PALAVRAS-CHAVE: desconsideração da personalidade jurídica; aspectos processuais; contraditório.
ABSTRACT: The purpose of this article is focused on the analysis of incident piercing the corporate veil, laid down in the new Code of Civil Procedure (PL 8.046/2010) project. The new procedure respects contradictory, because the partners and managers will be quoted prior to express their views on the application of episodic overcoming personality. It is concluded that the principle of patrimonial autonomy is special protection not only to shareholders but also to the whole society, which is why the weather is salutary incident, since there is much uncertainty about the subject, causing legal uncertainty.
Keywords: piercing the corporate veil, procedural aspects, adversary system.
Sumário: Introdução. 1. A pessoa jurídica. 1.1. Livre iniciativa e função social da propriedade. 1.2. O princípio da autonomia patrimonial. 2. Desconsideração da personalidade jurídica. 3. Teoria maior e teoria menor da desconsideração. 4. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Considerações finais. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O sistema de direito brasileiro consagra o princípio da autonomia patrimonial, o qual revela que o patrimônio dos sócios é distinto do patrimônio da pessoa jurídica, decorrência do princípio do direito de propriedade e da livre iniciativa, pilares da ordem econômica e financeira moldada pela Constituição Federal de 1988.
Em decorrência de fraudes e atos abusivos praticados pelos sócios e administradores, o dogma da autonomia patrimonial foi mitigado, para, em situações excepcionais, permitir responsabilizá-los, quando demonstrado que agiram fraudulentamente e abusivamente.
A despeito da positivação da teoria desconsideração, o sistema de direito brasileiro se ressente de normas procedimentais, notadamente diante da necessidade ou não de se observar o contraditório.
O Projeto do Novo Código de Processo Civil (PL 8.046/2010) prevê o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. É grande a expectativa em torno do referido incidente, que poderá ser suscitado nas diversas fases do processo (conhecimento, cumprimento de sentença e execução de título extrajudicial).
1. A PESSOA JURÍDICA
1.1. LIVRE INICIATIVA E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
A Constituição de 1988 garantiu o direito de propriedade (art. 5º, XXII), condicionada ao atendimento da sua função social (art. 5º, XXII). Vale dizer, há proteção à propriedade, mas não como direito absoluto, como já ocorreu no período medieval.
Por sua vez, a livre iniciativa é princípio constitucional tratado no caput do art. 170 da CF/88, considerada direito fundamental por garantir acesso ao mercado de produção de bens e serviços por conta, risco e iniciativa própria da pessoa que empreende qualquer atividade econômica, assegurando-se ainda a livre concorrência.
Portanto, o Estado brasileiro adotou as premissas da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, igualmente consideradas como a base da ordem econômica, a qual tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
O instituto da pessoa jurídica surgiu para suprir a própria deficiência da pessoa natural, que não encontrava em si, individualmente, forças e recursos necessários ao desenvolvimento de uma atividade de maior vulto. Nesse contexto, a sociedade empresarial objetiva somar forças para adquirir direitos e contrair obrigações.
Não se pode negar a importância da pessoa jurídica no desenvolvimento econômico, científico, cultural e social experimentado pelo mundo atual. A contribuição da pessoa jurídica foi muito bem observada por Venosa (2003, p. 250-251), que assim clarifica:
O século XX, podemos dizer, foi o século da pessoa jurídica. Desde então, pouquíssimas atividades da sociedade são desempenhadas pelo homem como pessoa natural. A pessoa jurídica, da mais singela à mais complexa, imiscui-se na vida de cada um, até mesmo na vida privada. Sentimos um crescimento exacerbado da importância das pessoas jurídicas. Modernamente, o peso da economia conta-se pela potencialidade das pessoas jurídicas, que transcendem o próprio Estado e se tornam supranacionais naquelas empresas que se denominam “multinacionais”.
