Resumo: O presente trabalho tem por objetivo a análise de aspectos jurídicos relativos à delimitação do conceito de transporte gratuito, o qual tem repercussão no âmbito da responsabilidade civil, sob a perspectiva do Código Civil de 2002.
Palavras-chave: responsabilidade civil – transporte gratuito.
Sumário: 1. Introdução. 2. Conceito de transporte gratuito e sua repercussão no âmbito da responsabilidade civil. 3. Conclusões. 4. Bibliografia.
1. Introdução
No ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade civil, em regra, é subjetiva, de modo que a verificação do dever de indenizar depende da comprovação de conduta dolosa ou culposa, do dano, e do nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
Em alguns casos, expressamente previstos na legislação ordinária, todavia, a responsabilidade civil é objetiva, ou seja, o dever de indenizar independe da comprovação de dolo ou culpa, cabendo ao indivíduo lesado apenas a prova de que sofreu o dano decorrente (nexo de causalidade) de conduta da ré.
Um dos exemplos de responsabilidade objetiva é o de contrato de transporte de pessoas, previsto nos arts. 734 e seguintes do Código Civil.
Esse diploma legal, entretanto, ressalva as situações em que o transporte é oferecido a título gratuito (art. 736). O Superior Tribunal de Justiça adota o entendimento de que, no caso de transporte desinteressado, a responsabilização civil depende da comprovação de dolo ou culpa grave.
Este artigo busca apresentar aspectos jurídicos relativos à delimitação do conceito de transporte desinteressado, sob a ótica do Código Civil de 2002, buscando oferecer critérios que facilitem a identificação do regime jurídico que deve ser aplicado, quanto à responsabilidade civil.
2. Conceito de transporte gratuito e sua repercussão no âmbito da responsabilidade civil
O art. 734 do Código Civil apresenta o seguinte teor:
Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.
Parágrafo único. É lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização.
Dessa forma, o legislador ordinário definiu que o transportador responde de forma objetiva pelos danos causados aos passageiros.
Assim, em caso de dano a passageiro, para que o transportador seja obrigado a indenizar, é suficiente que o passageiro comprove a ocorrência do dano, a prestação do serviço e o nexo de causalidade entre o transporte e o dano sofrido. Não é necessário que o passageiro prove que o transportador teve culpa nos fatos que desencadearam o dano.
Se o passageiro que sofreu dano em acidente ajuizar ação de responsabilidade civil contra o transportador, este sequer pode alegar a culpa de terceiro (eventualmente, o condutor de outro veículo envolvido no acidente) na ação de responsabilidade civil.
Nessa situação, cabe ao transportador arcar com os danos sofridos pelo passageiro e, em seguida, buscar junto ao culpado pelo acidente (o condutor de outro veículo, por exemplo) o ressarcimento dos valores dispendidos na indenização de seu passageiro, mediante ajuizamento de ação regressiva, na forma do art. 735 do Código Civil.
Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva.
Esse dispositivo também demonstra a opção legislativa de conferir à responsabilidade civil do contrato de transporte, as peculiaridades próprias do modelo de responsabilidade objetiva, ou seja, os riscos da viagem, em regra, são assumidos pelo transportador.
Nesse sentido, vale destacar as lições de Cláudio Luiz Bueno de Godoy, ao comentar esse dispositivo:
Bem se verá, aliás, que o Código Civil de 2002, ao dispor sobre a responsabilidade no contrato de transporte, da mesma maneira com que regrou a responsabilidade civil, no capítulo próprio (ver comentários aos arts. 927 e segs.), incorporou a seu texto muito do que já haviam consolidado os tribunais. Pois, assentado que a responsabilidade do transportador, uma vez inalcançado o resultado pelo qual se obrigou, prescinde da verificação de sua culpa, bastando a demonstração do nexo de causalidade entre o prejuízo sofrido e a atividade de transporte, ressalvou a lei – ademais da regra do art. 741, acerca da conclusão de viagem interrompida mesmo que pelo casus – que essa responsabilidade apenas se exclui se provada força maior, tal como, para as obrigações em geral, se previu no art. 393 do Código Civil. E lá se a definiu, sem distinção para o caso fortuito, o qual, portanto, se deve entender também excludente da responsabilidade do transportador, como fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. (GODOY, 2007, p.598) [1]
Cabe salientar, no entanto, que esse modelo de responsabilidade objetiva não se aplica nas situações em que o transporte é oferecido gratuitamente.
