Resumo: O presente trabalho tem por objetivo a análise de aspectos jurídicos relativos à responsabilidade civil no oferecimento de transporte gratuito, sob a perspectiva do Código Civil de 2002.
Palavras-chave: responsabilidade civil – transporte desinteressado – Súmula 145 do STJ.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Responsabilidade civil no oferecimento de transporte desinteressado. 3. Conclusões. 4. Bibliografia.
1. Introdução
No ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade civil, em regra, é subjetiva, de modo que a verificação do dever de indenizar depende da comprovação de conduta dolosa ou culposa, do dano, e do nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
Em alguns casos, expressamente previstos na legislação ordinária, todavia, a responsabilidade civil é objetiva, ou seja, o dever de indenizar independe da comprovação de dolo ou culpa, cabendo ao indivíduo lesado apenas a prova de que sofreu o dano, o qual decorreu (nexo de causalidade) de conduta da ré.
Um dos exemplos de responsabilidade objetiva é o de contrato de transporte de pessoas, previsto nos arts. 734 e seguintes do Código Civil.
Esse diploma legal, entretanto, ressalva as situações em que o transporte é oferecido a título gratuito (transporte desinteressado), entendido como aquele em que o transportador sequer oferece vantagens indiretas (art. 736). Para esses casos, considera-se que tais situações não se enquadram na disciplina jurídica dos contratos de transportes.
Este artigo busca apresentar aspectos jurídicos relativos à aplicação do art. 736 do Código Civil, buscando oferecer elementos que facilitem a análise de casos concretos e a verificação precisa da disciplina jurídica, quanto às regras de responsabilidade civil que devem ser aplicadas.
2. Responsabilidade civil no oferecimento de transporte desinteressado
O art. 734 do Código Civil apresenta o seguinte teor:
Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.
Parágrafo único. É lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização.
Dessa forma, o legislador ordinário definiu que o transportador responde de forma objetiva pelos danos causados aos passageiros.
Assim, em caso de dano a passageiro, para que o transportador seja obrigado a indenizar, é suficiente que o passageiro comprove a ocorrência do dano, a prestação do serviço e o nexo de causalidade entre o transporte e o dano sofrido. Não é necessário que o passageiro prove que o transportador teve culpa nos fatos que desencadearam o dano.
Se o passageiro que sofreu dano em acidente ajuizar ação de responsabilidade civil contra o transportador, este sequer pode alegar a culpa de terceiro (eventualmente, o condutor de outro veículo envolvido no acidente) na ação de responsabilidade civil.
Nessa situação, cabe ao transportador arcar com os danos sofridos pelo passageiro e, em seguida, buscar junto ao culpado pelo acidente (o condutor de outro veículo, por exemplo) o ressarcimento dos valores dispendidos na indenização de seu passageiro, mediante ajuizamento de ação regressiva, na forma do art. 735 do Código Civil.
Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva.
Esse dispositivo também demonstra a opção legislativa de conferir à responsabilidade civil do contrato de transporte, as peculiaridades próprias do modelo de responsabilidade objetiva.
Nesse sentido, vale destacar as lições de Cláudio Luiz Bueno de Godoy, ao comentar esse dispositivo:
Bem se verá, aliás, que o Código Civil de 2002, ao dispor sobre a responsabilidade no contrato de transporte, da mesma maneira com que regrou a responsabilidade civil, no capítulo próprio (ver comentários aos arts. 927 e segs.), incorporou a seu texto muito do que já haviam consolidado os tribunais. Pois, assentado que a responsabilidade do transportador, uma vez inalcançado o resultado pelo qual se obrigou, prescinde da verificação de sua culpa, bastando a demonstração do nexo de causalidade entre o prejuízo sofrido e a atividade de transporte, ressalvou a lei – ademais da regra do art. 741, acerca da conclusão de viagem interrompida mesmo que pelo casus – que essa responsabilidade apenas se exclui se provada força maior, tal como, para as obrigações em geral, se previu no art. 393 do Código Civil. E lá se a definiu, sem distinção para o caso fortuito, o qual, portanto, se deve entender também excludente da responsabilidade do transportador, como fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. (GODOY, 2007, p.598) [1]
Cabe salientar, no entanto, que esse modelo de responsabilidade objetiva não se aplica nas situações nas quais o transporte é oferecido gratuitamente (denominado pela doutrina de transporte desinteressado), em que o transportador não aufere vantagens diretas ou indiretas.