1.2. O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PATRIMONIAL
Dentre os principais efeitos da aquisição da personalidade pela sociedade, destaca-se a sua autonomia patrimonial, que nada mais é do que a separação dos patrimônios dos sócios da pessoa jurídica. Nesse sentido é a lição de Fábio Ulhoa Coelho (2004, p.14), que leciona:
Da definição da sociedade empresária como pessoa jurídica derivam conseqüências precisas, relacionadas com a atribuição de direitos e obrigações ao sujeito de direito nela encerrado. Em outros termos, na medida em que a lei estabelece a separação entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, consagrando o princípio da autonomia patrimonial, os sócios não podem ser considerados os titulares dos direitos ou os devedores das prestações relacionados ao exercício da atividade econômica, explorada em conjunto. Será a própria pessoa jurídica da sociedade a titular de tais direitos e a devedora dessas obrigações. Três exemplos ilustram as conseqüências da personalização da sociedade empresária: a titularidade obrigacional, a titularidade processual e a responsabilidade patrimonial. (COELHO, 2004, p.14).
O princípio da autonomia patrimonial representa uma proteção tanto para os sócios como para as sociedades, pois aqueles não respondem com seu patrimônio por dívidas destas, e estas resguardam seu patrimônio no caso de dívidas de um ou alguns dos sócios. O que não ocorre com as sociedades irregulares, as quais, sem a devida personalidade jurídica, acabam por confundir seu patrimônio com o dos sócios.
A autonomia patrimonial se constitui em um dos principais impulsores da economia moderna, pois se não existisse esta separação de patrimônios, pessoas, empresários, industriais, comerciantes, não se lançariam aos riscos que a conjuntura econômica atual oferece.
Nos termos do art. 596 do Código de Processo Civil, os bens dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, exceto nos casos previstos em lei. Além disso, quando demandado, o sócio tem o direito de exigir que primeiro sejam exauridos os bens da sociedade.
Entretanto, deve ser registrado que atualmente o princípio da autonomia padece de certo desprestígio, em razão da “utilização fraudulenta do expediente, como meio de se furtar ao cumprimento de deveres legais ou contratuais; e na natureza da obrigação imputada à pessoa jurídica”. (Coelho, 2004, p.20).
Na mesma linha de raciocínio, Gonçalves (2007, p. 214) observa que o princípio da autonomia patrimonial tem sido utilizado por pessoas inescrupulosas “com a intenção de se locupletarem em detrimento de terceiros, utilizando a pessoa jurídica como uma espécie de ‘capa’ ou ‘véu’ para proteger os seus negócios escusos.”
Portanto, o reconhecimento da autonomia da pessoa jurídica não implica a tolerância com a manipulação, fraudes e abuso de direito. Ao contrário, espera como contrapartida ao reconhecimento da autonomia patrimonial o atendimento da finalidade social, como instrumento indispensável à organização da atividade econômica.
2. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem origem na Inglaterra, sendo que seu desenvolvimento ocorreu nos Estados Unidos e na Alemanha (BORBA, 2004, p. 33).
No Brasil, o jurista Rubens Requião é considerado o pioneiro no estudo do tema, tendo trazido o assunto à discussão por meio de conferência proferida na Universidade Federal do Paraná, denominada "Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica", constituindo-se em um importante marco da consagração do instituto na doutrina brasileira.
De acordo com a lição de Requião (1998, p.349-350), a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, também conhecida como doutrina da penetração, foi construída por dois autores europeus. Na Alemanha a tese surgiu com o Professor Rolf Serick, da Faculdade de Direito da Universidade de Heidelberg, tendo tido forte repercussão na Itália e na Espanha. Na Itália, o tema foi desenvolvido pelo Professor Piero Verrucolli, da Universidade de Pisa, com a monografia “Il Superamento della Personalità Giuridica delle Società di Capitali”, que apresenta a origem da doutrina na jurisprudência inglesa, no famoso caso Salomon vs. Salomon & Co.
Importante registrar que há doutrinadores que discordam da informação de que o caso Salomon vs. Salomon & Co, seja o marco histórico da da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido, Koury (2000, p.64), afirma que o marco jurisprudencial inicial teria ocorrido no ano de 1809, quando uma decisão do juiz norte-americano Marshall, no caso Bank of United States v. Deveaux, acabou por estender aos sócios os efeitos da personalidade da entidade da qual faziam parte.