Por transporte gratuito, conforme disciplina do Código Civil de 2002, deve-se entender aquele em que o transportador não aufere vantagens, sejam diretas ou indiretas.
Nesse sentido, vale citar o art. 736 do Código Civil:
Art. 736. Não se subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia.
Parágrafo único. Não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas.
Em 08/11/1995, ao tratar do transporte desinteressado, de simples cortesia, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 145, a qual apresenta o seguinte teor:
STJ Súmula nº 145
No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave.
De acordo com essa Súmula, editada antes do advento do Código Civil de 2002, no caso de transporte desinteressado, de simples cortesia, a responsabilidade civil do transportador, em relação a danos causados ao passageiro, apenas se configuraria no caso de dolo ou culpa grave.
Embora o Código Civil de 2002 não tenha adotado expressamente o critério previsto na Súmula 145 do STJ, observa-se que esse critério (responsabilização apenas nos casos de dolo ou culpa grave) continua sendo aplicado nos Tribunais[2].
Nesse sentido, vejam-se os seguintes precedentes:
APELAÇÃO. CIVIL. PROCESSO CIVIL. INDENIZAÇÃO. MORTE. ACIDENTE DE TRÂNSITO. TRANSPORTE GRATUITO. DANOS MORAIS. DANOS MATERIAIS.
1. O condutor tem o dever indenizar os danos morais e materiais causados pela morte do carona em acidente de trânsito.
2. No transporte gratuito, de mera cortesia, o condutor só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave, nos termos da Súmula 145 do STJ.
3. Há culpa grave quando o condutor trafega com excesso de velocidade depois de passar a noite sem dormir, em uma festa.
4. Para o arbitramento do valor da indenização por danos morais devem ser levados em consideração o grau de lesividade da conduta ofensiva e a capacidade econômica da parte pagadora, a fim de se fixar uma quantia moderada, que não resulte inexpressiva para o causador do dano (R$ 50.000,00).
5. Negou-se provimento à apelação.
(Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 2ª Turma Cível, Rel. Desembargador Sérgio Rocha, Processo 0033803-82.2012.8.07.0001, Data de julgamento 04/09/2013, Publicado no DJE de 11/09/2013, p. 95)
DIREITO CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. PASSAGEIRO. DANOS SOFRIDOS. TRANSPORTE BENÉVOLO. DOLO OU CULPA GRAVE. INOCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. AUSÊNCIA.
1. Em se tratando de transporte desinteressado, de simples cortesia, só haverá possibilidade de condenação do transportador se comprovada a existência de dolo ou culpa grave. Inexistente um desses requisitos, mostra-se inviável a pretensão voltada para o ressarcimento de danos sofridos pelo transportado (Súmula 145/STJ).
2. Recurso conhecido e provido. Sentença modificada.
(Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 3ª Turma Cível, Rel. Desembargador Mario-Zam Belmiro, Processo 0025654-10.2006.8.07.0001, Data de julgamento 29/08/2007, Publicado no DJU Seção 3 de 25/10/2007, p. 101)
Dessa forma, fica claro que o critério apresentado na Súmula nº 145 do STJ tem sido aplicado na jurisprudência brasileira.
Diante desse contexto, cumpre analisar a delimitação do conceito de transporte gratuito, para efeito de oferecer parâmetros que facilitem a definição do modelo de responsabilidade civil que deve ser aplicado aos variados casos de acidente trânsito.
