RESUMO: Este trabalho apresenta uma visão do instituto da desaposentação sob o prisma dos princípios da seguridade social e dos demais princípios constitucionais, buscando aprofundar o tema sob a ótica da integridade do sistema jurídico.
Palavras-chave: Desaposentação. Princípios constitucionais. Integridade do sistema jurídico.
1 INTRODUÇÃO
Recentemente, chamou a atenção não só do meio jurídico, mas da sociedade em geral, o julgamento do Recurso Especial Repetitivo n. 1.334.488 – SC, no qual o Superior Tribunal de Justiça sedimentou o entendimento de que é possível a renúncia, pelo beneficiário, da aposentadoria que vem recebendo, para a finalidade de constituir novo benefício, com o aproveitamento das contribuições efetuadas após o primeiro jubilamento, o que é comumente denominado de desaposentação.
No entanto, este tema está longe de ser pacífico na doutrina e mesmo nos Tribunais, estando a questão afetada ao sistema de repercussão geral também no Supremo Tribunal Federal (RExt 661.256). Deste modo, se faz pertinente uma análise do tema sob a ótica dos princípios constitucionais, não restrita somente aos princípios da seguridade social, (artigos 194 e 195 CRFB), englobando todos os princípios da Carta Maior.
2 DESAPOSENTAÇÃO OU DESAPOSENTADORIA
Um dos assuntos mais debatidos atualmente na seara previdenciária é a possibilidade de desaposentação ou desaposentadoria, recentemente confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivo.
Podemos conceituar desaposentação como o “ato de desfazimento da aposentadoria por vontade do titular, para fins de aproveitamento do tempo de filiação em contagem para nova aposentadoria, seja no mesmo ou em outro regime previdenciário”, conforme Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari[1].
No entanto, mesmo após decisão do STJ admitindo a possibilidade de o segurado que se aposentar e continuar trabalhando poder renunciar ao benefício precedente para a concessão de outro mais benéfico, com o aproveitamento das contribuições posteriores ao primeiro jubilamento, há grande parcela da doutrina e da jurisprudência que não acolhe tal instituto, de forma que o assunto é cercado de polêmica, especialmente se analisado sob a perspectiva dos princípios da seguridade social insculpidos na Constituição Federal.
3 PRINCÍPIOS DA SEGURIDADE E DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Faremos aqui uma breve síntese dos principais princípios constitucionais que regem o sistema previdenciário e da seguridade social, insculpidos na Constituição Federal, a fim de demonstrarmos os pilares do sistema brasileiro.
A seguridade social, em nossa Carta Maior, vem regida nos artigos 194 e 195. Nestes dois dispositivos há uma disposição de diversos princípios, sendo os principais deles e os que mais nos interessam para o estudo do instituto da desaposentação os a seguir elencados.
Além dos princípios expressos, a doutrina especializada também ressalta a importância dos princípios implícitos, decorrentes dos artigos 1º e 3º da Constituição Federal. Conforme Marina Vasques Duarte, podemos enumerar diversos princípios, tais como o princípio da insuficiência, do in dubio pro misero, princípio da solidariedade (explanado a seguir) e princípio do não retrocesso social, bem como o princípio da isonomia[2].
3.1 Princípio da Solidariedade
A solidariedade é mais do que um princípio da seguridade social, configurando-se como um dos objetivos fundamentais da república, insculpido no artigo 3º da Constituição Federal. Conforme o artigo 195 da Constituição, “a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei”. Tal princípio também pode ser verificado na redação do artigo 40 da Constituição Federal, que trata da previdência dos servidores públicos, ao mencionar que é “assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário”.
3.2 Equidade na forma de participação no custeio
Também denominado de princípio da solidariedade contributiva. A responsabilidade de manutenção do sistema é de todos, Estado e sociedade. No momento da contribuição, é a sociedade quem contribui. No momento de usufruir do benefício, é o segurado quem o faz.