A separação patrimonial não é um dogma intangível, visto que a proteção só se justifica quando a pessoa jurídica é usada adequadamente, não sendo tolerado o uso da sociedade para a prática de atos impróprios e desonestos. Sobre o tema, vale conferir a preciosa lição de Marlon Tomazette:
Desvirtuada a utilização da pessoa jurídica, nada mais eficaz do que retirar os privilégios que a lei assegura, isto é, descartar a autonomia patrimonial no caso concreto, esquecer a separação entre sociedade e sócio, o que leve a estender os efeitos das obrigações da sociedade. Assim, os sócios ficam inibidos de praticar atos que desvirtuem a função da pessoa jurídica, pois caso o façam não estarão sob o amparo da autonomia patrimonial.
Há que se ressaltar que não se destrói a pessoa jurídica, que continua a existir, sendo desconsiderada apenas no caso concreto. Apenas se coíbe o desvio na sua função, o juiz "se limita a confinar a pessoa jurídica à esfera que o direito lhe destinou". "A teoria da desconsideração não visa destruir ou questionar o princípio de separação da personalidade jurídica da sociedade da dos sócios, mas, simplesmente, funciona como mais um reforço ao instituto da pessoa jurídica, adequando-o a novas realidades econômicas e sociais, evitando-se que seja utilizado pelos sócios como forma de encobrir distorções em seu uso." (TOMAZETTE, 2001, p. 2).
O fundamento da teoria da desconsideração reside no fato de a sociedade empresária, em razão de sua autonomia patrimonial, ser utilizada para fins estranhos ao desempenho da atividade econômica. Nesse cenário, “a teoria tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua autonomia, enquanto instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraude.” (COELHO, 2004, p. 34).
A positivação da desconsideração foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro com o Código de Defesa do Consumidor (art. 28 da Lei n. 8.078/90). O segundo dispositivo do direito brasileiro a fazer menção à desconsideração foi o art. 18 da Lei n. 8.884/94, conhecida como Lei Antitruste. Em seguida, nova hipótese de desconsideração foi prevista no art. 4º da Lei n. 9.605/98, que dispõe sobre responsabilidade por lesões ao meio ambiente. Nos termos do dispositivo legal citado, “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao meio ambiente”. Por derradeiro, entre as inovações trazidas pelo Código Civil de 2002, destacou-se a previsão de forma ampla da teoria da desconsideração, assim disciplinada:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Segundo Gagliano e Pamplona Filho (2008, p. 233), na redação do artigo 50 do atual Código Civil, foi adotada a linha objetivista de Fábio Konder Comparato, pela qual a desconsideração prescinde da existência de elementos anímicos ou intencionais (propósito de fraudar a lei ou de cometer um ilícito). Para os citados autores, um dado dos mais relevantes que parece estar passando despercebido é o fato de que a nova norma genérica não limita a desconsideração aos sócios, mas também aos administradores da pessoa jurídica, de forma que o art. 50 do Código Civil pode se constituir em valiosíssimo instrumento para a efetividade da prestação jurisdicional, pois possibilita, inclusive, a responsabilização dos efetivos “senhores” da empresa, no caso – cada vez mais comum – da interposição de “testas-de-ferro” (vulgarmente conhecidos como “laranjas”) nos registros de contratos sociais, quando os titulares reais da pessoa jurídica posam como meros administradores, para efeitos formais, no intuito de fraudar o interesse dos credores.
3. TEORIA MAIOR E TEORIA MENOR DA DESCONSIDERAÇÃO
No direito brasileiro, segundo Coelho (2004, p.35), existem duas teorias da desconsideração. De um lado, a teoria mais elaborada, denominada de teoria maior, que condiciona o afastamento episódico da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas à caracterização da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto. De outro lado, a teoria menos elaborada, denominada de teoria menor, segundo a qual a simples insuficiência patrimonial da pessoa jurídica para arcar com suas obrigações, autorizaria a responsabilização de seus sócios.