O art. 736 do Código Civil define o transporte desinteressado como aquele feito a título gratuito, por amizade ou cortesia, no qual o transportador não aufere vantagens, diretas ou indiretas.
Assim, a análise da natureza jurídica do tipo de transporte depende da verificação do recebimento ou não de vantagens por parte do transportador.
Nesse sentido, vale citar o entendimento de Pablo Stolze acerca das possibilidades de remuneração indireta que descaracterizam o transporte gratuito.
b) transporte interessado, sem remuneração direta (parágrafo único do artigo sob comento) – diferentemente, neste caso, o condutor, posto não seja diretamente remunerado, experimenta vantagem indireta, à custa do conduzido. Imagine, por exemplo, um representante de vendas que “faz questão de levar o seu cliente” até o seu stand. Ocorrendo um abalroamento lesivo no caminho, o transportador poderá ser responsabilizado, segundo as regras da responsabilidade civil contratual, inferidas do sistema de defesa do consumidor. Trata-se de um acidente de consumo, gerador de responsabilidade civil objetiva. Aliás, uma vez que, neste caso, deverão ser aplicadas as regras do contrato de transporte, cumpre-nos lembrar a incidência da cláusula de segurança, impondo a obrigação de levar o passageiro ao seu destino, são e salvo. Veja, portanto, que, em se tratando de transporte interessado, a responsabilização do transportador é mais facilitada. Uma última indagação, entretanto, se impõe. Para não ser considerado gratuito, o referido “interesse” do condutor deve ser econômico? Uma carona motivada por interesse sexual, por exemplo, descaracterizaria a cortesia, fazendo incidir as regras do contrato de transporte, e, por conseguinte, da responsabilidade civil objetiva? Em nosso sentir, segundo interpretação teleológica, desde que não seja por amizade ou mera cortesia (art. 736, caput), o transporte motivado por qualquer interesse do conduto justificaria a descaracterização do transporte gratuito (art. 736, parágrafo único). Ademais, a lei não refere que o interesse do transportador deva ser necessariamente pecuniário. Assim, uma carona dada apenas para fins sexuais (a famosa “cantada em ponto de ônibus”) autorizaria, em nosso entendimento, a incidência das regras do contrato de transporte, por força da “vantagem indireta” experimentada pelo condutor, nos termos do mencionado parágrafo único do art. 736. Destarte, deverá observar a cláusula implícita de segurança, podendo ser compelido a indenizar a outra parte sem aferição de culpa. Advertimos, apenas, que a incidência dessas regras, mais severas para o transportador, não decorre da circunstância de estarmos diante de um contrato de transporte típico, pelo simples fato de a prestação sexual não ser licitamente admitida. Todavia, apenas para o efeito de facilitar a responsabilização do condutor – que atuou com segundas intenções -, concluímos que o legislador cuidou de determinar a aplicação das regras do contrato de transporte, afastando a alegação de mera cortesia, visando, dessa forma, facilitar a reparação da vítima. (GAGLIANO, 2013, p. 362)[3]
Esse tema é abordado por Sérgio Cavalieri, com base no conceito de “transporte aparentemente gratuito”:
Há transporte aparentemente gratuito quando o transportador tem algum interesse patrimonial no transporte, ainda que indireto, como ocorre, por exemplo no transporte que o patrão oferece aos empregados para levá-los ao trabalho; do corretor que leva o cliente para ver o imóvel que está à venda etc.
Idêntica situação se configura quando o preço do transporte, tido como gratuito, está embutido no valor global da tarifa, ou nos benefícios recebidos, pela empresa transportadora, do Poder Público concedente. Tal é o caso do transporte gratuito assegurados pelo art. 230, § 2o, da Constituição de 1988 aos maiores de 65 anos. Em alguns Municípios esse benefício tem sido estendido aos escolares de primeiro grau etc.
A toda evidência, esse transporte não é gratuito, porquanto tem seu custo incluído no valor global da tarifa e repassado aos demais usuários do serviço. Tanto é assim que a empresa transportadora não opera com prejuízo, buscando, sempre que necessário, o reajuste das tarifas junto ao Poder concedente, para manter a lucratividade do seu negócio.