Nesse sentido, vale citar o art. 736 do Código Civil:
Art. 736. Não se subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia.
Parágrafo único. Não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas.
Em 08/11/1995, ao tratar do transporte desinteressado, de simples cortesia, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 145, a qual prevê:
STJ Súmula nº 145
No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave.
De acordo com essa Súmula, editada antes do advento do Código Civil de 2002, no caso de transporte desinteressado, de simples cortesia, a responsabilidade civil do transportador, em relação a danos causados ao passageiro, apenas se configuraria no caso de dolo ou culpa grave.
Diante deste contexto, cumpre analisar se a responsabilidade civil por danos causados no oferecimento de transporte gratuito exige ou não a comprovação de dolo ou culpa grave, conforme Súmula do STJ, ou se submete ao modelo de reponsabilidade subjetiva, aplicável, como regra, aos atos ilícitos.
O Código Civil de 2002, que está vigente, não incorporou expressamente o entendimento sumulado à legislação ordinária, prevendo apenas que o transporte gratuito não estaria submetido às mesmas regras do contrato de transporte, para o qual previu o modelo de responsabilidade objetiva, conforme apresentado acima.
Nesse sentido, vale destacar as lições de Pablo Stolze, que trata da questão da responsabilidade civil do transporte desinteressado, e adota o entendimento de que, nesse caso, a responsabilidade civil segue a regra do gênero dos atos ilícitos, sendo suficiente que, além da dano e do nexo de causalidade, seja provado que o causador do dano agiu com culpa (em sentido amplo), não sendo necessário que tenha havido dolo ou culpa grave.
Pela dicção da norma, podemos vislumbrar duas situações juridicamente distintas:
a) o transporte propriamente gratuito ou de mera cortesia (previsto no caput do artigo sob comento) – neste caso, havendo acidente e dano causado ao tomado da carona, entendemos deva ser aplicado o sistema de regras da responsabilidade aquiliana do Código Civil, o que significa dizer que o juiz, nos termos do art. 186, deverá perquirir a culpa (em sentido lato) do condutor para efeito de impor-lhe a obrigação de indenizar. Não concordamos, data venia, com o entendimento de que apenas o dolo ou a culpa grave autorizariam a obrigação de indenizar (Súmula 145, STJ), sobretudo pelo fato de o novo Código Civil não estabelecer esta restrição. Ademais, também negamos a natureza contratual da relação jurídica travada entre condutor e “caronista”, pela idêntica razão de não encontrar respaldo legal. Trata-se, pois, a carona em si de um ato jurídico não negocial que, se causar dano ao passageiro por má atuação do condutor, poderá se converter em ato ilícito. Exemplo: passando pela rua, um amigo pede carona. Momentos depois, o veículo tomba desgovernado, com danos ao condutor e passageiro. Neste caso, o primeiro poderá ser responsabilizado se houver prova de haver atuado com dolo ou culpa (art. 186 do CC). Note-se que o art. 736 do Código refere expressamente não serem aplicáveis as regras do contrato de transporte para esta hipótese; (GAGLIANO, 2013, p. 362)[2]
Dessa forma, o autor considera que, em matéria de responsabilidade civil, o transporte gratuito do qual decorra danos ao passageiro, aos atos ilícitos, de modo que havendo culpa do motorista, a discussão sobre a culpa ser grave ou não passou a ser irrelevante.
