Resumo: Compete aos Municípios, no âmbito de sua circunscrição, registrar e licenciar, na forma da legislação, ciclomotores, veículos de tração e propulsão humana e de tração animal, fiscalizando, autuando, aplicando penalidades e arrecadando multas decorrentes de infrações. Ausente legislação municipal que possibilite o registro e licenciamento destes veículos, não se pode exigir do cidadão o cumprimento de uma regra que o ente público competente não disponibiliza o serviço para efetivá-la. De acordo com os artigos 24, XVII e 129 do Código de Trânsito Brasileiro, artigo 5º, XXXIX da Constituição Federal Pátria, artigo 1º do Código Penal e demais legislação pertinente.
Sumário: 1. Introdução; 2. Inaplicabilidade do art. 230, V do CTB por inexistência de infração; 3. Princípios constitucionais protetivos; 4. O abuso de autoridade por autuação indevida; 5. Conclusão.
1. Introdução
Com base na legislação brasileira, para esse tipo de veículo denominado ciclomotor, deverá existir legislação própria no âmbito municipal a que pertença o veículo, para regulamentar a obtenção de seu registro e licenciamento.
A Lei federal nº 9.503/97, conhecida como Código de Trânsito Brasileiro – CTB, em seu artigo 24, inciso XVII, assim determina:
Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
(....)
XVII – registrar e licenciar, na força da legislação, ciclomotores, veículos de tração e propulsão humana e de tração animal, fiscalizando, autuando, aplicando penalidades e arrecadando multas decorrentes de infrações;
Ainda, em seu artigo 129:
Artigo 129. O registro e o licenciamento dos veículos de propulsão humana, dos ciclomotores e dos veículos de tração animal obedecerão à regulamentação estabelecida em legislação municipal do domicílio ou residência de seus proprietários.
Dessa forma, se não houver lei municipal que regulamente essa matéria, uma vez que o CTB exige a criação de Lei Municipal para disciplinar o registro e o licenciamento de veículos ciclomotores, não poderá ser autuada qualquer tipo de infração neste sentido, e a consequente penalidade ao condutor e ao veículo será inaplicável.
Se não houver previsão legal municipal, não poderá haver exigibilidade por parte de qualquer órgão de trânsito acerca do registro e licenciamento de ciclomotores, reitere-se, pois, que essa regra se aplica apenas no Município de domicílio ou residência do proprietário de ciclomotor que não possuir disciplinado em lei o procedimento de registro e licenciamento.
2. A inaplicabilidade do art. 230, V do CTB por inexistência de infração.
Como já dito anteriormente, se não houver Lei Municipal que regulamente a matéria, na circunscrição de domicílio ou residência do proprietário do ciclomotor, uma vez que a legislação brasileira exige a criação de lei municipal para disciplinar a obtenção do registro e do licenciamento de veículos ciclomotores, não poderá ser autuada a infração descrita no art. 230, V e a consequente penalidade ao condutor deste tipo de veículo.
Portanto, neste caso, o condutor do veículo tipo ciclomotor não poderia cometer a infração insculpida no art. 230, V do CTB.
Art. 230. Conduzir o veículo:
(...)
V – que não esteja registrado e devidamente licenciado;
Torna-se claro que, por não haver previsão legal no Município de domicílio ou residência do proprietário de ciclomotor, e obedecendo a preceito de ordem federal que exige a criação de lei municipal para disciplinar o registro e licenciamento deste tipo de veículo, não há que se falar em desobediência ao Código de Trânsito Brasileiro por parte do condutor.
Simplesmente não haverá o cometimento da infração descrita no art. 230, V do CTB, devido à impossibilidade de obtenção dos documentos de registro e licenciamento do veículo. Portanto, o condutor não deverá ser punido por fatos oriundos da omissão do Município, ente que possui privativamente o dever de legislar sobre esta matéria, e de fornecer os meios para sua concretização.