No transporte apenas aparentemente gratuito em nada se modifica a responsabilidade do transportador. É objetiva e, como já vimos, só pode ser elidida pelo fato exclusivo da vítima, pelo fortuito externo e pelo fato exclusivo de terceiro.
(Cavalieri, 2010, p. 329)[4]
A partir da leitura desses trechos citados, observa-se que, para Sergio Cavalieri, a vantagem indireta que descaracteriza o transporte gratuito tem origem patrimonial, enquanto Pablo Stolze entende que o conceito de vantagens indiretas, utilizado no Código Civil, é amplo a ponto de abranger inclusive intenções sexuais, de modo que as vantagens indiretas não se resumiriam às vantagens pecuniárias.
Nesse aspecto, entendemos que a verificação da relação da qual se origina o oferecimento do transporte gratuito é fundamental para a categorização do transporte como gratuito ou não.
Um exemplo em que isso é facilmente perceptível é o caso de acidente que envolve ônibus de concessionária de serviço público de transporte municipal, no qual um passageiro idoso que não paga passagem por isenção legal sofre danos físicos.
Nesse tipo de situação, embora o passageiro lesado não tenha pago diretamente o valor da passagem para ser transportado, a análise da relação da qual decorre o transporte é suficiente para a constatação que esse tipo de transporte não deve ser tido como transporte desinteressado.
O fato de o transporte ter sido realizado na condição de prestadora de serviço público afasta, de plano, qualquer discussão sobre o modelo de responsabilidade civil que deve ser aplicado, na medida em que o art. 37, §6o, da Constituição Federal prevê a responsabilidade objetiva dos prestadores de serviços públicos.
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) (…)
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Nesse sentido, veja-se o seguinte precedente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:
CONSUMIDOR, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO COM MORTE. EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO DE TRANSPORTE TERRESTRE INTERESTADUAL. TRANSPORTE GRATUITO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. PROVA DO NEXO CAUSAL E DOS DANOS MATERIAIS E MORAIS PROVOCADOS AOS SUCESSORES DA VÍTIMA. OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR OS DANOS MORAIS E MATERIAIS. VALOR DOS DANOS MATERIAIS. CRITÉRIO DE FIXAÇÃO. DOIS TERÇOS DO VALOR RESULTANTE DA DIMINUIÇÃO DA REMUNERAÇÃO BRUTA PELOS DESCONTOS COMPULSÓRIOS DA VÍTIMA MULTIPLICADO PELOS MESES RESTANTES ATÉ O ALCANCE DA IDADE DE 65 ANOS. VALOR DOS DANOS MORAIS. MAJORAÇÃO. ABATIMENTO DO VALOR DO SEGURO OBRIGATÓRIO DO MONTANTE A SER INDENIZADO. AUSÊNCIA DE PROVA DO RECEBIMENTO DO BENEFÍCIO. IMPOSSIBILIDADE. JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA. TERMO INICIAL. DISTRIBUIÇÃO EQUITATIVA DOS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE.
1. A responsabilidade civil da empresa prestadora de serviço público de transporte terrestre de passageiros é de natureza objetiva, consoante os art. 37, § 6º, da CRB/88, e 14, do CDC, bastando, para sua ocorrência, a prova do dano e do nexo de causalidade. A circunstância de o transporte da vítima ter sido gratuito não afasta a responsabilidade objetiva da prestadora do serviço, pois a norma do art. 736, do CC, só se aplica às relações civis, e não pode criar exceção a um princípio de estatura constitucional. (...)
