INTRODUÇÃO
Cresce, nas mais diversas Seções Judiciárias, o número de processos judiciais nos quais se busca a condenação do Estado ao pagamento de indenização por suposta desapropriação indireta de imóvel declarado terra indígena tradicionalmente ocupada nos termos do artigo 231 da Constituição Federal.
É que, a teor do § 6º do artigo 231 da Constituição Federal, a nulidade de títulos de propriedade incidentes sobre áreas de terras indígenas tradicionais não gera direito à indenização, salvo no que tange às benfeitorias tradicionalmente ocupadas.
Diante de tal panorama, os ocupantes não índios vêm indevidamente optando pela ação de desapropriação indireta como meio para obtenção de indenização pelo valor da terra nua.
A exata compreensão do tema depende da análise do instituto da “desapropriação indireta” e do procedimento de demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas.
TERRA INDÍGENA TRADICIONALMENTE OCUPADA. IMÓVEL DE PROPRIEDADE UNIÃO FEDERAL (ART. 20, XI, DA CF).
A desapropriação indireta se verifica quando a Administração Pública se apossa unilateralmente de bem de propriedade de particular, sem observância ao procedimento formalmente estabelecido. A propósito, os valiosos ensinamentos de Hely Lopes Meirelles (in Direito Administrativo Brasileiro, 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 1990, p. 537):
“A desapropriação indireta não passa de esbulho da propriedade particular e, como tal, não encontra apoio em lei. É situação de fato que se vai generalizando até mesmo como os interditos possessórios. Consumado o apossamento dos bens e integrados no domínio público, tornam-se, daí por diante, insuscetíveis de reintegração ou reivindicação, restando ao particular espoliado haver a indenização correspondente, da maneira mais completa possível, inclusive correção monetária, juros moratórios, compensatórios a contar do esbulho e honorários de advogado, por se tratar de ato caracteristicamente ilícito da Administração. Convém distinguir, todavia, os casos de apossamento sem declaração de utilidade pública dos regularmente decretados mas em que, por tolerância do particular, fica retardada a indenização, a despeito de utilizado o bem pelo expropriante. No primeiro caso há esbulho manifesto; no segundo, não se configura ato ilícito da Administração, mas simples irregularidade no processo expropriatório, sem acarretar as consequências da ilicitude civil, embora devida a indenização.”
Neste sentido, no que tange a procedimentos de demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupada – desde que regularmente conduzidos, nos termos do artigo 231 da Constituição Federal e do Decreto 1.775/96 –, não há que se falar em desapropriação indireta.
De início, porque as áreas, por se encontrarem no interior de terras indígenas tradicionalmente ocupadas, pertencem (e sempre pertenceram) à própria União Federal, nos termos do art. 20, XI, da Constituição Federal.
Os ocupantes não índios nunca foram, portanto, proprietários de tais imóveis. Consequentemente, não houve esbulho de propriedade particular, nem desapropriação indireta.
Encontrando-se o imóvel no interior de terra indígena tradicionalmente ocupada, de propriedade da União Federal, não há que se falar em esbulho de propriedade particular, nem, portanto, em desapropriação indireta. Consequentemente, não assiste aos ocupantes não índios o direito à indenização pelo valor da terra nua.
A desapropriação indireta também não se configura em virtude da inexistência de ato ilício da Administração, haja vista a existência de prévio e regular processo administrativo, no qual são realizados estudos de natureza fundiária, antropológica, sociológica, cartográfica, etno-histórica, jurídica e ambiental, bem como garantidos o contraditório e a ampla defesa, tudo em consonância com o Decreto 1.775/96.
Assim, se não há esbulho de propriedade particular, nem tampouco ato ilícito da Administração, não se configura o apossamento administrativo ou desapropriação indireta.
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.097.980/SC, consolidou o entendimento no sentido de que a regular demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas, nos termos do artigo 231 da Constituição Federal, não possui natureza de desapropriação indireta:
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO BUSCANDO A DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE PORTARIA DE DEMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. DECRETO 20.910/32. RECURSO PROVIDO.
1. Hipótese na qual se busca, mediante ação ajuizada em 16 de setembro de 2004, a nulidade da Portaria Ministerial 793/94, publicada no DOU de 20 de outubro de 1994, expedida pelo Ministro de Estado da Justiça, pela qual declarou de posse permanente indígena, para efeito de demarcação, terras situadas no Estado de Santa Catarina (Área Indígena Pinhal), caracterizadas como de ocupação tradicional e permanente indígena, nos termos dos arts. 231, da CF/88, e 17 da Lei 6.001/73. Importante registrar que, em consequência da referida demarcação, a parte autora recebeu a devida indenização pelas benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (art. 231, § 6º, da CF/88).
