Ao apreciar a Reclamação nº 3.034-2/PB AgR, Min. Rel. Sepúlveda Pertence, o STF tratava da legitimidade de ato que autorizou o sequestro de valores do Estado da Paraíba para o pagamento de precatório em favor de pessoa portadora de doença incurável (neoplasia maligna). Por questões formais, a Corte julgou improcedente a reclamação, autorizando referida medida.
Desse julgado, porém, o que nos chamou atenção foi o voto do Min. Eros Grau que representa uma das várias oportunidades que tem posto em prática linha teórica que vem desenvolvendo no campo científico há muito.[1]
Basicamente, a idéia central defendida se contrapõe àquilo que defende os chamados clássicos da hermenêutica, especificamente no que concerne à relação (distinção, para muitos) entre a interpretação e aplicação do direito.
Segundo Eros Grau, não há razões para encarar interpretação e aplicação das normas jurídicas a partir de uma relação autônoma. Ambas sempre serão o resultado da aplicação dos textos legais ao caso concreto, fazendo com que tais enunciados lingüísticos possuam caráter provisório, a serem ultrapassados por razões obtidas perante determinado caso.[2]
As conseqüências práticas desse raciocínio – algumas delas percebidas no inteiro teor do acórdão tido como paradigma – são diversas.
Com base nela, desenvolve-se uma filosofia da interpretação cujas bases foram criadas por dois grandes pensadores que não vieram da área jurídica: Martin Heidegger[3] e Hans-Georg Gadamer[4]. Segundo tais autores, o ato de interpretar funde-se em um juízo de pré-compreensão ou de pré-juízo, respectivamente. Inicia sua trajetória com conceitos prévios, que são substituídos paulatinamente por outros com maior grau de adequação, formando o chamado círculo hermenêutico.
Uma excelente explicação do fenômeno é apresentada pelo Professor da Unisinos, Lenio Luiz Streck:
Os contributos da hermenêutica filosófica para o direito trazem uma nova perspectiva para a hermenêutica jurídica, assumindo grande importância as obras de Heidegger e de Gadamer. Com efeito, Heidegger, desenvolvendo a hermenêutica no nível ontológico, trabalha com a idéia de que o horizonte do sentido é dado pela compreensão; é na compreensão que se esboça a matriz do método fenomenológico. A compreensão possui uma estrutura em que se antecipa o sentido. Ela se compõe de aquisição prévia, vista prévia e antecipação nascendo desta estrutura a situação hermenêutica. Já Gadamer, seguidor de Heidegger, ao dizer que ser que pode ser compreendido é linguagem, retoma a idéia de Heidegger da linguagem como casa do ser, onde a linguagem não é simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado. Daí que, para Gadamer, ter um mundo é ter uma linguagem. As palavras são especulativas, e toda interpretação é especulativa, uma vez que não se pode crer em um significado infinito, o que caracterizaria o dogma. A hermenêutica, desse modo, é universal, pertence ao ser da filosofia, pois, como assinala Palmer, a concepção especulativa do ser que está na base da hermenêutica é tão englobante como a razão e a linguagem. [5]
Exemplificando tal cenário, o alemão Arthur Kaufmann afirma:
[..] O ácido clorídrico não é, nem nos termos estritos da letra da lei, nem segundo o sentido possível da palavra [..], uma arma. Por outro lado, o apuramento da matéria de facto sem referência a uma norma não conduz à questão de saber se o ácido clorídrico é uma arma. Só se será confrontado com esta questão, se se ‘pré-compreender’ o acontecimento como um possível caso de roubo qualificado. Se se ‘pré-compreender’ o caso diferentemente, porventura como tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é uma tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é uma ‘arma’. Vemos que sem pré-compreensões razoáveis nunca se chega aos problemas jurídicos relevantes. Também é fácil de identificar, aqui, o ‘círculo’ do processo de compreensão: só quando eu sei o que é roubo qualificado, posso entender o caso concreto como um caso de roubo qualificado; todavia, não posso saber o que é roubo qualificado sem uma análise correcta do caso concreto. [6]
Como se vê, tem-se um processo de unificação entre interpretação e aplicação do Direito em que o intérprete ganha maior liberdade de atuação, reproduzindo a norma para determinado caso concreto. As normas se distanciam dos textos, tornando-se o resultado da interpretação sistemática destes.[7] Há uma necessária inclusão de fatos e da realidade na própria estrutura da norma.