Isso nos leva a ressaltar que o sistema previdenciário brasileiro é o sistema de repartição, e não de capitalização. Conforme Marina Vasques Duarte[3]:
No nosso sistema atual brasileiro prevalece o da repartição e não o da capitalização, decorrência da adoção do princípio da solidariedade. E isso pode ser constatado no dispositivo 195, inciso II, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta ou indireta, nos termos da lei, (...).
Portanto, o trabalhador financia não a sua previdência, mas a seguridade social como um todo, que compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à Saúde, à Assistência social e à Previdência.
3.3 Seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços
Conforme tais postulados, o legislador seleciona as prestações previdenciárias disponibilizadas aos segurados e também quais segurados terão direito a que benefícios. Já pela distributividade, se elegem as necessidades que serão atendidas de forma prioritária. Conforme Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Júnior, a distributividade na seguridade social “permitirá que determinadas prestações não sejam alcançadas a quem não tiver necessidade”[4].
3.4 Precedência da fonte de custeio
De acordo com o artigo 195, § 5º, da Carta Maior, nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total, sob pena de ferir o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema (artigo 201, caput, Constituição Federal).
Ainda se pode vislumbrar diversos outros princípios igualmente importantes para o sistema, tais como a universalidade da cobertura e do atendimento, uniformidade e equivalência de benefícios para urbanos e rurais, irredutibilidade do valor dos benefícios, diversidade da base de financiamento, dentre outros.
4 OS ARTIGOS 11, § 3º E 18, § 2º, LEI N. 8.213/91, E A SEGURIDADE SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
De acordo com a legislação previdenciária brasileira (Lei n. 8.213/91), o aposentado no regime geral que retorna às atividades laborativas é enquadrado na categoria de contribuinte, e não de beneficiário da Previdência Social, nos termos do artigo 11, § 3º:
§ 3º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social–RGPS que estiver exercendo ou que voltar a exercer atividade abrangida por este Regime é segurado obrigatório em relação a essa atividade, ficando sujeito às contribuições de que trata a Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, para fins de custeio da Seguridade Social. (Incluído pela Lei nº 9.032, de 1995 – grifos nossos)
Diante da disposição legal acima, o artigo 18, § 2º, restringiu as prestações cabíveis ao aposentado que retorna à atividade:
§ 2º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social–RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 1997)
Através da leitura dos referidos dispositivos legais, infere-se que o aposentado que retorna à atividade foi alçado à categoria de contribuinte (sujeito passivo de obrigação tributária), sendo que o período contributivo posterior à concessão do seu benefício não pode ser utilizado na concessão de outro benefício, somente fazendo jus o aposentado ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado.
Verifica-se que a restrição do artigo 18, § 2º existe desde a publicação da Lei n. 8.213/91, embora com redação um pouco diferente.
Assim, a questão que se põe é se há conflito entre estes dispositivos e os princípios constitucionais que regem a seguridade social.
Inicialmente, cabe destacar que a existência de contribuintes para o sistema sem serem, ao mesmo tempo, beneficiários, possui base constitucional, especialmente nos princípios da solidariedade e da equidade na forma de participação no custeio, que advém do sistema de repartição de nosso sistema previdenciário: a contribuição previdenciária é dirigida ao fundo de custeio geral do sistema, sendo os recursos utilizados em prol da seguridade, não se destinando a compor fundo privado com contas individuais.
É de ser ressaltado que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 3.105/DF, declarou constitucional contribuição instituída sobre os proventos de inatividade dos servidores públicos, sob o fundamento de “Obediência aos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial, bem como aos objetivos constitucionais de universalidade, equidade na forma de participação no custeio e diversidade da base de financiamento.” (Rel. p/ acórdão Min. Cezar Peluso, DJ de 18/02/2005).