Vale mencionar o entendimento de Sérgio Cavalieri Filho acerca do tema, o qual apresenta diversas reflexões sobre a questão da responsabilidade civil no oferecimento de transporte gratuito.
b) Já partilhei desse entendimento [Súmula 145 do STJ]. Em alguns julgamentos sustentei que o transporte puramente gratuito era regulado pelo art. 1.057 do Código Civil de 1916 (atual art. 392), respondendo o transportador só por dolo. Posteriormente, entretanto, meditando sobre outros casos igualmente submetidos a julgamento, fui levado a mudar de posição. Hoje, estou convencido de que a solução justa e correta para o transporte puramente gratuito está na aplicação dos princípios que regem a responsabilidade aquiliana.
c) Na realidade, quando alguém transporta outrem por mera cortesia, não tem a menor intenção de formalizar um contrato. As circunstâncias que envolvem o fato não caracterizam uma relação contratual, nem configuram vínculo jurídico convencional. Há simples ato de liberalidade.
d) Por outro lado, quando alguém dá ou aceita uma carona, parece-me inegável que nenhum dos dois tem o propósito de emitir declaração de vontade vinculante; nem se pode equiparar tal conduta à doação ou ao mútuo, típicos contratos gratuitos, a eles, sim, aplicável o art. 392 do Código Civil. O transporte puramente gratuito ou por cortesia ajusta-se como luva à lição de Carlos Alberto da Mota Pinto, na sua excelente Teoria Geral do Direito Civil: “Por falta de intenção de efeitos jurídicos nestes termos, distinguem-se os negócios jurídicos dos chamados negócios de pura obsequiosidade. Estes são promessas ou combinações da vida social às quais é estranho o intuito de criar, modificar ou de extinguir um vínculo jurídico (por exemplo: um convite para um passeio, para um jantar etc.). A falta de vontade de efeitos jurídicos distingue igualmente os negócios jurídicos dos chamados acordos ou agreements ou ainda gentleman’s agreementes”(Coimbra, 4a reimpr., 1980, p.261).
Com essa linha de fundamentação, o 1o Grupo de Câmaras do Tribunal de Alçada Civil do Rio de Janeiro colocou a questão com absoluta precisão ao decidir os EInfrs 38/95, dos quais foi relator o eminente Juiz Nílton Mondego de Carvalho Lima:
“O transporte gratuito ou por cortesia não constitui negócio jurídico, mas, apenas, ato não negocial, no qual a falta de intenção de produzir efeitos jurídicos ressalta de maneira cristalina, não podendo ser confundido, em hipótese alguma, com os contratos unilaterais, o que afasta a incidência da regra do art.1.057 do Código Civil. [art. 392 do Código de 2002]
“Não havendo declaração vinculante, no momento em que o condutor do veículo oferece tal cortesia, a ‘disposição-chave’para a solução de danos, causados ao transportado, encontra-se no disposto no art. 159 do Código Civil.” [art. 186 do Código de 2002]
“Provada a culpa, em se aplicando a teoria clássica da responsabilidade extracontratual ou aquiliana, na hipótese de contrato benévolo, pacífica se torna a obrigação de indenizar.”
Por outro lado, aplicar o art. 1.057 do Código Civil de 1916 – ouo art. 392 do Código de 2002 -, pelo qual o transportador só responde por dolo, importa colocar o carona, que, de certa forma, confiou em quem lhe ofereceu o transporte, em situação jurídica pior que a do pedestre eventualmente atropelado pelo mesmo motorista.
Aliás, foi um caso concreto assim que me levou a repensar a questão. Trafegando imprudentemente, com excesso de velocidade, o motorista atropelou e matou um pedestre; a seguir, com o veículo desgovernado, bateu num poste, ferindo gravemente o companheiro que estava no banco ao lado. Aplicando-se o art. 1.057 do Código Civil, esse motorista só responderia por dolo em relação ao carona, muito embora por culpa em relação ao pedestre, com base na responsabilidade delitual. Isso, data vênia, não faz sentido, posto que coloca o carona, como acima dito, em situação jurídica pior que a do pedestre.
Atente-se, ainda, para a circunstância de ter sido o motorista processado e condenado no Crime pela morte do pedestre e lesão corporal do carona. Ora, a condenação penal torna certa a obrigação de reparar o dano, consoante o art. 91, I, do Código Penal. A sentença penal condenatória, transitada em julgada, constitui título executivo judicial (Código de Processo Civil, art. 584, I; Código de Processo Penal, art. 63). Pois bem: tendo sido o motorista condenado no Crime pela lesão corporal culposa causada no carona, como exonerá-lo de responsabilidade no Cível por não ter agido com dolo? Seria atentar contra vários dispositivos legais e até contra a própria coisa julgada.