Tese confirmada por diversos julgados dos tribunais pátrios:
Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. APREENSÃO. VEÍCULO NÃO REGISTRADO NO DETRAN. ARTS. 24 E 129 CTB. O Código de Trânsito Brasileiro comete aos Municípios a competência para registrar e licenciar veículos de propulsão humana, ciclomotores e de tração animal. Não há notícia tenha o Município de Agudo legislado à respeito, por isso não poderia e nem poderá o Estado, pela autarquia de trânsito, tomar as vezes do Município, pena de usurpação de competência legalmente estabelecida. Ilegal, pois, as apreensões e as multas. Agravo provido. Unânime. (Agravo de Instrumento Nº 70033380791, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Genaro José Baroni Borges, Julgado em 24/02/2010)
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. REEXAME NECESSÁRIO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO. BICICLETA ELÉTRICA. CICLOMOTOR. REGISTRO E LICENCIAMENTO. INEXISTÊNCIA DE REGULAÇÃO MUNICIPAL. ISENÇÃO DE CUSTAS PROCESSUAIS. Trata-se de mandado de segurança em que a parte autora objetiva a circulação em via pública da bicicleta elétrica adquirida, sem a necessidade de registro no órgão de trânsito. Com efeito, o mandado de segurança é ação heróica de caráter constitucional, de rito sumário, erigido para a proteção de direito líquido e certo do impetrante violado por ato de autoridade pública que deve estar claramente demonstrado quando do ajuizamento. Mostra-se plenamente pertinente a impetração do presente writ preventivo. O Código de Trânsito Brasileiro acomete aos Municípios a competência para registrar e licenciar veículos de propulsão humana, ciclomotores e de tração animal. Consoante depreende-se da prova carreada aos autos e dos fatos narrados na inicial, não há legislação do Município de Osório acerca do registro e licenciamento de veículos ciclomotores, com o que fica desautorizado qualquer órgão autuador de proceder às exigências contidas nos arts. 120 e 130, do CTB, bem como na Resolução CONTRAN nº 168/04. Precedentes TJ/RS. As pessoas jurídicas de direito público são isentas do pagamento de custas processuais nos termos da Lei 13.471, de 23.06.2010 que alterou o art. 11 do Regimento das Custas (Lei 8.121/85). APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA E REEXAME NECESSÁRIO PREJUDICADO (Apelação e Reexame Necessário Nº 70035608710, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Niwton Carpes da Silva, Julgado em 15/12/2011)
Ementa: APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. VEÍCULO DE PROPULSÃO HUMANA. REGISTRO E LICENCIAMENTO. COMPETÊNCIA DOS MUNICÍPIOS. ILEGALIDADE DA APREENSÃO. DESPESAS COM REMOÇÃO E DEPÓSITO. IMPOSSIBILIDADE. I - O Código de Trânsito Brasileiro comete aos Municípios a competência para registrar e licenciar veículos de propulsão humana, ciclomotores e de tração animal. Como não há notícia tenha o Município legislado à respeito, não poderia a autoridade coatora apreender o veículo. Tampouco poderia e poderá o Estado, pela autarquia de trânsito, tomar as vezes do Município, pena de usurpação de competência legalmente estabelecida. II - Ilegal a apreensão, não há como imputar ao apelado o pagamento de eventuais despesas com remoção e depósito. Apelo desprovido. Sentença confirmada por sua parte dispositiva. Unânime. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70030674808, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Genaro José Baroni Borges, Julgado em 21/10/2009.
Assim, não há que se falar em infração, pois o condutor não deu causa a sua existência. O Estado não pode exigir do cidadão uma postura que depende do próprio Estado para se concretizar, e que o Estado se mantem inerte sobre o assunto.
3. O abuso de autoridade por autuação indevida.
É dever de toda e qualquer autoridade conhecer e aplicar a legislação, principalmente aquela específica de suas atribuições, portanto, em tese, deduz-se que é dever do agente de trânsito, em qualquer esfera, conhecer e aplicar as normas nos moldes da legislação pátria e da região onde exerce suas funções.
Assim, nenhuma autoridade poderá alegar desconhecimento da lei para cometimento de atos claramente arbitrários, abusivos ou ilegais.
Desse modo, se é obrigação do agente de trânsito conhecer e aplicar as leis corretamente, quando aplicadas de forma contrária, em prejuízo do cidadão, culminará em abuso de autoridade.
Sendo assim, o ato de autoridade que consistir em violação dolosa dos direitos do cidadão, ou do patrimônio da pessoa natural ou jurídica, com o elemento subjetivo já mencionado, poderá constituir em delito descrito no art. 4º, h, da Lei n. 4.898/65:
Art. 4º. Constitui também abuso de autoridade:
(...)
h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;
Autuar, multar e/ou apreender o veículo ciclomotor por falta dos documentos de registro e licenciamento nos municípios onde não há lei que regulamente a obtenção desses documentos, nem lei que defina a fiscalização, sua forma e penalidades, atinge a honra, a dignidade e o patrimônio do cidadão, causando-lhe prejuízos de cunho moral e material, passível de gerar a responsabilidade civil objetiva por parte do Estado e o ressarcimento ao cidadão atingido. Todo dano injustificável causado merece ressarcimento.