As mesmas razões de decidir também foram utilizadas pela Suprema Corte em julgamento que considerou constitucional a cobrança de contribuição previdenciária dos aposentados do Regime Geral da Previdência Social, quais sejam, obediência ao princípio da universalidade ou solidariedade que regem o custeio da Previdência Social:
EMENTA: Contribuição previdenciária: aposentado que retorna à atividade: CF, art. 201, § 4º; L. 8.212/91, art. 12: aplicação à espécie, mutatis mutandis, da decisão plenária da ADIn 3.105, red. p/acórdão Peluso, DJ 18.2.05. A contribuição previdenciária do aposentado que retorna à atividade está amparada no princípio da universalidade do custeio da Previdência Social (CF, art. 195); o art. 201, § 4º, da Constituição Federal “remete à lei os casos em que a contribuição repercute nos benefícios”.
(RE 437640/RS, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, DJ 02/03/2007)
Diante da explanação acima efetuada, se conclui que o instituto da desaposentação possui vedação legal expressa que se compatibiliza com o caráter solidário do sistema previdenciário, não sendo, portanto, permitida a utilização das contribuições dos trabalhadores em gozo de aposentadoria para a obtenção de nova aposentadoria ou elevação da já auferida, sob pena de subversão para um sistema individualista/patrimonialista que não se coaduna com os fundamentos da Seguridade Social.
Neste sentido, Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Junior[5]:
(...). Sendo o regime de financiamento da previdência social, nos termos da Constituição inspirado pelos princípios da solidariedade e da obrigatoriedade, a contribuição não pressupõe, sempre, uma contraprestação.
Na redação atual do dispositivo focado, o segurado aposentado poderá habilitar-se apenas aos benefícios de salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado. Paradoxalmente, o art. 103 do RPS assegura à aposentada que retornar à atividade o pagamento de salário-maternidade, hipótese que, além de rara na prática, em princípio seria ilegal.
O tempo de serviço posterior à aposentadoria não pode ser empregado para a revisão de aposentadoria proporcional. (grifos nossos)
5 A DESAPOSENTAÇÃO NA VISÃO DOS TRIBUNAIS E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
A desaposentação, apesar de admitida em sede de recurso repetitivo pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.334.488 – SC, Relatoria do Min. Herman Benjamin), é ainda muito controvertida nos Tribunais Brasileiros.
Em muitos julgados, prevalece o entendimento de que não há possibilidade de desaposentação pelos argumentos já expostos anteriormente, como a ilegalidade e a incompatibilidade do instituto com os princípios da solidariedade e equidade na fonte de custeio. Por todos, citamos o seguinte acórdão:
PREVIDENCIÁRIO - DESAPOSENTAÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 18, § 2º, DA LEI N. 8.213/91 - RENÚNCIA NÃO CONFIGURADA.
I - Desnecessidade de produção de prova pericial, já que a matéria é eminentemente de direito. Questão preclusa, já que, decidida por despacho, não houve a interposição de recurso.
II - Os arts. 194 e 195 da Constituição, desde sua redação original, comprovam a opção constitucional por um regime de previdência baseado na solidariedade, onde as contribuições são destinadas à composição de fundo de custeio geral do sistema, e não a compor fundo privado com contas individuais.
III - O art. 18 da Lei 8213/91, mesmo nas redações anteriores, sempre proibiu a concessão de qualquer outro benefício que não aqueles que expressamente relaciona. O § 2º proíbe a concessão de benefício ao aposentado que permanecer em atividade sujeita ao RGPS ou a ele retornar, exceto salário-família e reabilitação profissional, quando empregado. Impossibilidade de utilização do período contributivo posterior à aposentadoria para a concessão de outro benefício no mesmo regime previdenciário. Alegação de inconstitucionalidade rejeitada.
IV - As contribuições pagas após a aposentação não se destinam a compor um fundo próprio e exclusivo do segurado, mas todo o sistema, sendo impróprio falar em desaposentação e aproveitamento de tais contribuições para obter benefício mais vantajoso.