Data vênia dos ilustres Civilistas citados, reputo forçar o texto do art. 1.057 do Código Civil – ou o art. 392 do Código de 2002 – equiparar a culpa, ainda que grave, ao dolo. Culpa é culpa, e dolo é dolo; não se confundem, como demonstrado no capítulo que estudamos. Esse artigo só fala em dolo; não pode ser aplicado no caso de culpa. Há de se concluir, destarte, que o art. 392 do Código Civil, tal como o art. 1.057 do Código revogado, só é aplicável a certos tipos de contratos graciosos, como a doação pura, o comodato etc.
A solução juridicamente correta, como se vê, é a aplicação dos princípios da responsabilidade aquiliana ao ilícito decorrente do transporte gratuito, posto que não se configura, na espécie, o contrato de transporte, nem contrato benéfico passível de enquadramento quer no art. 392 do Código Civil, quer no art. 1.057 do Código revogado.[3]
(Cavalieri Filho, 2010, p.331-332)
Dessa forma, o autor considera que não há justificativa para que a responsabilidade civil no transporte desinteressado de passageiro dependa da verificação de dolo ou culpa grave, devendo ser considera suficiente a constatação de culpa (em sentido amplo), para examinar se o motorista deve ou não ser responsabilizado pelo dano.
Cabe destacar os efeitos práticos dessa divergência de entendimentos. Nos processos judiciais de indenização por danos causados em acidentes de trânsito, a verificação da culpa no caso concreto geralmente assume o papel da questão mais relevante e complexa do processo.
Assim, a discussão jurídica acerca da necessidade de a culpa ser grave, para o motorista ser responsabilizado pelos danos, afeta, de forma determinante, os processos judiciais de indenização por danos causados a passageiros no oferecimento de transporte gratuito.
A título de exemplo, vale conferir o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT):
EMBARGOS INFRINGENTES - PRELIMINAR DE INADMISSÃO - DUAS AÇÕES - JULGAMENTO SIMULTÂNEO - SENTENÇA E ACÓRDÃO ÚNICOS - RECURSOS MANEJADOS EM PEÇA ÚNICA - NÃO ACOLHIMENTO - MÉRITO - ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO - CARONA - DOLO OU CULPA GRAVE DO MOTORISTA DO VEÍCULO ACIDENTADO - SÚMULA 145/STJ - NÃO CARACTERIZAÇÃO.
REJEITA-SE A PRELIMINAR DE INADMISSÃO DOS EMBARGOS INFRINGENTES MANEJADOS EM PEÇA ÚNICA, MESMO SENDO DUAS AS AÇÕES, POIS A SENTENÇA E O ACÓRDÃO DA APELAÇÃO FORAM ÚNICOS, EM RAZÃO DE JULGAMENTO SIMULTÂNEO DOS FEITOS, E, AINDA, RESTOU CLARA A PRETENSÃO DO RECORRENTE DE REFORMA DE AMBOS OS JULGADOS.
CONSOANTE DISPÕE O ENUNCIADO DA SÚMULA 145 DO COLENDO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: NO TRANSPORTE DESINTERESSADO, DE SIMPLES CORTESIA, O TRANSPORTADOR SÓ SERÁ CIVILMENTE RESPONSÁVEL POR DANOS CAUSADOS AO TRANSPORTADO QUANDO INCORRER EM DOLO OU CULPA GRAVE.
INEXISTINDO PROVA DO ESTADO DE EMBRIAGUEZ DO CONDUTOR DO VEÍCULO, E QUE TAL CONDIÇÃO TENHA CONTRIBUÍDO DECISIVAMENTE PARA A CAUSAÇÃO DO ACIDENTE, NÃO SE PODE A ELE ATRIBUIR CULPA GRAVE, ATÉ MESMO PORQUE A PERÍCIA NÃO FOI CONCLUSIVA ACERCA DA REAL CAUSA DO ACIDENTE.
NÃO SE PODE IMPOR SEVERA CENSURA AO MOTORISTA QUE ULTRAPASSE EM 10 KM/H A VELOCIDADE MÁXIMA, DE 60 KM/H, PERMITIDA PARA DETERMINADO LOCAL.
