RESUMO: o presente trabalho analisa a Lei nº 9.847/99, que acolheu, no artigo 18, §3º, a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que esse diploma legal compõe o sistema jurídico de proteção do consumidor. Esse sistema não é formado exclusivamente pela Lei nº 8.078/90, mas também pela legislação que regula o Sistema Nacional de Combustíveis. Deve ocorrer o diálogo das fontes, porquanto a Constituição Federal preceitua que a defesa do consumidor é direito fundamental e princípio da ordem econômica.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O Sistema Nacional de Combustíveis como integrante da ordem econômica constitucional e a defesa dos direitos do consumidor; 3. A teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica na Lei nº 9.847/99; 4. Conclusão.
1. Introdução
A Constituição Federal dispensou tratamento especial à defesa do consumidor, ora considerou um direito fundamental (art. 5º, XXXII), na qual o Estado promoverá, na forma da lei, sua defesa, ora como princípio da ordem econômica (art. 170, V), que, por sua vez, será fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
A Lei nº 8.078/90, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor – CDC, não é a única fonte normativa que garante, promove e assegura os titulares de relações de consumo a proteção de seu patrimônio de ordem material ou intangível.
Com efeito, a legislação que disciplina o sistema nacional de combustíveis, integrante, portanto, da ordem econômica, também está voltada à promoção da defesa do consumidor. O postulado constitucional de defesa do consumidor deve ser observado por todo o ordenamento jurídico, em diálogo das fontes, e não exclusivamente pelo microssistema do CDC.
Por conseguinte, sempre que determinada lei garantir de algum modo a proteção da vida, saúde, e segurança do consumidor, por imperativo lógico-legal, poderá se somar ao microssistema do CDC, incorporando-se na tutela especial e tendo a mesma precedência no trato da relação de consumo.
Nesse contexto, a Lei nº 9.847/99, que dispõe sobre a fiscalização das atividades relativas ao abastecimento nacional de combustíveis, estabeleceu a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade sempre que esta constituir obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao abastecimento nacional de combustíveis ou ao Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis, a teor de seu artigo 18, §3º.
O presente artigo demonstra que esse diploma legal, compondo o sistema de defesa e garantia dos direitos do consumidor acolheu a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica.
2. O Sistema Nacional de Combustíveis como integrante da ordem econômica constitucional e a defesa dos direitos do consumidor
O abastecimento nacional de combustíveis é considerado de utilidade pública (art. 1º, §1º, Lei nº 9.847/99). Acrescente-se que as políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia tem como objetivo proteger os interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos (art. 1º, III, Lei nº 9.478/97).
Ainda, a Agência Nacional do Petróleo – ANP tem como finalidade promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis, cabendo-lhe implementar, em sua esfera de atribuições, a política nacional de petróleo, gás natural e biocombustíveis, contida na política energética nacional, com ênfase na garantia do suprimento de derivados de petróleo, gás natural e seus derivados, e de biocombustíveis, em todo o território nacional, e na proteção dos interesses dos consumidores quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos (art. 8º, I, Lei nº 9.478/97).
O setor de fornecimento de combustíveis reveste-se de relevante utilidade pública, devendo, por isso mesmo, ser regulado pelo Estado com o rigor necessário, a fim de garantir ao mercado consumidor o oferecimento de produtos e serviços de boa qualidade, o que tem apoio, fundamentalmente, no art. 170, inciso V, da CRFB/88[[1]].
Com efeito, a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social observando o princípio da defesa do consumidor, nos termos da norma constitucional acima referida.
O princípio da defesa do consumidor se aplica a todo o capítulo constitucional da atividade econômica[[2]]. Trata-se de princípio constitucional impositivo (Canotilho), a cumprir dupla função, como instrumento para a realização do fim de assegurar a todos existência digna e objetivo particular a ser alcançado[[3]]. A promoção da defesa do consumidor há de ser lograda mediante a implementação de específica normatividade e de medidas dotadas de caráter interventivo, como pondera Eros Roberto Grau[[4]].
Verifica-se, nesse contexto, que as normas que regem o Sistema Nacional de Combustíveis, inseridas no plano jurídico-normativo da ordem econômica (arts. 5º, XXIII, e 170, V, CF/88), tem como objetivo a defesa e proteção do consumidor relativo à vida, saúde, e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento nos produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos.
Por exemplo, para a abertura de um posto de combustíveis a legislação de regência exige uma série de requisitos, documentos e diligências, tais como apresentar projeto básico da instalação, em conformidade às normas e aos padrões técnicos aplicáveis à atividade; licença ambiental, ou outro documento que a substitua, expedida pelo órgão competente; projeto de controle de segurança das instalações aprovado pelo órgão competente[[5]].