V - Não se trata de renúncia, uma vez que a apelante não pretende deixar de receber benefício previdenciário. Pelo contrário, pretende trocar o que recebe por outro mais vantajoso, o que fere o disposto no art. 18, § 2º, da Lei n. 8.213/91.
VI - Matéria preliminar rejeitada. Apelação improvida.
(TRF3. Apelação 2008.61.83.000250-9 – SP. 9ª Turma. Relator: Des. Marisa Santos. DJE 17/09/2010).
No entanto, outra corrente doutrinária e jurisprudencial, esta majoritária no STJ, se filia ao entendimento de que a aposentadoria é um direito patrimonial disponível, e, diante desta natureza, poderia ser renunciada em favor da implantação de outro benefício mais favorável. Por todos, citamos o seguinte acórdão:
PREVIDENCIÁRIO. DESAPOSENTAÇÃO. DECADÊNCIA. PRESCRIÇÃO. CONCESSÃO DE NOVA APOSENTADORIA. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE NORMA IMPEDITIVA. DESNECESSIDADE DE DEVOLUÇÃO DOS VALORES RECEBIDOS NA VIGÊNCIA DO BENEFÍCIO ANTERIOR. (...). A possibilidade de renúncia à aposentadoria por segurado da Previdência Social, para fins de averbação do respectivo tempo de contribuição em regime diverso ou obtenção de benefício mais vantajoso no próprio Regime Geral, com o cômputo de tempo laborado após a inativação, é amplamente admitida por esta Corte e pelo Superior Tribunal de Justiça. Tal posicionamento fundamenta-se em entendimento já consolidado no sentido de que a aposentadoria é direito patrimonial, disponível, passível de renúncia, ato que, tendo por finalidade a obtenção de situação previdenciária mais vantajosa, atende à própria natureza desse direito, sem afronta aos atributos de irreversibilidade e irrenunciabilidade. Precedentes. (...). (TRF4, AC 5000566-45.2011.404.7107, Sexta Turma, Relatora p/ Acórdão Vivian Josete Pantaleão Caminha, DJE 12/07/2012)
Assim, é necessário um estudo aprofundado, à luz dos princípios constitucionais que fundamentam todo o sistema jurídico brasileiro, do fundamento pelo qual a desaposentação é permitida, qual seja, de que seria um direito patrimonial disponível do segurado.
De acordo com Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari[6], a renúncia ao benefício de aposentadoria é viável:
Entendemos que a renúncia é perfeitamente cabível, pois ninguém é obrigado a permanecer aposentado contra o seu interesse. E, neste caso, a renúncia tem por objetivo a obtenção futura de benefício mais vantajoso, pois o beneficiário abre mão dos proventos que vinha recebendo, mas não do tempo de contribuição que teve averbado.
Sob outro prisma, é inegável que a aposentadoria é também considerada um ato administrativo, cujo desfazimento se daria por meio da anulação ou revogação, com pressupostos lhes são próprios, como, por exemplo, hipóteses de erro ou fraude na concessão do benefício. Como qualquer outro ato administrativo, é regido pelo princípio da legalidade (artigo 37, caput, da Constituição Federal), determinando este que qualquer atividade administrativa deve ser autorizada por lei.
E, como já visto anteriormente, o artigo 18, §2º, da Lei 8.213/91 somente autoriza ao aposentado que retorna à atividade o direito ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado, estando a Administração Pública adstrita a tal determinação, não lhe sendo permitido por lei a concessão da desaposentação.
Sobre o tema, vejamos a lição de Lorena de Mello Rezende Colnago[7]:
É de suma relevância lembrar que um fato jurídico ingressa no mundo jurídico através de um suporte que, geralmente, é uma norma. No caso da aposentadoria, o fato natural: inatividade remunerada pelos cofres públicos torna-se jurídica e exigível através de um ato administrativo vinculado: aposentação, que necessita de um agente capaz, de expressa previsão legal, de objeto lícito e moral, além do interesse público.