4. Autuação indevida sobre ciclomotores pode gerar danos morais e materiais.
Vivendo em sociedade, o homem tem que pautar a sua conduta de modo a não causar dano a ninguém. Ao praticar os atos da vida, mesmo que lícito e permitido, deve-se observar a cautela necessária para que de seu atuar não resulte lesão a bens jurídicos alheios. A essa cautela, atenção ou diligência convencionou-se chamar de cuidado objetivo.
A inobservância desse dever de cuidado torna a conduta culposa, o que evidencia que a culpa é, na verdade, uma conduta deficiente, quer decorrente de uma deficiência de vontade, quer de inaptidões ou deficiências próprias ou naturais. Exprime um juízo de reprovabilidade sobre a conduta do agente, por ter violado o dever de cuidado quando, em face das circunstâncias, no caso, administrativas, devia e podia ter agido de modo correto.
Outro ponto a ser destacado é que não importa o fim que o agente quer alcançar (sua intenção), que normalmente é lícito, mas o modo e a forma imprópria de seu atuar. Vê-se, então, que há na culpa uma conduta mal dirigida a um fim lícito, é imprevisão do previsível, por falta de cautela, há na culpa um erro de conduta.
A Constituição de 1988 disciplinou a responsabilidade civil do Estado no parágrafo 6º do seu artigo 37, tendo a seguinte redação: “As pessoas jurídicas de Direito Público prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
Bem como o Código Civil Brasileiro, em seu art. 186 determina o dever de indenizar em decorrência de danos causados a terceiros, assim temos:
Art. 186 do CC: Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
É de suma importância conhecer o conceito do ato ilícito para se definir a responsabilidade civil, vez que este faz nascer a obrigação de reparar o dano. O ilícito repercute na esfera do Direito produzindo efeitos jurídicos não pretendidos pelo agente, mas impostos pelo ordenamento. Em vez de direitos, criam deveres. A primeira das consequências que decorrem do ato ilícito é o dever de reparar. Mas não se faz única, eis que, dentre outras, este pode dar causa para a invalidade ou cessação do ato, ainda. Ou seja, uma vez detectado o ato ilícito além da reparação, a invalidação do ato deve ser atestada.
5. Conclusão.
Resta claro que qualquer tipo de penalização, entre autuações e apreensões de ciclomotores, deve ser considerado ilegal. Nos casos em que o Município não houver criado lei que obrigue o registro e licenciamento deste tipo de veículo, bem como inexistentes as definições legais da forma de fiscalização, autuação e demais penalidades, sendo, pois, privativa a responsabilidade de exercer as funções legislativa e executiva.
Portanto, torna-se evidente que a emissão, a exigência e a fiscalização sobre os veículos ciclomotores, dos documentos que comprovem o seu registro e licenciamento é de competência municipal, após obrigatoriamente a criação de uma lei municipal que os regulamente e os execute, caso contrário será impossível qualquer tipo de cobrança e exigibilidade destes documentos dentro da circunscrição do Município a qualquer cidadão. Evitando assim a produção de atos ilícitos, abuso de autoridade e o ressarcimento dos danos causados ao cidadão proprietário/condutor de ciclomotores.
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA SOBRINHO, José, BARBOSA, Manoel Messias, MUKAI, Nair Sumiko Nakamura. Código de Trânsito Brasileiro Anotado e Legislação Complementar em Vigor. 12 ed. São Paulo: Método, 2009.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2007.
FERREIRA, Ruy Barbosa Marinho. Código de Trânsito Brasileiro Anotado. 5 ed. Leme, SP: Cl Edijur, 2013.
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
GOMES, Ordeli Savedra. Código de trânsito brasileiro comentado e legislação complementar. 8 ed. Curitiba: Juruá, 2013.
LIMA, Ruy Cisne. Princípios de Direito Administrativo. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
NUCCI, Guilherme de Souza. Direito Penal. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1: parte geral. 7 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28 ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União. Pós-graduado em Direito Público e Direito do Trabalho. Ex-advogado da Caixa Econômica Federal. Ex-advogado da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão. Ex-analista processual do Ministério Público da União. Ex-conciliador federal. Ex-advogado privado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ERICEIRA, Cássio Marcelo Arruda. A impossibilidade de registro e licenciamento de ciclomotores por falta de lei municipal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jul 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40109/a-impossibilidade-de-registro-e-licenciamento-de-ciclomotores-por-falta-de-lei-municipal. Acesso em: 23 dez 2024.
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