9. Apelos parcialmente providos.
(Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 4ª Turma Cível, Rel. Desembargador Arnoldo Camanho de Assis, Processo 0020361-59.2006.8.07.0001, Data de julgamento 22/06/2011, Publicado no DJE de 05/07/2011, p. 83)
Outro exemplo que pode ser citado é o do caso de transporte oferecido por empregador para empregados. Nesse tipo de situação, ainda que o empregador não cobre dos empregados pelo transporte, é inadequado considerar esse tipo de transporte como gratuito, uma vez que esse transporte se realiza no contexto de uma relação jurídica em que o empregador tem a obrigação de custear o transporte do empregado, ou seja, a desnecessidade de o empregador pagar as passagens dos empregados consubstancia a vantagem indireta que afasta a configuração do transporte como transporte desinteressado.
Nesse sentido, merece leitura o seguinte precedente do TJDFT:
CIVIL. REPARAÇÃO DE DANOS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. TRANSPORTE COLETIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. ALEGAÇÃO DE TRANSPORTE GRATUITO DE PASSAGEIRO. NÃO DEMONSTRAÇÃO. DANO MATERIAL. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO. DANO MORAL. POSSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME.
I - Salvo motivo de força maior, é objetiva a responsabilidade do transportador em relação ao passageiro, não havendo, portanto, que se perquirir acerca da existência de dolo ou culpa: inteligência do artigo 734 do Código Civil.
II – Não se considera gratuito o transporte se o passageiro o utiliza, embora sem desembolsar qualquer quantia, em virtude de acordo feito por sua empresa empregadora e a responsável pelo transporte, devendo esta última indenizar pelos danos decorrentes do acidente, independentemente da existência de culpa.
III – (...)
(Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 5ª Turma Cível, Rel. Desembargador Lecir Manoel da Luz, Processo 0001217-12.2005.8.07.0009, Data de julgamento 03/10/2007, Publicado no DJU Seção 3 de 14/11/2007, p. 91)
Esse entendimento também vale inclusive para os casos de convênios de empresas de ônibus, nos quais se estabelece que os funcionários de empresa participante do convênio serão transportados gratuitamente pelas demais empresas participantes do convênio.
Tal como apresentado no exemplo anterior, nesse tipo de situação também há vantagens indiretas que afastam a natureza de transporte desinteressado, haja vista que a celebração desse tipo de convênio tem por objetivo o não pagamento de vales transportes aos empregados, ou seja, o empregador tem vantagem indireta pecuniária indireta na realização desse tipo de transporte.
ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. TRANSPORTE COLETIVO. DANOS FÍSICOS DOS QUAIS RESULTARAM INCAPACIDADE PARA O TRABALHO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO PELOS DANOS MATERIAIS E MORAIS. ALEGAÇÃO DE TRANSPORTE GRATUITO EM VIRTUDE DE CONVÊNIO. REJEIÇÃO. PENSÃO ALIMENTÍCIA DECORRENTE DE ATO ILÍCITO E PENSÃO PREVIDENCIÁRIA. INCOMPENSABILIDADE. DANO MORAL. QUANTIFICAÇÃO E INCIDÊNCIA DE CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS A PARTIR DA DATA DA FIXAÇÃO.
1. Consoante o escólio de Caio Mário da Silva Pereira, “depois de vacilações grandes, assentou-se na doutrina e na jurisprudência e agora expressamente no art. 735 do Código de 2002 que a responsabilidade do condutor é contratual. Em consequência, tem responsabilidade objetiva pelos sinistros ocorridos durante a viagem de que resulte dano às pessoas transportadas ou suas bagagens, salvo motivo de força maior (Código Civil, art. 734)” (Instituições de direito civil. Vol. III. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, pp. 279-280). Além disso, a responsabilidade civil emanada de transporte objeto de autorização, permissão ou concessão pelo Poder Público recebe inevitável e determinante influência da disciplina constitucional. Isso porque, segundo disciplina o parágrafo 6º do art. 37 da Constituição Federal, “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros”.