Assim, para que o fato jurídico aposentadoria seja retirado do ordenamento, pelo princípio da paridade das formas, necessário se fará um outro ato administrativo vinculado: o ato da desaposentação, com requisitos idênticos à emissão do ato de aposentação, veículo introdutor da aposentadoria.
Embora haja o interesse do segurado, no caso da desaposentação, não há interesse público, previsão legal, e, nem mesmo, objeto lícito e mora – face à aferição de vantagem em detrimento do equilíbrio financeiro dos Regimes de Previdência, ou seja, o enriquecimento ilícito do segurado.
Assim, não há como consensualizar o ato administrativo da aposentadoria com um direito patrimonial disponível do segurado, sendo esta uma visão estreita do instituto que somente beneficia ao indivíduo que deseja se desaposentar. É a sobreposição do interesse privado sobre o interesse público. A aposentadoria também decorre de lei, não sendo um simples contrato entre particulares.
É de se ressaltar que a aplicação do princípio in dubio pro misero de forma incondicional deve ser analisado com ressalvas, de acordo com Miguel Horvath Júnior[8]:
A aplicação do princípio in dubio pro misero de forma invariável é uma afronta ao sistema previdenciário que adota o modelo contributivo, gerando distorções e injustiças, na medida em que o benefício pessoal concedido sem a devida auscultação do efetivo direito se reverte em prejuízo de todos os beneficiários.
O referido autor[9] conclui citando a seguinte passagem de Armando de Oliveira Assis:
Qualquer interpretação generosa, de cunho individualista, que imponha à instituição gravames não previstos, torna-se, em verdade, vantagem pessoal sustentada pela coletividade segurada. Destarte, por muito que se comova o humano coração do interpretador, o do julgador ante um caso pessoal, terá que ser contido pela indelével lembrança de que o seguro social é uma instituição de direito público – onde o social é a palavra de ordem – e em consequência não pode, não deve, sob hipótese alguma, ser deformado por interesses privados, de pessoas ou de grupos.
Outro fator importante para a análise do argumento de que a desaposentação é um direito patrimonial disponível é o caráter alimentar do benefício. A tese da desaposentação prega que o direito à aposentadoria é disponível, no entanto, a devolução de todos os valores recebidos é indevida, por não haver irregularidade no ato. Neste sentido, Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari explicitam que “não há necessidade de devolução destas parcelas, pois, não havendo irregularidade na concessão do benefício recebido, não há o que ser restituído”[10].
No entanto, é unânime na doutrina o caráter alimentar dos benefícios previdenciários, que, deste modo, seriam irrenunciáveis e irrepetíveis. Neste sentido, segue julgado do Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. VALORES RECEBIDOS EM VIRTUDE DE SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. RESTITUIÇÃO INCABÍVEL. CARÁTER ALIMENTAR.
1. Não ocorre omissão quando o Tribunal de origem decide fundamentadamente todas as questões postas ao seu crivo.
2. Prestações alimentícias, assim entendidos os benefícios previdenciários, percebidas de boa-fé não estão sujeitas à repetição.
3. Recurso a que se nega seguimento.
(STJ, 6ª Turma, decisão monocrática proferida no REsp nº 698.335/RS, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJU 15.04.2005)
Portanto, é difícil visualizar como o direito à aposentadoria pode ser disponível/renunciável e ao mesmo tempo indisponível/irrenunciável. Parece haver aqui uma contradição, pois ou o direito é renunciado em seu todo, com o desfazimento integral do ato, o que determinaria a devolução de todos os valores recebidos, ou o direito é indisponível, e, assim, irrenunciável por parte de seu titular, que, no caso da aposentadoria, voluntariamente a requereu perante a Previdência Social.
