Resumo: O Código de Trânsito Brasileiro informa, em seu art. 141, que o documento que autoriza conduzir veículo ciclomotor tem denominação e regulamento próprios, ou seja, denomina-se Autorização para Conduzir Ciclomotor – ACC, sendo distinto da Carteira Nacional de Habilitação – CNH e da Permissão Para Dirigir – PPD. Determina ainda, taxativamente, as penalidades para quem conduz veículos sem a CNH ou sem a PPD, mas nada foi até hoje mencionado sobre a ACC, em termos de penalidade. Portanto, torna-se ilegal o condutor ser autuado e penalizado por não possuir a ACC, tendo em vista que não há previsão legal quanto à penalidade e tampouco a definição desta infração, e uma vez autuado neste sentido, atingirá gravemente os princípios básicos do ordenamento jurídico brasileiro.
Sumário: 1. Introdução. 2. Inaplicabilidade do art. 162, I do CTB por falta de abrangência da lei. 3. Princípios e Garantias Constitucionais que obrigam a previsão legal de normas incriminadoras. 4. Conclusão.
1. Introdução
O processo de habilitação e as normas relativas à autorização para conduzir ciclomotores serão regulamentadas pelo Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN[[1]].
A Resolução n. 168/2004 e suas alterações que regulamentam o art. 141 do Código de Trânsito Brasileiro – CTB, estabelecem a distinção entre Autorização para Conduzir Ciclomotor – ACC, Carteira Nacional de Habilitação – CNH e Permissão Para Dirigir – PPD, bem como a regulamentação de suas obtenções.
Essa Resolução estabelece as normas e procedimentos para a formação dos condutores, a realização dos exames, a expedição de documentos de habilitação, sobre os cursos de formação, especializados, e de reciclagem, bem como dá outras providências.
Assim, o CONTRAN usando de sua competência conferida pela legislação pátria resolve especificar no art. 2º da Resolução 168, que o candidato à obtenção da ACC e da CNH deverá solicitar perante o órgão competente sua vontade em abrir o processo de habilitação específico para cada uma, ou sua intenção em obter simultaneamente a ACC e habilitação na categoria “B”, ou a habilitação para as categorias “A” e “B”, demonstrando assim, suas distinções legais.
2. Inaplicabilidade do art. 162, I do CTB por falta de abrangência da lei.
Portanto, depois de identificada a distinção entre ACC, CNH e PPD, apesar de serem documentos necessários e obrigatórios, a Legislação Brasileira não prevê penalidades ao condutor de veículo ciclomotor que não possua a Autorização para Conduzir Ciclomotor – ACC, assim confira-se o texto da lei:
Art. 162 do CTB. Dirigir Veículo:
I – sem possuir Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir;
Infração – Gravíssima;
Penalidade – multa (três vezes) e apreensão do Veículo;
Resta claro que a penalidade acima descrita é taxativa para o condutor que dirigir sem possuir CNH ou PPD.
Dessa forma, se a lei obriga que o condutor de ciclomotor possua a habilitação tipo ACC, como poderá ter cometido a infração insculpida no art. 162, I do CTB?
Não há dúvida que a autuação com base neste artigo sobre condutor de ciclomotores é ilegal, portanto nula. Por exclusão da lei. Sem previsão legal não há que se falar em cometimento de infração e aplicação de sua consequente penalidade.
3. Princípios e Garantias Constitucionais que obrigam a previsão legal de normas incriminadoras.
O proprietário/condutor deste tipo de veículo deve buscar apoio e proteção nos princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro, que são o Princípio da Legalidade, o da Anterioridade da Lei Penal, o da Reserva Legal, e o do Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege, entre outros.
Após a vigência da Constituição Federal de 1988, a definição de infrações e a cominação de penalidades somente podem decorrer de lei em sentido formal.
É o que preceitua o inciso XXXIX do artigo 5º da CF:
Art. 5º da CF:
(...)
XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
Trata-se, portanto, do Princípio da Reserva Legal, que significa, em outras palavras, que a elaboração das normas incriminadoras e das respectivas sanções constitui matéria reservada ou função exclusiva da lei, segundo a lição de Francisco de Assis Toledo[2].
Portanto, não pode ser definido crime, delito ou infração e sua consequente penalidade sem previsão legal que o esclareça.
O Princípio da Legalidade é um princípio jurídico fundamental que estabelece que o Estado deva se submeter ao império da lei.
É também, a expressão maior do Estado Democrático de Direito, a garantia vital de que a sociedade não está presa às vontades particulares, pessoais, daquele que governa, ou administra, garantindo, assim, a segurança jurídica do cidadão.
Já o Princípio da Reserva Legal, que complementa as garantias de segurança jurídica do cidadão, estabelece não existir delito fora da definição da norma escrita.
Por sua vez, o Princípio nullum crimen nulla poena sine lege é cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XXXIX; c/c o inciso IV do § 4º do art. 60) e fundamento do Direito Penal Brasileiro, figurando no art. 1º do Código Penal:
Art. 1º do CP: Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.
Nesse contexto, é direito e garantia fundamental do cidadão ser penalizado apenas por infração ou delito descrito em lei específica que o defina, e que possua a respectiva penalidade também prevista em lei. Dessa forma, se não há lei anterior que determine a infração e sua penalidade pelo fato de o condutor não possuir ACC, como penalizar o cidadão que conduz o veículo sem esse documento? Como exigir algo que não existe?