2. Por outro lado, dispõe o art. 736 do Código Civil que “não se subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia”. Como tal não se considera transporte decorrente de convênio entre empresas de ônibus do ramo para a condução gratuita e recíproca dos rodoviários na região do entorno e do Distrito Federal: “Não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas” (parágrafo único desse dispositivo). Destarte, revela-se totalmente despicienda a discussão acerca de o autor ter ou não desfrutado da prerrogativa de não pagar a passagem rodoviária. Isso porque, embora as rés refiram-se ao aludido acordo como sendo de transporte “gratuito”, é inegável que as transportadoras auferem vantagens indiretas com esse tipo de serviço, em especial, liberam-se dos gastos com o pagamento de vale transporte aos rodoviários. Não há ato de complacência ou de mera cortesia por parte das empresas de ônibus.
3. É incontroverso que o autor estava no interior do veículo acidentado, bem como que as lesões físicas experimentadas por ele (“rotura degenerativa no corpo posterior do menisco medial e meniscectomia parcial no corpo meniscal” e “rotura parcial crônica no ligamento colateral medial” no joelho esquerdo) resultaram do sinistro, as quais decorreram de tal fato, resultando na incapacidade da vítima para o trabalho.
4. (...)
7. Recursos conhecidos, negado provimento aos apelos das rés e dado parcial provimento ao recurso do autor para reformar a r. sentença vergastada e condenar a ré ao pagamento de danos materiais no valor mensal postulado pelo autor até a data em que ele completou 65 anos de idade, e majorar a indenização por danos morais de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para R$ 30.000,00 (trinta mil reais), acrescidos estes últimos de juros de mora de 1% (um por cento) ao mês a partir da sua fixação na 1ª Instância pela r. sentença.
(Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 2ª Turma Cível, Rel. Desembargador Waldir Leôncio Lopes Júnior, Processo 0006085-17.2006.8.07.0003, Data de julgamento 30/06/2010, Publicado no DJE de 19/07/2010, p. 45)
No caso do corretor de imóveis que oferece carona a possível comprador, também não se pode falar de transporte gratuito, para efeito de responsabilidade civil, na medida em que o oferecimento do transporte está diretamente relacionado ao desempenho de uma atividade econômica, que é a possível venda do imóvel. Nesse caso, não há que se falar em transporte por causa da amizade, mas sim em transporte como um serviço secundário abrangido na atividade econômica de vender imóveis.
Situação diversa, a nosso ver, é a de colegas de trabalho que são vizinhos e por isso costumam fazer o percurso casa – trabalho – casa juntos, sendo utilizado o carro de um dos vizinhos numa semana e, na semana seguinte, o carro do outro, num modelo de revezamento.
Nesse contexto, embora os vizinhos tenham vantagem indireta, em razão da economia de combustível, na medida em que o motorista de uma semana é o passageiro na semana seguinte, não é razoável que essa vantagem indireta afaste a configuração do transporte como gratuito.
O art. 736 do Código Civil deve ser interpretado de modo que a norma do parágrafo único seja lida no mesmo contexto do caput do dispositivo.
A vantagem indireta apenas afasta a natureza de transporte gratuito, quando essa vantagem consubstancia o motivo do oferecimento de transporte, em vez da amizade ou da cortesia.
Nesse sentido, a análise da relação entre transportador e passageiro, é fundamental para determinar se o transporte deve ou não ser tido como gratuito e qual regime de responsabilidade civil deve ser aplicado ao caso concreto.
Com exceção do último exemplo, as demais situações apresentadas (transporte por concessionário de serviço público, transporte oferecido por empregador, convênio de empresas de transporte público municipal, transporte oferecido por correto de imóveis) representam situação em que o transporte se desenvolve no contexto de uma atividade econômica/profissional, a qual se desenvolve da mesma forma, independentemente de qualquer vínculo específico entre transportador e passageiro.
Em outras palavras, o passageiro é considerado como uma pessoa que preenche determinadas características, estabelecidas previamente, que o enquadram como passageiro, ainda que transportador e passageiro sequer se conheçam previamente.