Dessa forma, o objetivo principal dessas exigências é, justamente, zelar pela garantia do serviço de fornecimento de combustíveis de acordo com padrões adequados de qualidade e segurança, visando a proteção da vida e saúde do consumidor.
O mandamento constitucional de proteção do consumidor deve ser cumprido por todo o sistema jurídico, em diálogo de fontes, e não somente por intermédio do CDC. Assim, e nos termos do art. 7º do CDC, sempre que uma lei garantir algum direito para o consumidor, ela poderá se somar ao microssistema do CDC, incorporando-se na tutela especial e tendo a mesma preferência no trato da relação de consumo[[6]].
É importante sublinhar que o CDC não exclui as demais normas protetoras dos interesses do consumidor, ao contrário, recebe-as como normas importantes à consecução de seus objetivos, possibilitando uma abertura do sistema para outros direitos constantes de leis, tratados e regras administrativas, no intuito de aplicarem as normas mais favoráveis ao consumidor. Diante de fontes plúrimas, surge a necessidade de coordenação entre as normas do ordenamento jurídico[[7]].
Portanto, a proteção do consumidor constitui um microssistema jurídico de tutela, cujas normas, coordenadas entre si, têm caráter multi e interdisciplinar, com princípios, regras próprias e valores, com o qual se comunicam outras normas legais, que visam proteger direitos dessa natureza.
3. A teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica na Lei nº 9.847/99
Um desses princípios e regras específicas para a proteção do consumidor é a desconsideração da pessoa jurídica, na hipótese de infração à lei, e sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores, prevista no artigo 28, caput, e §5º, da Lei nº 8.078/90.
Considerando, ademais, que o abastecimento nacional de combustíveis é considerado de utilidade pública (art. 1º, §1º, Lei nº 9.847/99), e afeta diretamente os interesse e direitos dos consumidores, é legitima a aplicação do disposto no §3º do artigo 18 da Lei nº 9.847/99, quanto à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica sempre que esta constituir obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao Sistema Nacional de Combustíveis:
Art. 18. Os fornecedores e transportadores de petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade, inclusive aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes do recipiente, da embalagem ou rotulagem, que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor.
(....)
§3o Poderá ser desconsiderada a personalidade jurídica da sociedade sempre que esta constituir obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao abastecimento nacional de combustíveis ou ao Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis.
Esse dispositivo legal expressamente acolhe a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, que não exige fraude, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, apenas a mera insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, “ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica[[8]]”.
Constata-se, portanto, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao Sistema Nacional de Combustíveis, em virtude da ausência de bens passíveis de constrição judicial em nome da sociedade empresária.
Deve-se, assim, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade empresária, redirecionando-se a cobrança judicial para incluir no polo passivo os sócios, buscando-se, portanto, no patrimônio das pessoas físicas dos sócios bens passíveis de constrição judicial a fim de satisfazer a dívida decorrente do descumprimento da legislação de regência do Sistema Nacional de Combustíveis.
4. Conclusão
Em remate, conclui-se que artigo 18, §3º, da Lei nº 9.847/99 permite dispor de um meio legítimo e viável de executar judicialmente as penalidades decorrentes da legislação que regula o Sistema Nacional de Combustíveis, desconsiderando a personalidade jurídica da sociedade empresária, redirecionando-se ao patrimônio dos sócios, ante a comprovada incapacidade de adimplemento e a inexistência de patrimônio social, aplicando-se a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica.
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Notas:
[[1]] AC 201051010055438, Desembargador Federal Guilherme Calmon Nogueira da Gama, TRF2 - Sexta Turma Especializada, E-DJF2R - Data: 11/05/2012 - Página: 469/470.
[[2]] RE 351.750, Rel. p/ o ac. Min. Ayres Britto, julgamento em 17-3-2009, Primeira Turma, DJE de 25-9-2009.
[[3]] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 10 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 248.
[[6]] RESP 200702787248, Nancy Andrighi, STJ - Terceira Turma, DJE Data: 23/08/2010 RDDP VOL.: 00091 PG: 00140.
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União. Pós-graduado em Direito Público e Direito do Trabalho. Ex-advogado da Caixa Econômica Federal. Ex-advogado da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão. Ex-analista processual do Ministério Público da União. Ex-conciliador federal. Ex-advogado privado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ERICEIRA, Cássio Marcelo Arruda. A teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica na legislação de regência do sistema nacional de combustíveis Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jul 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40049/a-teoria-menor-da-desconsideracao-da-personalidade-juridica-na-legislacao-de-regencia-do-sistema-nacional-de-combustiveis. Acesso em: 23 dez 2024.
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