Ainda, no que diz respeito ao Princípio Nullum Crimen, Nulla Puena sine Lege Scripta, é proibida a fundamentação ou o agravamento da punibilidade pelo direito consuetudinário, ou seja, sem lei escrita que defina o crime não poderá haver penalidade mesmo que seja costumeiro considerar proibida a atitude, mesmo que seja considerado errado o ato, não poderá ser punido o praticante por falta de lei que determine o crime e sua pena por escrito.
Encontramos o mesmo rigor no Princípio Nullum Crimen, Nulla Poena sine Lege Stricta, que corrobora a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pela analogia (analogia in malam partem), ou seja, não se pode comparar a punição, neste caso, por falta de CNH ou de PPD com a falta de ACC, que são documentos legalmente distintos como já visto.
E finalmente, no Princípio Nullum Crimen, Nulla Poena sine Lege Certa, existe a máxima da proibição da edição de leis penais indeterminadas ou do emprego de normas gerais ou tipos incriminadores vazios, imprecisos ou dúbios, que não determinem exatamente a conduta típica exercida pelo indivíduo.
Nesse mesmo sentido, são favoráveis as decisões judiciais nos diversos Tribunais Pátrios:
Ementa: Administrativo - Condução de ciclomotor (mobilete) - Desnecessidade de Carteira Nacional de Habilitação - Autuação baseada no inc. I, do art. 162 da Lei 9.503/97 (CTB) -Inexistência de regulamentação para condução de ciclomotor - Equiparação a ciclo pela Convenção sobre Circulação Viária de Viena - Prevalência - Adoção no Brasil pelo Decreto nº 86.714/81 - Inexistência de regulamentação - Autuação indevida - Procedência do pedido - Recurso improvido. (Apelação Cível 1.0702.98.021313-7/001, Relator(a): Des.(a) Nilson Reis , 2ª Câmara Cível, TJMG, julgamento em 17/05/2005, publicação da súmula em 17/06/2005)
Agravo Interno. Ação indenizatória. Apreensão de ciclomotor, sob o fundamento de falta de habilitação e ausência de emplacamento. Convenção de Trânsito Viário, aprovada pelo Decreto Legislativo 33 de 1980. Resolução 657/85 do Conselho Nacional de Trânsito, que assimilou os ciclomotores aos ciclos, sendo estes veículos de pelo menos duas rodas a propulsão humana. Inexistência de regulamentação do CONTRAN referente à condução de ciclos, estendendo-se o entendimento aos ciclomotores. Não obrigatoriedade de licenciamento. Dano moral configurado. Inexistência de qualquer argumento capaz de ensejar a retratação, mantendo-se a decisão atacada. Recurso Desprovido.
Agravo Interno na Apelação Cível Nº 0041122-78.2006.8.19.0001. Relator Des. Pedro Saraiva de Andrade Lemos. 10ª Câmara Cível. TJRJ, julgamento em 17/05/2010.
Assim, é indevido e ilegal determinar por analogia ou equiparar a infração insculpida no art. 162, I do CTB para que seja aplicada contra o condutor, já que CNH ou PPD não são idênticas a ACC, e a penalidade que cabe àquelas não caberá à última.
Direito e garantias fundamentais que não poderão ser suprimidos por vontade de qualquer órgão executivo de trânsito[[3]].
4. Conclusão.
Portanto, torna-se ilegal autuar o condutor por infração que inexiste na legislação pátria. Para aquele que dirige ciclomotor sem possuir ACC não há infração determinada em lei por este fato. Se não há infração não há penalidade, desse modo a autuação e a apreensão do veículo tornam-se ilegais.
Pois a infração gravíssima descrita na norma se refere ao condutor que não possui CNH ou PPD, neste caso a lei não impõe a obrigatoriedade de possuir ACC, e qualquer auto de infração neste sentido deve ser considerado irregular, ilegal e portanto, nulo.
Referências
ALMEIDA SOBRINHO, José, BARBOSA, Manoel Messias, MUKAI, Nair Sumiko Nakamura. Código de Trânsito Brasileiro Anotado e Legislação Complementar em Vigor. 12 ed. São Paulo: Método, 2009.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
FERREIRA, Ruy Barbosa Marinho. Código de Trânsito Brasileiro Anotado. 5 ed. Leme, SP: Cl Edijur, 2013.
GOMES, Ordeli Savedra. Código de trânsito brasileiro comentado e legislação complementar. 8 ed. Curitiba: Juruá, 2013.
LIMA, Ruy Cisne. Princípios de Direito Administrativo. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
NUCCI, Guilherme de Souza. Direito Penal. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1: parte geral. 7 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1: parte geral. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
Notas:
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União. Pós-graduado em Direito Público e Direito do Trabalho. Ex-advogado da Caixa Econômica Federal. Ex-advogado da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão. Ex-analista processual do Ministério Público da União. Ex-conciliador federal. Ex-advogado privado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ERICEIRA, Cássio Marcelo Arruda. A inexistência de previsão legal quanto à infração por não possuir autorização para conduzir ciclomotor - ACC Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jul 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40122/a-inexistencia-de-previsao-legal-quanto-a-infracao-por-nao-possuir-autorizacao-para-conduzir-ciclomotor-acc. Acesso em: 23 dez 2024.
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