Ainda, há que se ter em conta o fato de, sendo a aposentadoria um ato de vontade do seu titular, quando perfectibilizada, estaria sob o manto do ato jurídico perfeito (artigo 5º, XXXVI, da CRFB), sendo este uma garantia ao direito fundamental da segurança jurídica. Deste modo, a renúncia unilateral, somente do segurado, sem a concordância da Administração, não poderia ser admitida.
E não há que se falar em não aplicação dos postulados constitucionais acima explicitados quando se trata de administração pública, pois, na realidade, a desaposentação afeta o fundo de custeio do sistema previdenciário, o que interessa à sociedade como um todo, pois ela é quem financia o sistema e os seus cidadãos são os destinatários dos benefícios.
Assim, a desaposentação afronta também o princípio constitucional da isonomia (artigo 5º, caput, da CRFB), conferindo tratamento mais benéfico ao segurado que se aposenta com proventos proporcionais e continua trabalhando para, posteriormente, obter nova aposentadoria em melhores condições, em detrimento daquele que continuou trabalhando até possuir um período contributivo maior para se aposentar com proventos integrais.
Neste sentido, podemos afirmar que a desaposentação não é livre e desembaraçada, gerando ônus a pessoa jurídica de direito público diretamente envolvida na constituição do ato, no caso, ao INSS (e, porque não dizer, a todos os demais beneficiários do sistema), sendo claro que o desfazimento da aposentadoria repercute em ônus no sistema previdenciário, uma vez que o mesmo período e salários-de-contribuição seriam somados duas vezes, com o objetivo de majorar a renda mensal da nova aposentadoria, o que repercute diretamente no equilíbrio financeiro e atuarial do sistema (artigo 201, caput, da Constituição Federal).
No que tange ao desrespeito ao princípio da necessidade de prévia fonte de custeio, e do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, destaca-se o voto do Min. Herman Benjamin no Recurso Especial Repetitivo 1.334.488 – SC. Como é sabido, o recurso determinou a possibilidade de desaposentação sem a devolução dos valores recebidos. No entanto, o relator ressalvou seu entendimento pessoal quanto à necessidade da devolução, conforme segue:
Nesse ponto é importante resgatar o tema sobre a possibilidade de renúncia à aposentadoria para afastar a alegada violação, invocada pelo INSS, do art. 18, § 2º, da Lei 8.213/1991. Este dispositivo apenas veda a concessão de prestação previdenciária aos segurados que estejam em gozo de aposentadoria, não sendo o caso quando esta deixa de existir pelo seu completo desfazimento. Ou seja, se a aposentadoria deixa de existir juridicamente, não incide a vedação do indigitado dispositivo legal.
Tal premissa denota o quanto a devolução dos valores recebidos pela aposentadoria objeto da renúncia está relacionada ao objetivo de obter nova e posterior aposentação.
Primeiramente porque, se o aposentado que volta a trabalhar renuncia a tal benefício e não devolve os valores que recebeu, não ocorre o desfazimento completo do ato e, por conseguinte, caracteriza-se a utilização das contribuições para conceder prestação previdenciária não prevista (a nova aposentadoria) no já mencionado art. 18, § 2º.
Além disso, ressalto relevante aspecto no sentido de que o retorno ao estado inicial das partes envolve também a preservação da harmonia entre o custeio e as coberturas do seguro social.
(...).
Dentro desse contexto interpretativo, a não devolução de valores do benefício renunciado acarreta utilização de parte do mesmo período contributivo para pagamento de dois benefícios da mesma espécie, o que resulta em violação do princípio da precedência da fonte de custeio, segundo o qual "nenhum benefício pode ser criado, majorado ou estendido, sem a devida fonte de custeio" (art. 195, § 5º, da CF e art. 125 da Lei 8.213/1991). Sobre o mencionado princípio, cito julgado do Supremo Tribunal Federal:
CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – MAJORAÇÃO PERCENTUAL - CAUSA SUFICIENTE - DESAPARECIMENTO - CONSEQUENCIA – SERVIDORES PUBLICOS FEDERAIS.
