica ou filosófica, para construção de uma nova ciência, permitindo-se viver um presente puro, liberto de historicidade.
Dando continuidade ao processo iconoclasta de Bacon, Descartes afirma que o sujeito existe independentemente de tudo o que esteja fora dele, podendo ser aí incluídos os ecossistemas e seus ambientes (GRÜN in CARVALHO; GRÜN; TRAJBER, 2009, p. 63). Com essa certeza sobre a existência de si mesmo, do sujeito racional, Descartes conclui que não há um lugar para se pertencer, esclarecendo que: “compreendi que era uma substancia cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material” (DESCARTES, 2007, p. 56).
Levando ao extremo a tradição aristotélico-tomista, reafirmando que a linguagem seria a única prova de que os homens possuem um espírito capaz de raciocinar, Descartes defendeu que os animais seriam incapazes de sentimento, não passando de simples autômatos. Advogou, ainda, que os animais seriam destituídos de qualquer dimensão espiritual, e que, embora dotados de visão, audição e tato, seriam insensíveis à dor, incapazes de pensamento e de consciência de si (DESCARTES, 2007, p. 56-58). A teoria do animal-máquina de Descartes serviu para justificar inúmeras práticas cruéis em prejuízo destes, inclusive a vivissecção.
Descartes não negou a existência de semelhanças entre o corpo do homem e do animal, comparando ambos a máquinas, havendo, contudo, diferenças fundamentais, consistente, por exemplo, na impossibilidade da “máquina” animal fazer uso das palavras ou de outros sinais compondo-os para exprimir seus sentimento ou pensamento. A máquina animal, diferentemente do homem, não agiria com conhecimento, mas unicamente pela disposição de seus órgãos, como autômatos.
A teoria do animal-máquina decorre de um racionalismo mecanicista, cunhado sob forte influência da nascente fisiologia, buscando permitir que a sociedade ignorasse o aparente sofrimento dos animais em experiências feitas por residentes no famoso Convento de Port-Royal, onde o próprio Descartes realizou várias vivissecções (SANTANA, 2006, p. 52). Contra os que defendiam que os animais também possuíam alma, Descartes (2007, p. 67) dizia que:
Não há nenhum outro que afaste tanto os espíritos fracos do reto caminho da virtude como aquele que reside em supor a alma dos animais como sendo da mesma natureza que a nossa e tirar disso a conclusão de que nada temos a temer nem a esperar após esta vida, exatamente como as moscas e as formigas; quando, pelo contrário, se sabe quanto elas são diferentes, compreendem-se melhor as razões que provam que a nossa é de natureza completamente independente do corpo e não está, por isso, sujeita a morrer com ele; pois que, não vendo outras causas que a destruam, somos induzidos, evidentemente, a concluir que ela é imortal.
À época em que viveram Bacon e Descartes, o controle da natureza era mais que uma aspiração, era uma necessidade para melhoria da qualidade de vida do povo europeu. A preocupação à época não era com a problemática ambiental, mas sim com a fome provocada pela explosão demográfica ocorrida a partir do século XVI. Neste contexto, a ciência surge com a grande promessa de possibilitar o domínio da natureza, fazendo com que o homem superasse os limites produtivos por ela impostos (SAWAIA in CARVALHO; GRÜN; TRAJBER, 2009, p. 81).
Importante ressaltar que a revolução epistemológica da modernidade não foi resultado de uma descoberta de verdades científicas, mas sim produto de uma construção teórica orientada pelo objetivo de tornar possível um maior controle da natureza. Ora, se o conhecimento é uma construção, a intencionalidade que o orienta torna-se decisiva para avaliar sua pertinência. Assim, o homem, sujeito ativo desse conhecimento e dominação, foi pensado de maneira reducionista, com um corpo máquina e uma consciência que existiria mesmo que separada deste. Foi assim que o homem deixou de ser visto como integrante da natureza, “passando a sê-lo como separado dela e com ela mantendo relações de oposição e dominação, tanto com relação à sua própria natureza, quanto à natureza externa, da qual era ignorada a dinâmica autopoiética” (PLASTINO in CARVALHO; GRÜN; TRAJBER, 2009, p. 140).
Como se percebe, as teorias de Descartes e Bacon também não possibilitaram uma evolução da semântica no contexto do direito animal. Dito de outra forma, as teorias que alegam a superioridade do homem com base na ideia de racionalidade pouco deixam espaço para variações de sentido no âmbito do direito subjetivo animal.