A PROMESSA DE PRESTAÇÃO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA À VÍTIMA, REALIZADA PELOS PAIS DO CONDUTOR DO VEÍCULO, NÃO SIGNIFICA RECONHECIMENTO DE CULPA, MESMO PORQUE ELA NÃO SE PRESUME.
(Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 2a Câmara Cível, Rel. Desembargador Sérgio Bittencourt, processo 0025654-10.2006.8.07.0001, publicado no DJE de 25/06/2009, p.62)
No caso objeto do julgado, o motorista havia ingerido bebida alcoólica antes de assumir a direção do veículo, e no momento do acidente o veículo estava numa velocidade de aproximadamente 70 km/h, embora a velocidade máxima permitida fosse a de 60 km/h. Em razão do acidente, o passageiro ficou paraplégico.
O TJDFT, ao julgar o caso, aplicou o entendimento da Súmula 145 do STJ e considerou que a responsabilização civil do motorista, por se tratar de transporte desinteressado, dependeria de comprovação de dolo ou culpa grave. No caso, entendeu-se que, embora tenha havido culpa do condutor no acidente, esta não teria sido grave, razão por que não seria possível responsabilizá-lo pelos danos causados ao passageiro.
O voto do Desembargador Teófilo Caetano é claro quanto à relevância dessa discussão jurídica para demandas desse tipo, na medida em que evidencia que o motorista agiu com culpa, mas esta não poderia ser considerada como “culpa grave”, para efeito da responsabilização civil do motorista.
Senhora Presidente, consoante bem externado pelos eminentes Relator e Revisor, a controvérsia estabelecida nesses autos reside na aferição se a conduta do embargado poderia ser qualificada como culpa grave ao ter determinado a ocorrência do acidente automobilístico que vitimara o embargante.
Após ouvir detidamente a exposição promovida pelos eminentes Relator e Revisor, não me resta nenhuma dúvida ao acompanhar o eminente Revisor. Com efeito, de acordo com o exposto por S. Ex.a, não há nenhum indício de que o fato de o embargado ter ingerido bebida alcoólica antes da ocorrência do sinistro tenha sido o fator determinante da ocorrência do evento.
Da mesma forma, a circunstância de ter o embargado imprimido velocidade acima do limite tolerável para o local em que se verificara o sinistro também não enseja a caracterização de gravidade suficiente, apta a ensejar sua responsabilização, eis que o limite que fora excedido alcançara pouco mais de 10% do parâmetro estabelecido pela legislação de trânsito.
Esse excesso, conquanto evidencie a negligência e ausência de dever de cautela, não pode, contudo, ensejar a caracterização da culpa grave, o que ocorreria se o limite estabelecido pela legislação de trânsito houvesse sido excedido em percentual consideravelmente superior que, consoante com o apontado, não foi o que se verificara, eis que o excesso foi de simplesmente 10km horários além do limite permitido, que era de 60km por hora.
Com essas breves considerações, e rogando vênia ao eminente Relator, acompanho o eminente Revisor, negando provimento aos embargos infringentes, ante a não-caracterização da culpa grave apta a ensejar a responsabilização do embargado. (grifos nossos)
Apresentado o contexto que o tema envolve, mostra-se oportuno a análise dos aspectos jurídicos abrangidos pela discussão.
A responsabilidade civil corresponde a matéria que, no direito brasileiro, encontra-se precipuamente disciplinada na legislação ordinária. Há poucos dispositivos constitucionais que tratam da responsabilidade civil, de modo que cabe ao legislador ordinário definir, para cada tipo de relação jurídica, como se dará a responsabilidade civil pelos danos causados.
Nessa perspectiva, se o Código Civil previu que o contrato de transporte se submete ao regime da responsabilidade objetiva e, excluiu dessa disciplina, o transporte desinteressado, deve-se concluir que a opção do legislador foi a de não criar uma regra específica para o transporte desinteressado, deixando esse tipo de relação jurídica submetida à regra geral da responsabilidade civil (responsabilidade subjetiva decorrente de ato ilícito, na forma do art. 186[4] do Código Civil).