Na teoria maior exige-se maior apuro e precisão, uma vez que se baseia em requisitos sólidos identificadores da fraude. Com efeito, a teoria maior exige um maior rigor e técnica do julgador, o qual não poderá perder de vista o caráter excepcional da medida.
Já a teoria menor da desconsideração é bem menos elaborada que a teoria maior, sendo reflexo da crise do princípio da autonomia patrimonial das sociedades empresárias. A teoria menor não exige pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica, bastando que a separação patrimonial da sociedade e dos sócios se constitua em obstáculo à satisfação dos credores.
[...] O seu pressuposto é simplesmente o desatendimento de crédito titularizado perante a sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta. De acordo com a teoria menor da desconsideração, se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo por obrigação daquela. A formulação menor não se preocupa em distinguir a utilização fraudulenta da regular do instituto, nem indaga se houve ou não abuso de forma. [...] Se a formulação maior pode ser considerada um aprimoramento da pessoa jurídica, a menor deve ser vista como o questionamento de sua pertinência, enquanto instituto jurídico (COELHO, 2004, p.46).
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça revela o entendimento de que a teoria maior é a regra geral no sistema jurídico brasileiro, reservando-se a aplicação da teoria menor em casos excepcionais, no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental[1]. Confira-se:
Responsabilidade civil e Direito do consumidor. Recurso especial. Shopping Center de Osasco-SP. Explosão. Consumidores. Danos materiais e morais. Ministério Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica. Desconsideração. Teoria maior e teoria menor. Limite de responsabilização dos sócios. Código de Defesa do Consumidor. Requisitos. Obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Art. 28, § 5º.
- [...]
- A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).
- A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.
- Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica.
- A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. - Recursos especiais não conhecidos. (Superior Tribunal de Justiça, Terceira Turma, Recurso Especial nº 279.273/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Data Julgamento: 04/12/2003, Publicação DJ 29/03/2004).
Vale ressaltar que a desconsideração da personalidade jurídica não deve se confundir com a dissolução da sociedade, visto que se torna ineficaz apenas em determinados casos concretos. Nessa linha de raciocínio Gustavo Tepedino acentua que o instituto da desconsideração jamais visou a retirada da personalidade jurídica, por isso a imprecisão em se referir ao tema como “despersonalização”. Confira-se:
Vale dizer, a desconsideração da personalidade jurídica não tem por objetivo a anulação da personalidade ou a dissolução da pessoa jurídica, mas tão somente a desconstituição de cenários reprovados socialmente. Supera-se o escudo protetor conferido pela pessoa jurídica, episodicamente, a fim de atribuir os efeitos de determinada relação obrigacional, instituída de forma fraudulenta ou abusiva, aos seus sócios ou administradores, os quais passam, por conseguinte, a responder com seu patrimônio pela dívida da pessoa jurídica. Daí a doutrina afastar o termo “despersonalização”, tendo também o projeto de Código Civil seguido este caminho ao distanciar-se da tentação autoritária, cogitada no projeto originário, que aventava a possibilidade de dissolução da pessoa jurídica nos casos de fraude ou abuso. (TEPEDINO, 2011, p. 2)
De acordo com Borba (2004, p. 34-35) vem sendo observados desvios na aplicação da desconsideração, uma vez que não se estaria atentando para o fato de se tratar de instituto destinado a situações específicas. Confira-se:
Alguns juízes e tribunais brasileiros vêm aplicando, com muita largueza, e sem qualquer rigor técnico, a teoria da “desconsideração”. Deve-se, contudo, reservar essa doutrina para situações excepcionais.
A regra, plenamente vigente (art. 50 do novo Código Civil), é a da absoluta separação dos patrimônios, somente se admitindo superá-la quando haja ruptura manifesta entre a realidade e a forma jurídica. Atinge-se o sócio porque a atuação foi dele e não da sociedade – simples anteparo; o ato foi ditado pelo interesse do sócio e não pelo da sociedade, que era distinto.