5. As primeiras teorias em defesa do direito dos animais
Os primeiros teóricos que propuseram uma nova forma de seleção acerca do direito dos animais também faziam parte do movimento humanista moderno, dentre eles, Voltaire, criticou a opressão praticada contra os animais, afirmando que se tratava de uma extrema pobreza de espírito equiparar seres vivos a máquinas utilitárias, nas suas palavras:
É preciso, penso eu, ter renunciado à luz natural, para ousar afirmar que os animais são somente máquinas. Há uma contradição manifesta em admitir que Deus deu aos animais todos os órgãos do sentimento e em sustentar que não lhes deu sentimento. Parece-me também que é preciso não ter jamais observado os animais para não distinguir neles as diferentes vozes da necessidade, da alegria, do temor, do amor, da cólera, e de todos os seus afetos; seria muito estranho que exprimissem tão bem o que não sentem. (VOLTAIRE, 1993, p. 169).
Rousseau também criticou o uso de animais em experimentos, afirmando que, desprovidos de razão, os animais realmente não podem reconhecer a lei natural, mas, unidos que estão, de alguma forma, à natureza humana pela sensibilidade de que são dotados, é de se entender que também devam participar do direito natural e o homem estaria obrigado, para com eles a certas espécies de deveres. Argumenta, ainda, que se a lei natural obriga a não fazer nenhum mal ao semelhante é menos porque ele é um ser racional do que porque é um ser sensível, qualidade que, sendo comum ao animal e ao homem, “deve ao menos dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro” (ROUSSEAU, 2001, p. 11).
Também Montaigne propunha tolerância no trato dos animais, afirmando que aos homens se deve justiça, mas não poderíamos nos esquecer das demais criaturas às quais deveríamos solicitude e benevolência (LEVAI, 2004, p. 20). Retomando Plutarco, Montaigne ressaltou, por sua vez, que haveria mais diferenças entre dois homens do que entre um homem e um animal (DOWELL, 2008, p. 36).
Espinosa, por sua vez, propôs uma ética baseada na identidade entre Deus e Natureza. Ora, sendo Deus e natureza uma só coisa, poder-se-ia concluir que a natureza é o ser fundante de todos os seres. Deduz-se, portanto, que todos os seres estão interligados, embora cada um mantenha sua individualidade. Dito de outra forma, cada realidade individual seria manifestação do todo, que “se individualiza e concretiza em unidades autônomas, como os homens, os animais e o meio ambiente” (SAWAIA in CARVALHO; GRÜN; TRAJBER, 2009, p. 81-82).
Afirmando que o homem não é a causa nem o centro do mundo, mas apenas uma parte de uma rede composta por infinitas outras coisas que estabelecem entre si uma relação de interdependência, o pensamento de Espinosa tem sido utilizado como “fundamentação da ética ambiental” (FERREIRA, 1997, p. 535).
Também Leonardo da Vinci, teorizou em prol dos animais, afirmando que “chegará o dia em que os homens conhecerão o íntimo dos animais e, então, um crime contra qualquer um deles será considerado um crime contra a Humanidade” (apud SERRA-FREIRE in VALLE; TELLES, 2003, p. 350). Jeremy Bethan, Thomas Regan, Arthur Schopenhauer, dentre outros, também contrariaram as correntes antropocêntricas, recebendo grande reforço com as teorias de Alexandre Humboldt e Ernst Haeckel, considerado pai da ecologia moderna. Contudo, nenhuma contribuição somou mais importância para formação de uma nova comunicação acerca dos direitos dos animas que a teoria evolucionista de Charles Darwin, demonstrando que todos os seres vivos integram a mesma escala evolutiva, o que possibilitou as primeiras discussões acadêmicas sobre o direito dos animais (LEVAI, 2004, p. 21).
No âmbito acadêmico brasileiro, a mudança de comunicação no que diz ao trato com os animais teve como fomentador o abolicionista José do Patrocínio, que comentou em sua coluna jornalística intitulada “A notícia” que teria um respeito egípcio pelos animais, acreditando que estes teriam alma, ainda que rudimentar, sofrendo conscientemente as revoltas contra a injustiça humana. Em suas palavras: “Já vi um burro suspirar como um justo depois de brutalmente esbordoado por um carroceiro que atestara o carro com carga para uma quadriga e queria que o mísero animal o arrancasse do atoleiro” (PATROCÍNIO apud LEVAI, 2004, p. 28-29).