O disposto no artigo 195, PAR. 5., da Constituição Federal, segundo o qual "nenhum beneficio ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio", homenageia o equilíbrio atuarial, revelando princípio indicador da correlação entre, de um lado, contribuições e, de outro, benefícios e serviços.
(...)
(ADI 790, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, DJ 23-04-1993 PP-06918 EMENT VOL-01700-01 PP-00077 RTJ VOL-00147-03 PP-00921.)
(...).
A renúncia à aposentadoria sem devolução de valores mescla essas duas possibilidades, impondo aos segurados uma aposentadoria o mais prematura possível, para que mensal ou anualmente (fator previdenciário e coeficiente de cálculo) seja majorada.
Tais argumentos já seriam suficientes, por si sós, para estabelecer a devolução dos valores da aposentadoria como condição para a renúncia desta, mas adentro ainda em projeções de aplicação do entendimento contrário que culminariam, data venia, em total insegurança jurídica, pois desestabilizariam e desvirtuariam o sistema previdenciário. Isso porque todos os segurados passariam a se aposentar com os requisitos mínimos e, a cada mês de trabalho e nova contribuição previdenciária, poderiam pedir nova revisão, de forma que a aposentadoria fosse recalculada para considerar a nova contribuição. (grifos nossos)
6 CONCLUSÃO
Diante de toda a exposição feita, cremos que não há como coadunar o instituto da desaposentação com o conjunto dos princípios constitucionais, especialmente os que regem o sistema da Seguridade Social.
Como visto, a possibilidade de o segurado aposentado que retorna à atividade poder renunciar ao benefício concedido para postular nova aposentadoria, com o aproveitamento das contribuições posteriores ao primeiro benefício, pode parecer justa do ponto de vista do beneficiário. No entanto, tal possibilidade fere os mais basilares princípios do sistema da seguridade social brasileira, tais como o princípio da solidariedade, do equilíbrio financeiro e atuarial, da precedência da fonte de custeio e da equidade do custeio. Toda a coletividade de possíveis beneficiários e de contribuintes é quem sai prejudicada pela desaposentação, que causa desequilíbrio nos cofres da Previdência Social.
NOTAS
[1] CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 14ª ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, pág 591.
[2] DUARTE, Marina Vasques. Direito Previdenciário. 4ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2005, pág. 23.
[3] DUARTE, Marina Vasques, op. cit., pág. 29.
[4] ROCHA, Daniel Machado da; BALTAZAR JUNIOR, Jose Paulo. Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pág. 36.
[5] ROCHA, Daniel Machado da; BALTAZAR JUNIOR, Jose Paulo, op. cit., págs. 111-112.
[6] CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista, op. cit., pág. 592.
[7] COLNAGO, Lorena de Mello Rezende. Desaposentação. Revista de Previdência Social, ano XXIX, nº 301, dezembro de 2005, p.793.
[8] HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito Previdenciário. 8ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2010, pág. 78
[9] HORVATH JUNIOR, Miguel, op. cit., pág. 78.
[10] CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista, op. cit., pág. 593.
REFERÊNCIAS
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 14ª ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.
COLNAGO, Lorena de Mello Rezende. Desaposentação. Revista de Previdência Social, ano XXIX, nº 301, dezembro de 2005.
DUARTE, Marina Vasques. Direito Previdenciário. 4ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2005.
HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito Previdenciário. 8ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
ROCHA, Daniel Machado da; BALTAZAR JUNIOR, Jose Paulo. Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
Procuradora Federal desde 2007. Especialista em Direito Público pela UnB. Graduada pela Universidade de Caxias do Sul desde janeiro de 2005.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANTONI, Fernanda De. A desaposentação sob a ótica dos princípios constitucionais da seguridade social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39938/a-desaposentacao-sob-a-otica-dos-principios-constitucionais-da-seguridade-social. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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