Esse aspecto subjetivo da responsabilidade é a pedra de toque da teoria da desconsideração – atinge-se o sócio administrador, controlador ou sócio que, de alguma maneira, abusou da personalidade jurídica, nela se escudando para cometer atos contrários “as coordenadas axiológicas da ordem jurídica”. (BORBA, 2004, p. 34-35).
Por fim, cumpre registrar que para Verçosa (2006, p. 104) “é tempo de ‘reconsideração da personalidade jurídica”, uma vez que os esforços devem ser direcionados para o fortalecimento da atividade empresarial, e não o contrário.
4. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Em razão de ser um instrumento relativamente novo no ordenamento jurídico brasileiro, freqüentemente são constatadas dúvidas quanto ao procedimento a ser adotado na desconsideração da personalidade jurídica, gerando insegurança jurídica.
A desconsideração da personalidade jurídica está atualmente disciplinada em diversos diplomas normativos. Todavia, no que tange aos procedimentos para a aplicação do instituto o tema é nebuloso, inclusive no Superior Tribunal de Justiça.
Como exemplo da jurisprudência vacilante, primeiramente vale citar o acórdão proferido no REsp 1096604/DF[2], Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, na qual se firmou entendimento pela desnecessidade da observância do contraditório.
Noutra frente, em recente decisão proferida no RMS 29.697/RS[3], Rel. Ministro Raul Araújo, o mesmo Tribunal assentou que a inobservância do contraditório na decretação da desconsideração da personalidade jurídica torna inválida a decisão, por não ter observado o devido processo legal.
Verifica-se que, dada a ausência de regra processual expressa, a jurisprudência é vacilante no que tange ao procedimento, uma vez que ainda não se definiu a forma com que a personalidade da pessoa jurídica pode ser desconsiderada.
Essa preocupação foi externada por Didier Jr. (2007, p. 159), que defende “a necessidade de preservação da garantia do contraditório e a de que a desconsideração é uma sanção e, como tal, somente poderia ser aplicada se respeitado o devido processo legal”.
Por isso a grande expectativa da comunidade jurídica em torno da positivação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto no Projeto do Novo Código de Processo Civil, conforme adiante se vê:
DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§ 1º Os pressupostos de desconsideração da personalidade jurídica serão previstos em lei.
§ 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.
§ 1º A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.
§ 2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.
§ 3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2º.
§ 4º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.
Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de quinze dias.
Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória, contra a qual caberá agravo de instrumento.
Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno.
Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou oneração de bens, havida em fraude de execução, após a instauração do incidente, será ineficaz em relação ao requerente.
[...}
Art. 1.074. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos juizados especiais.
É elogiável a preocupação com as regras processuais atinentes à desconsideração da personalidade jurídica, visto que a decretação da desconsideração causa impactos severos, uma vez que tem por efeito o afastamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, possibilitando a invasão do patrimônio pessoal dos sócios.
No CPC Projetado a desconsideração da personalidade jurídica “possui característica de um incidente processual, querendo daí depreender que prescinde de ação própria para provocar sua cognição”. (GAIO JR., 2013, p.7).
O incidente será suscitado no bojo dos autos do processo principal, cabível em todas as fases do processo (conhecimento, cumprimento de sentença e execução de título extrajudicial), conforme previsão do art. 134 do CPC Projetado.
Na forma do art. 135 do CPC Projetado o magistrado estabelecerá previamente o contraditório, tendo as partes o prazo de 15 (quinze) dias para apresentar defesa. Sobre o contraditório previsto no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, assim se manifestou Antônio Pereira Gaio Jr.:
Aponta-se aí a participação de ditas pessoas - o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica - que não compondo qualquer dos polos da demanda quando, por exemplo, de seu nascedouro e mediante o requerimento da desconsideração da personalidade jurídica, terão seus interesses jurídicos (neste caso, patrimoniais) possivelmente atingidos, caso venha o magistrado, convencido pela força probante acostada pelo requerente, julgar procedente o já digitado requerimento.