Na esteira das suas considerações de Patrocínio, Osvaldo Orico e Olavo Bilac também impulsionaram a comunicação em prol dos animais. Olavo Bilac reafirmou o amor à vida, “amor a tudo quanto vibra e sente, de tudo quanto rasteja e voa, de tudo quando nasce e morre” (apud ORICO, 1977, p. 287), enquanto Orico (1997, p. 286) defendeu que os escritos de Patrocínio em defesa dos animais representariam o último alento de sua vida intelectual, harmonizando-se com sua postura sempre em favor dos humildes.
Essas teorias propuseram uma nova seleção de sentido no que diz respeito à possibilidade de consideração moral do animal, o que, provavelmente, repercutiu na atuação das sociedades protetoras dos animais. A RSPCA (Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals) e ASPCA (Society for the Prevention os Cruelty to Animals), considerados grupos radicais quando fundados, opuseram-se a todas as formas de crueldade para com os animais, mas que, com aumento de recursos e do número de membros, passaram a ter estreito contato com governos, empresários e cientistas, possibilitando algumas regulamentações sobre a utilização de animais por parte do poder público (SINGER, 2004, p. 248).
Tal afetação dos mais variados sistemas por essa nova forma de seleção de sentido se faz compreensível por meio da teoria dos sistemas. Isso porque, embora conceba o sistema como unidade autopoiética[2], operacionalmente fechada, Luhmann não nega que o entorno pode afetar o sistema através das irritações produzidas (ruídos). As irritações são também construções internas, “surgindo de uma confrontação interna de acontecimento com possibilidades próprias, sobretudo com estruturas estabilizadas, com expectativas” (LUHMANN, 2007, p. 87).
Não se pode negar, portanto, que as irritações duradouras terminam por guiar o desenvolvimento da estrutura em uma direção específica. “O entorno consegue exercer um influxo sobre o desenvolvimento estrutural dos sistemas unicamente sobre a condição de que se dêem acoplamentos estruturais” (LUHMANN, 2007, p. 87).
Neste contexto, pode-se afirmar que tais teorias também geram irritação do sistema político, possibilitando a produção legislativa em proteção aos animais.
Passemos a descrever a evolução da legislação em proteção aos animais no ordenamento jurídico brasileiro.
6. Evolução da legislação protetiva dos animais no Brasil
Em todo o mundo, os vários ordenamentos jurídicos adotam um conjunto de instrumentos de tutela ambiental que mesclam objetivos de conservação (como a Reserva Legal, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável e a APA – Área de Proteção Ambiental) com outros, mais rígidos, de preservação (como as APPs – Áreas de Proteção Ambiental, Reservas Biológicas e Estações Ecológicas). Uns mais antropocêntricos (Florestas Nacionais, p. ex.), outros de índole claramente ecocêntrica (Estações Ecológicas ou Reservas Biológicas, p. ex.).
O Direito clássico, pós-Revolução Francesa, listava a natureza e seus componentes na categoria de coisa ou bem. O Livro II, do Código Civil francês de 1804, dedicado às “coisas e diferentes modificações da propriedade”, afirmava que coisa – em direito romano res – seria tudo o que existe na natureza. As coisas susceptíveis de apropriação seriam bens, quer estivessem ou não na propriedade atual de uma pessoa. Em contrapartida, certas coisas, tal como o ar e o mar, não poderiam, em geral serem apropriadas, pois apropriação implica ideia de propriedade. (GILISSEN, 2001, p. 633).
No Brasil do século XVI desembarcam os primeiros animais domésticos para serem utilizados na lavoura, pecuária, expedições dos bandeirantes e transportes em geral. Era muito comum o uso de carro de boi no sertão, de mulas, jumentos burros e cavalos, além da criação de pequenos animais, tais como galinhas e porcos, os quais contribuíam para o sustento da comunidade brasileira em seu nascedouro. Nesse contexto, a predominância da lógica mercantilista fazia com as Ordenações do Reino trouxessem dispositivos relacionados à proteção da flora e da fauna unicamente por questões econômicas, visando o maior lucro da coroa, e não por questões ambientais. (LEVAI, 2004, p. 25)
É nesta perspectiva de defesa dos interesses econômicos do colonizador, que surgem os primeiros dispositivos que tratam dos animais brasileiros. No ano de 1791, por interesse no desenvolvimento econômico do comércio de cavalos, o governador da Capitania de Goiás obteve Carta Régia ordenando o extermínio incondicional de mulas, burros e jumentos. (LEVAI, 2004, p. 26)
O primeiro dispositivo que realmente visava coibir os maus-tratos aos animais sobreveio após a emancipação política e, curiosamente, na mesma época em que se editavam as leis da abolição da escravatura. São Paulo foi o município pioneiro, ao inserir em seu Código de Posturas, de 06 de outubro de 1886, o seguinte dispositivo:
É proibido a todo e qualquer cocheiro, condutor de carroça, pipa d’água, etc., maltratar os animais com castigos bárbaros e imoderados. Esta disposição é igualmente aplicada aos ferradores. Os infratores sofrerão a multa de 10$, de cada vez que se der a infração.