2. O Tribunal de origem afastou a prescrição da ação, decretada pelo magistrado de primeiro grau de jurisdição, sob o fundamento de que a criação da reserva indígena, por criar restrições ao uso da propriedade, deve ser comparada à desapropriação indireta, cuja ação, de natureza real, está sujeita ao prazo prescricional vintenário.
3. O procedimento de demarcação de terras indígenas não pode ser comparado ao apossamento administrativo — também chamado de desapropriação indireta —, caracterizado como verdadeiro esbulho possessório, sem a necessária garantia do contraditório e do devido processo legal.
4. A demarcação de terras indígenas é precedida de processo administrativo, por intermédio do qual são realizados diversos estudos de natureza etno-histórica, antropológica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, necessários à comprovação de que a área a ser demarcada constitui terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
5. Ademais, o particular que eventualmente esteja na posse da área a ser demarcada, segundo o disposto no § 8º do art. 2º do Decreto 1.775/96, tem a possibilidade de se manifestar, apresentando à FUNAI razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de identificação e delimitação da área a ser demarcada.
6. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não perdem essa característica por ainda não terem sido demarcadas, na medida em que a demarcação tem efeito meramente declaratório. Assim entendido, não se pode falar em perda ou restrição da propriedade por parte de quem nunca a teve.
7. Não se tratando, portanto, de apossamento administrativo, incide, no caso, a norma contida no art. 1º do Decreto 20.910/32, a qual dispõe que "todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza, prescreve em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem".
8. Recurso especial provido, para extinguir o processo, com resolução de mérito, com fundamento no art. 269, IV, do Código de Processo Civil, por estar configurada a prescrição da ação.”
(STJ, REsp 1.097.980/SC, Rel. Min. DENISE ARRUDA, Primeira Turma, DJe 1º/04/2009)
Assim, se não há esbulho de propriedade particular, nem tampouco ato ilícito da Administração a configurar desapropriação indireta, não é devido o pagamento de indenização, salvo no que tange a benfeitorias de boa-fé eventualmente existentes, a teor do § 6º do artigo 231 da Constituição Federal.
DA INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 650/STF.
Descabido, em todo caso, eventual argumento de que as terras não ocupadas por índios quando do advento da Constituição Federal de 1988 não mais integram o patrimônio da União Federal, nos termos do artigo 20, XI, da Constituição Federal.
Consoante entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da PET 3388 – Caso Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a tradicionalidade da ocupação não se desconfigura quando, ao tempo da promulgação da Constituição Federal de 1988, a terra não se encontrava ocupada por índios em decorrência de esbulho praticado por não-índios. A propósito, trecho do voto do Relator, Ministro Carlos Ayres Britto:
“11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das “fazendas” situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da 'Raposa Serra do Sol'.” (STF, PET 3388/RR, Rel. Min. CARLOS AYRES BRITO, DJe 1º/07/2010)
Consoante, pois, assentado naquele julgado, a tradicionalidade da ocupação indígena não desaparece quando a ausência de ocupação da terra decorre de esbulho praticado por não-índios. Em tal hipótese, não se pode afirmar que se trata de aldeamento extinto. Não se aplica, consequentemente, a Súmula 650/STF.
CONCLUSÃO
Os títulos de propriedade de imóveis localizados no interior de terras indígenas tradicionalmente ocupadas são nulos e não geram nenhum direito à indenização, salvo no que tange a benfeitorias decorrentes de comprovada ocupação de boa-fé, nos termos do § 6º do artigo 231 da Constituição Federal.
Desde que o respectivo processo de demarcação tenha sido regularmente conduzido, não há que se falar em desapropriação indireta, nem, portanto, em indenização pelo valor da terra nua.
Os imóveis são e sempre foram de propriedade da União Federal, nos termos do art. 20, XI, da Constituição Federal, e não há ato ilícito da Administração a configurar o desapossamento administrativo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 24a ed., São Paulo: Malheiros, 1990.
Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARENSI, Marcela de Andrade Soares. Descabimento de indenização por suposta desapropriação indireta de imóvel declarado terra indígena tradicionalmente ocupada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jun 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39981/descabimento-de-indenizacao-por-suposta-desapropriacao-indireta-de-imovel-declarado-terra-indigena-tradicionalmente-ocupada. Acesso em: 23 dez 2024.
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