A metódica estruturante do alemão Fredrich Müller representa bem essa idéia.[8]
A filosofia da interpretação, de um lado, não abandona os dogmas clássicos da hermenêutica – instrumentos valiosos demais para serem descartados[9]. Ela vai além e encara a tarefa interpretativa como sendo algo “criador”. Nas palavras de Eros Roberto Grau, o intérprete “não é um criador ex nihilo; ele produz a norma sim, mas não no sentido de fabricá-la, porém no de reproduzi-la. O produto da interpretação é a norma. Mas ela já se encontra potencialmente, no invólucro do texto normativo”. [10]
No caso julgado pelo STF, o ponto que chama a atenção do acórdão em questão é o seguinte trecho extraído do voto do Min. Eros Grau:
Permito-me, ademais, insistir em que ao interpretarmos/aplicarmos o direito – porque aí não há dois momentos distintos, mas uma só operação – ao praticarmos essa única operação, isto é, ao interpretarmos/aplicarmos o direito não nos exercitamos no mundo das abstrações, porém trabalhamos com a materialidade mais substancial da realidade. Decidimos não sobre teses, teorias ou doutrinas, mas situações do mundo da vida. Não estamos aqui para prestar contas a Montesquieu ou a Kelsen, porém para vivificarmos o ordenamento, todo ele. Por isso o tomamos na sua totalidade. Não somos meros leitores de seus textos – para o que nos bastaria a alfabetização – mas magistrados que produzem normas, tecendo e recompondo o próprio ordenamento.
Nesse contexto, a doutrina clássica merece apenas uma menção, para nos furtarmos daquela divertida ironia de Eros Roberto Grau: “Uma das conferências que assisti em um ainda recente congresso versava sobre a distinção entre os métodos de interpretação, gramatical, teleológico etc. De repente, percebi que quem palestrava tinha mais de duzentos anos, um autêntico morto sem sepultura, fazendo ressoar o Bolero, de Ravel...”.[11]
Bibliografia
Ávila, Humberto. Teoria dos Princípios, 5ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006.
Carvalho, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 1993.
Gadamer, Hans-Georg, Verdade e Método. Vols. I e II, Petrópolis: Vozes, 1997 e 2002.
Grau, Eros Roberto. “Prefácio”. In: Ávila, Humberto. Teoria dos princípios. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004.
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Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988.
Kaufmann, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: ______.; Hassemer, Winfried. (orgs.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
Müller, Friedrich. Juristische Methodik, 5ª ed., Berlin: Duncker & Humblot, 1993.
Müller, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
Pontes, Helenílson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o Direito Tributário, São Paulo: Dialética, 2000.
Silva, Kelly Susane Alflen da. Hermenêutica Jurídica e Concretização Judicial. Porto Alegre: Antônio Fabris, 2000.
Silva, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: ______. (org.), Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005.
Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
[1] Cf., do Autor, sobretudo, Grau, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 2005, passim.
[2] Grau, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 2005, p. 178. Cf, no mesmo sentido, Pontes, Helenílson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o Direito Tributário, São Paulo: Dialética, 2000, p. 31 e s. e Ávila, Humberto. Teoria dos Princípios, 5ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 31 e s.
[3] Cf. Martin Heidegger, Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988.
[4] Cf. Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método. Vols. I e II, Petrópolis: Vozes, 1997 e 2002.
[5] Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 165-6.
[6] Kaufmann, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: ______.; Hassemer, Winfried. (orgs.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 190-1.
[7] A distinção entre texto e norma, de aceitação ímpar na doutrina, leva a quatro extremos: (a) existem no ordenamento normas sem qualquer texto legal correspondente; (b) textos sem norma alguma; (c) normas contidas em um único texto; e (d) textos unificados para formar uma única norma. Sobre o tema, Cf. Humberto Ávila, Teoria dos Princípios, p. 22; Eros Roberto Grau, Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, p. 82; Kelly Susane Alflen da Silva, Hermenêutica Jurídica e Concretização Judicial. Porto Alegre: Antônio Fabris, 2000, p. 399 e s.; Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 1993, p. 7; Friedrich Müller, Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 39 e s.
[8] De acordo com o pensamento de Müller a norma jurídica é constituída de um programa normativo (designa a soma dos dados lingüísticos normativamente pertinentes extraídos do texto da norma) – construído do ponto de vista interpretativo –, e do âmbito normativo (se configura pela coordenação dos elementos factuais estruturantes que são extraídos da realidade social com a perspectiva seletiva e valorativa do programa da norma), construído pela intermediação lingüística dos dados do mundo real. Cf. Friedrich Müller,Juristische Methodik, 5ª ed., Berlin: Duncker & Humblot, 1993, passim. No Brasil, do Autor, v. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional, cit., p. 51 e s.
[9] Vide nesse sentido a crítica de: Silva, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: ______. (org.), Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 116.
[10] Grau, Eros Roberto. Op. cit., p. 28.
[11] Grau, Eros Roberto. “Prefácio”. In: Ávila, Humberto. Teoria dos princípios. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 9.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. Repensando a interpretação/aplicação do Direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39963/repensando-a-interpretacao-aplicacao-do-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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