Por outro lado, no exemplo dos vizinhos, o transporte gratuito não é oferecido no contexto de uma atividade econômica/profissional, mas sim como uma troca de favores, tipicamente realizada entre pessoas que se conhecem e se ajudam, e não como um serviço disponível a todos que se enquadrarem em determinados requisitos estabelecidos previamente.
3. Conclusão
O Código Civil de 2002, define o transporte desinteressado como aquele feito gratuitamente, por amizade ou cortesia, em que o transportador não aufere vantagens diretas ou indiretas.
A configuração do transporte como transporte gratuito implica a incidência de um regime de responsabilidade civil diferenciado, haja vista que a Súmula 145 do STJ prevê que a responsabilização civil, nesses casos, deve ocorrer apenas se houver dolo ou culpa grave.
Há diversas situações em que a responsabilização civil por danos causados em transporte depende da configuração do transporte como desinteressado ou não, sendo relevante examinar as vantagens auferidas pelo transportador e a relação existente entre transportador e passageiro, para definir, com precisão, qual é o modelo de responsabilidade civil que deve ser aplicado ao caso.
4. Bibliografia
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União – Brasília, DF. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 10 de junho de 2013.
_______. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União – Brasília, DF. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em 10 de junho de 2013.
________. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 2ª Turma Cível, Rel. Desembargador Sérgio Rocha, Processo 0033803-82.2012.8.07.0001, Data de julgamento 04/09/2013, Publicado no DJE de 11/09/2013, p. 95.
________.Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 3ª Turma Cível, Rel. Desembargador Mario-Zam Belmiro, Processo 0025654-10.2006.8.07.0001, Data de julgamento 29/08/2007, Publicado no DJU Seção 3 de 25/10/2007, p. 101.
________.Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 4ª Turma Cível, Rel. Desembargador Arnoldo Camanho de Assis, Processo 0020361-59.2006.8.07.0001, Data de julgamento 22/06/2011, Publicado no DJE de 05/07/2011, p. 83.
________.Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 5ª Turma Cível, Rel. Desembargador Lecir Manoel da Luz, Processo 0001217-12.2005.8.07.0009, Data de julgamento 03/10/2007, Publicado no DJU Seção 3 de 14/11/2007, p. 91.
________.Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 2ª Turma Cível, Rel. Desembargador Waldir Leôncio Lopes Júnior, Processo 0006085-17.2006.8.07.0003, Data de julgamento 30/06/2010, Publicado no DJE de 19/07/2010, p. 45.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 9a ed. São Paulo: Atlas, 2010.
GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de Direito Civil, volume 3: responsabilidade civil / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho – 11. Ed.rev. atual. E ampl – São Paulo: Saraiva, 2013.
GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. In: Peluso, Cezar (coord.). Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência. Barueri, São Paulo, Manole, 2007.
[1] GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. In: Peluso, Cezar (coord.). Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência. Barueri, São Paulo, Manole, 2007.
[2] Nesse aspecto, vale ressaltar que alguns autores (Pablo Stolze e Sérgio Cavalieri) entendem que a responsabilidade civil no oferecimento de transporte gratuito deve seguir a regra dos atos ilícitos em geral (responsabilidade depende de culpa em sentido amplo) em vez do critério adotado pelo STJ (responsabilidade civil vinculada à comprovação de dolo ou culpa grave). Esta divergência doutrinária não será objeto deste trabalho, o qual se centra na questão da delimitação do conceito de transporte gratuito.
[3] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de Direito Civil, volume 3: responsabilidade civil / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho – 11. Ed.rev. atual. E ampl – São Paulo: Saraiva, 2013.
[4] Cavalieri Filho, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 9a ed. São Paulo: Atlas, 2010.
Procurador Federal, pós-graduado em Direito Constitucional e Direito Tributário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Igor Guimarães. O conceito de transporte gratuito e sua repercussão no âmbito da responsabilidade civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jun 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39902/o-conceito-de-transporte-gratuito-e-sua-repercussao-no-ambito-da-responsabilidade-civil. Acesso em: 23 dez 2024.
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