Traga-se aqui à luz as garantias do devido processo constitucional, com a correta citação daqueles, por ventura, apontados na peça requerente, não somente porque estando pela primeira vez a participar do feito, farão jus à aludida comunicação processual, inclusive, na forma pessoal - já que figurarão agora no processo, inegavelmente, como parte, pois que algo se pede em face deles -, como também, e aí na forma constitucionalmente “sagrada”, exercerem o pleno e efetivo contraditório acerca das afirmações a qualquer daqueles dirigidas, tendo como natural garantia, notadamente, o direito de requererem as provas que julgarem cabíveis, tudo no lapso temporal comum de 15 dias, [...] (GAIO JR., 2013, p. 9).
Somente depois de observado o princípio do contraditório e da ampla defesa é que será analisado o mérito do pedido de desconsideração, cuja decisão terá natureza interlocutória, contra a qual, portanto, caberá o recurso de agravo de instrumento, na forma do art. 136 do CPC Projetado. Vale salientar que caso o incidente tenha sido apreciado por relator, o recurso cabível será o agravo interno, conforme previsão do parágrafo único do art. 136 do Projeto do novo CPC.
A respeito do recurso cabível no incidente da desconsideração da personalidade jurídica, Paulo Machado Cordeiro faz a seguinte ressalva:
O recurso cabível da decisão tomada no incidente de desconsideração previsto no projeto do CPC é o agravo de instrumento, mas nada impede que uma demanda autônoma seja proposta e em razão desse expediente o recurso cabível seja considerado como apelação, caso a decisão ponha termo ao processo, como no caso de uma ação meramente declaratória, para certificar o direito da parte exeqüente ou autora de processo de conhecimento ver o seu crédito forrado, no caso da prática dos atos ultra vires autorizadores da disregard. (CORDEIRO, 2013, p. 915).
Portanto, de acordo com o CPC projetado, não se exige ação autônoma para apreciar o pedido de desconsideração. Porém, sócios e administradores terão a oportunidade de se manifestarem previamente nos autos, antes da decisão a respeito do pedido de desconsideração.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O princípio da autonomia patrimonial não existe apenas para satisfazer o interesse dos sócios, visto que a pessoa jurídica existe e deve ser usada por ser um instrumento de grande relevância da economia de mercado, sem, contudo, admitir o seu uso fraudulento.
A desconsideração da personalidade jurídica é caracterizada pela retirada episódica, momentânea e excepcional da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a fim de estender os efeitos de suas obrigações à pessoa de seus sócios ou administradores que causarem ato lesivo. Quando se aplica a desconsideração, de modo algum ocorre a dissolução ou a anulação da sociedade, mas simplesmente se verifica a suspensão da eficácia da autonomia patrimonial para um caso específico.
A falta de critérios do Poder Judiciário na utilização da desconsideração da personalidade jurídica demonstrou a necessidade de previsão normativa dos procedimentos a serem observados para a aplicação do instituto. Por isso a grande expectativa da comunidade jurídica em torno do CPC Projetado, visto que traz importante inovação, consistente no incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
O novo CPC, na forma projetada, prevê a utilização do incidente de desconsideração no processo de conhecimento, cumprimento de sentença e execução de título extrajudicial. Importante destacar a observância do contraditório e da ampla defesa, já que os sócios e administradores serão citados para se manifestar no prazo de quinze dias.
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[1]. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/jsp/revista/abreDocumento.jsp?componente=ATC&sequencial=1066285&num_registro=200000971847&data=20040329&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em 29 out. 2013.
[2] Disponível em:
http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=desconsidera%E7%E3o+da+personalidade+jur%EDdica+e+contradit%F3rio&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=3#. Acesso em 30 out. 2013.
[3] Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=desconsidera%E7%E3o+da+personalidade+jur%EDdica+e+contradit%F3rio&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=2>. Acesso em 30 out. 2013.
Procurador da Fazenda Nacional. Especialista em Direito Constitucional. Especialista em Direito Tributário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: EMILIANO, Eurípedes de Oliveira. Considerações a respeito do incidente de desconsideração da personalidade jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jun 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39937/consideracoes-a-respeito-do-incidente-de-desconsideracao-da-personalidade-juridica. Acesso em: 23 dez 2024.
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