Contudo, somente após quase três décadas foi iniciada a sistematização das normas de proteção aos animais. A primeira delas foi o Decreto nº 16.590, de 10 de setembro de 1924, que regulamentava as casas de diversões públicas, dispondo em seu artigo 5º que era vedado a concessão de licenças para “corridas de touros, garraios, novilhos, brigas de galo e canários e quaisquer outras diversões desse gênero que causem sofrimento aos animais”.
Uma década depois, o decreto n.º 24.645, de 10 de julho de 1934, do então chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas, estabeleceu “medidas de proteção aos animais”, tanto na esfera civil, como penal. Segundo o Decreto, os animais seriam assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros da Sociedade Protetora de Animais (art. 1º, parágrafo 3º). O Decreto definiu, ainda, condutas de “maus tratos” (art. 3º), sendo a primeira “praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal”.
O decreto nº 24.645/34, ainda hoje, funciona como parâmetro para caracterização dos maus tratos praticados contra animais. Dentre as condutas passíveis de enquadramento penal merecem destaque as de: manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz; obrigar animais a trabalhos excessivos ou superiores ás suas forças e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes possam exigir senão com castigo; utilizar, em serviço, animal cego, ferido, enfermo, fraco, extenuado ou desferrado, sendo que este último caso somente se aplica a localidade com ruas calçadas; açoitar, golpear ou castigar por qualquer forma um animal caído sob o veiculo ou com ele, devendo o condutor desprendê-lo do tiro para levantar-se; fazer viajar um animal a pé, mais de 10 quilômetros, sem lhe dar descanso, ou trabalhar mais de 6 horas contínuas sem lhe dar água e alimento; conservar animais embarcados por mais de 12 horas, sem água e alimento, devendo as empresas de transportes providenciar, saibro as necessárias modificações no seu material, dentro de 12 meses a partir da publicação desta lei; e realizar ou promover lutas entre animais da mesma espécie ou de espécie diferente, touradas e simulacros de touradas, ainda mesmo em lugar privado.
A Lei de Proteção à Fauna, lei nº 5.197/67, que veio substituir o Código de Caça, lei nº 5.894/43, transformou a caça profissional em crime. Também a pesca, antes disciplinada pelo Decreto nº 794/38, passou a ser disciplinada pelo conhecido Código de Pesca, Decreto nº 221/67 que, juntamente com as alterações formuladas pela Lei nº 7.679/88, impôs restrições à pesca predatória.
A lei nº 6.638/79, por sua vez, estabeleceu normas para a vivissecção de animais e a Lei nº 7.173/83, regula o funcionamento de jardins zoológicos. Enquanto a Lei nº 7.643/87 proibiu a pesca e molestamento de baleias, golfinhos e botos, apenando com reclusão de 2 a 5 anos quem descumprisse a determinação.
A proteção aos animais ganhou status constitucional em 1988, quando a chamada Constituição Cidadão estabeleceu, em seu art. 225, § 1º, inciso VII, a proteção da fauna, com a finalidade de evitar a extinção das espécies e reforçou a proibição de crueldade contra os animais, assim dispondo: “Incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
Há quem veja uma grande evolução no novo tratamento dado pela constituição ao meio ambiente. Para Benjamin (2001, p. 150), por exemplo:
(...) em melhor sintonia com o pensamento contemporâneo e o estado do conhecimento científico, baseada na valorização não apenas dos fragmentos ou elementos da natureza, mas do todo e de suas relações recíprocas; um todo que deve ser “ecologicamente equilibrado”, visto, por um lado, como “essencial à sadia qualidade de vida”, e, por outro, como “bem de uso comum do povo”. Numa palavra, o legislador não só autonomizou o meio ambiente, como ainda o descoisificou, atribuindo-lhe sentido relacional, de caráter ecossistêmico e feição intangível. Um avanço verdadeiramente extraordinário.
Com objetivo de regular o direito genericamente previsto pela Constituição Federal de 1988, a Lei nº 9.605/98, Lei dos Crimes Ambientais, passou a considerar crime a conduta de crueldade para com animais, fazendo do Brasil um dos países de legislação ambiental mais avançada do mundo (LEVAI, 2004, p. 32). É interessante notar que a Lei dos Crimes Ambientais não faz distinção entre os animais, criminalizando condutas que atentem contra a fauna em geral, seja silvestre, doméstica ou domesticada, incluindo no seu âmbito de incidência todos os animas que estejam em território nacional.