A responsabilidade civil, em regra, é subjetiva, e o legislador excepcionou dessa regra o contrato de transporte, disciplinando-o sob o regime da responsabilidade objetiva, mas exclui do contrato de transporte o transporte desinteressado, deixando-o, portanto, na regra geral (responsabilidade subjetiva).
Embora não seja adequado que o transporte desinteressado receba o mesmo tratamento jurídico do que o transporte realizado de forma profissional (como atividade econômica), não é razoável que, no transporte desinteressado, seja mais difícil para o passageiro responsabilizar o motorista do que para um pedestre eventualmente envolvido no acidente, conforme explicado por Cavalieri Filho (trecho citado acima).
Quando a direção imprudente de um veículo causa danos a pessoas, todas as pessoas que sofreram os danos, em regra, devem estar sujeitas ao mesmo regime jurídico quanto ao direito à reparação dos danos, exceto quando existe de um contrato típico de transporte (situação diversa do transporte desinteressado), o qual, por previsão legislativa expressa, foi submetido ao regime da responsabilidade objetiva.
Em outras palavras, o acidente de trânsito, como os atos ilícitos de modo geral, devem ser analisado sob a ótica da responsabilidade subjetiva, exceto quanto às relações jurídicas de típico contrato de transporte, para as quais o legislador previu que o transportador assume os riscos da viagem (cláusula de incolumidade).
Ocorrendo um acidente de trânsito, num caso de transporte desinteressado, a situação deve ser vista sob o enfoque da responsabilidade extracontratual (decorrente de ato ilícito), e não a partir da responsabilidade contratual, como se o transporte desinteressado tivesse fosse objeto de um contrato.
Num caso de transporte desinteressado em que o passageiro não chega ao destino prometido pelo motorista, não há que se falar em responsabilização decorrente de descumprimento contratual do motorista que ofereceu o transporte, ou seja, não há razão por que considerar que a responsabilidade do motorista de transporte desinteressado esteja vinculada às normas de não cumprimento de contratos benéficos previstas no art. 392[5] do Código Civil.
3. Conclusão
O Código Civil de 2002, ao excluir o transporte desinteressado da disciplina jurídica destinada aos contratos de transporte (arts. 734 e seguintes do Código Civil), deixou de conferir tratamento específico a esse tipo de relação jurídica.
A inexistência de regras especiais para um determinada tipo de relação jurídica implica, naturalmente, a incidência das normas gerais, de modo que, havendo acidente de trânsito na realização de transporte desinteressado, a responsabilidade civil deve ser analisada sob a ótica da responsabilidade subjetiva, que é a regra geral da responsabilidade civil (art. 186 do Código Civil).
Nesse contexto, sugere-se uma releitura da Súmula no 145 do Superior Tribunal de Justiça, a fim de que as vítimas de direção imprudente de veículos recebam proteção uniforme do sistema de responsabilidade civil brasileiro.
4. Bibliografia
BRASIL, Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União – Brasília, DF. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em 10 de junho de 2013.
______. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 2a Câmara Cível, Rel. Desembargador Sérgio Bittencourt, processo 0025654-10.2006.8.07.0001, publicado no DJE de 25/06/2009, p.62
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 9a ed. São Paulo: Atlas, 2010.
GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de Direito Civil, volume 3: responsabilidade civil / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho – 11. Ed.rev. atual. E ampl – São Paulo: Saraiva, 2013.
GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. In: Peluso, Cezar (coord.). Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência. Barueri, São Paulo, Manole, 2007.
[1] GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. In: Peluso, Cezar (coord.). Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência. Barueri, São Paulo, Manole, 2007.
[2] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de Direito Civil, volume 3: responsabilidade civil / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho – 11. Ed.rev. atual. E ampl – São Paulo: Saraiva, 2013.
[3] Cavalieri Filho, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 9a ed. São Paulo: Atlas, 2010.
[4] Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
[5] Art. 392. Nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei.
Procurador Federal, pós-graduado em Direito Constitucional e Direito Tributário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Igor Guimarães. Responsabilidade civil no oferecimento de transporte desinteressado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jun 2014, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39921/responsabilidade-civil-no-oferecimento-de-transporte-desinteressado. Acesso em: 23 dez 2024.
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