A generalidade adotada pela Lei nº 9.605/98 é compatível com o amplo conceito de fauna, entendida como “o conjunto de espécies animais de um determinado país ou região” (MACHADO, 1991, p. 398), sem fazer distinção, portanto, entre aves, répteis, mamíferos etc., considerando animais “todos os seres vivos multicelulares, heterotróficos e dotados de movimento” (LEVAI, 2004, p. 33).
Como se depreende da sistemática adotada pela Lei dos Crimes Ambientais, a fauna em geral é tutelada pelo ordenamento jurídico brasileiro, independentemente de sua pressuposta “importância” para o ecossistema, não fazendo diferença entre os animais pertencentes às faunas silvestres, domésticas ou domesticadas. Entende-se por fauna silvestre os animais pertencentes às espécies nativa, migratórias, aquáticas ou terrestres, que tenham seu ciclo de vida ocorrendo nos limites do território brasileiro. Já a fauna doméstica diz respeito às espécies que passam a ter características com estreita dependência da espécie humana, como o cachorro e gato, enquanto a fauna domesticada se compõe de animais silvestres que perderam seu lugar na natureza e passaram a conviver pacificamente com o homem, dependendo dele para sua sobrevivência, a exemplo dos animais de circos e zoológicos (DIAS, 2000, p. 104).
Por muito tempo a defesa ao meio ambiente se resumia a alegações que apenas a fauna silvestre possuiria relevância ambiental, discriminando-se, por muito tempo, a defesa dos animais domésticos. Em última análise, a defesa da fauna silvestre buscava proteger o equilíbrio do meio ambiente e a própria sobrevivência humana, não gerando grandes questionamentos acerca de quem seria o sujeito de direito da norma ambiental, o próprio homem.
Com a vedação aos maus-tratos contra os animais, a questão torna-se mais complexa, ficando difícil a defesa de que a proteção se dá em favor de interesses humanos. Neste contexto, como continuar defendendo que em última instancia seria o ser humano o sujeito de direito da norma ambiental, quando a lei obriga uma conduta ou não conduta sua para com um animal, levando a decisão para os tribunais?
A resposta a tal questionamento se configura como um trabalho hercúleo, pois esbarra nos conceitos clássicos de sujeito de direito, tão enraizados na dogmática nacional, mas que nos parece anacrônico para lidar com situações altamente complexas como a do reconhecimento de direito subjetivo aos animais.
Conclusão
O presente artigo trouxe um breve panorama de algumas das principais teorias a respeito do direito animal, desde a cultura cosmocêntrica grega, passando pelo antropocentrismo consagrado pelos socráticos, confirmado pela Escolástica e levado ao seu extremo pelo movimento renascentista.
Contudo, alguns nomes encaparam as primeiras defesas dos direitos dos animais, dentre eles: Voltaire, Rousseau, Leonardo da Vinci, José do Patrocínio, Osvaldo Orico e Olavo Bilac, o que possibilitaria uma evolução semântica no contexto do direito animal, causando, inclusive, uma “irritação” do sistema política, que responde através da produção das legislações protetivas do direito animal.
Por fim, descrevemos a evolução da legislação em proteção aos animais no ordenamento jurídico brasileiro.
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[1] “O sentido é, então, um produto das operações que o usam e não uma qualidade do mundo devida a uma criação, fundação ou origem”. (LUHMANN, 2007, p. 27-28). Sobre os conceitos de Comunicação, Sentido e Evolução Semântica: NIKLAS, LUHMANN. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 22 e ss.
[2] Autopoiesis é um termo de origem biológica, criado pelos chilenos Maturana e Varela, para designar a célula como algo “auto-criado” (LUHMANN, 1992, p. 205). Enquanto Maturana e Varela restringem o conceito da autopoiesis a sistemas vivos, Luhmann o amplia para todos os sistemas em que se pode observar um modo de operação específico e exclusivo, que são, na sua opinião, os sistemas sociais e os sistemas psíquicos. As operações básicas dos sistemas sociais são comunicações e as operações básicas dos sistemas psíquicos são pensamentos. (LUHMANN, 1998, p. 31-32)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Chiara Michelle Ramos Moura da. Direito animal: uma breve digressão histórica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39899/direito-animal-uma-breve-digressao-historica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Medge Naeli Ribeiro Schonholzer
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