INTRODUÇÃO
Até o advento da Lei nº 12.711/2012, os Institutos Federais de ensino, dentro de sua autonomia didático-científica, instituíam os critérios o acesso de candidatos aos cursos de graduação através das cotas, com o objetivo de aplicar uma política de inclusão direcionada ao público atingido pela exclusão sócio educacional.
Cada Instituto dispunha de critérios diferenciados que gerou diversas decisões no âmbito dos Tribunais.
Este artigo busca demonstrar como a nova Legislação uniformizou a aplicação da política cotas e como o Judiciário vem implementando, na prática, esse mister.
DESENVOLVIMENTO
Desde o ano de 2007, a maioria dos Institutos criaram programas de ações afirmativas, destinando a reserva de vagas para os candidatos oriundos de escolas públicas, calcada na autonomia didático-cientifica das Universidades, consignada no art. 207, da CF/88 bem como pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação:
Art. 207, CF/88. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Lei 9394/96 – LDB:
Art. 51. As instituições de educação superior credenciadas como universidades, ao deliberar sobre critérios e normas de seleção e admissão de estudantes, levarão em conta os efeitos desses critérios sobre a orientação do ensino médio, articulando-se com os órgãos normativos dos sistemas de ensino. (...)
Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições:
(...)
IV - fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio;”
Parágrafo único. Para garantir a autonomia didático-científica das universidades, caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis, sobre:
(...)
II - ampliação e diminuição de vagas (grifado).
Neste sentido, percebe-se que as Universidades já vem há tempos estabelecendo novas modalidades de acesso de estudantes, substituindo o tradicional vestibular por outras modalidades de exame, tais como os processos seletivos de avaliação seriada e, mais recentemente, o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM. O STJ, inclusive, já assentara a legalidade de tais exames, entendendo que o legislador ordinário fortaleceu a autonomia das universidades, permitindo-lhes maior liberdade para estabelecer critérios de seleção para ingresso. (REsp 546.232/RS)[1].
A discussão em torno do tema se instalou, principalmente entre aqueles alunos bolsistas de escolas particulares e aqueles oriundos de escolas filantrópicas e, em todos os Tribunais Federais foram analisados casos dessa natureza, com a produção de jurisprudência variada a respeito.
A Lei nº 12.711/2012 veio assim disciplinar a matéria:
Art. 1o As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. (sem destaque no original)
Percebemos que a reserva de vagas destina-se àqueles alunos que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas. Neste norte, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei nº 9.394/1996) distingue as instituições de ensino entre públicas e privadas, e dentre as privadas, confere as seguintes especificações:
“Art. 19. As instituições de ensino dos diferentes níveis classificam-se nas seguintes categorias administrativas:
I - públicas, assim entendidas as criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público;
II - privadas, assim entendidas as mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.
Art. 20. As instituições privadas de ensino se enquadrarão nas seguintes categorias:
I - particulares em sentido estrito, assim entendidas as que são instituídas e mantidas por uma ou mais pessoas físicas ou jurídicas de direito privado que não apresentem as características dos incisos abaixo;
II - comunitárias, assim entendidas as que são instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas, inclusive cooperativas educacionais, sem fins lucrativos, que incluam na sua entidade mantenedora representantes da comunidade;
III - confessionais, assim entendidas as que são instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas que atendem a orientação confessional e ideologia específicas e ao disposto no inciso anterior;
IV - filantrópicas, na forma da lei.” (grifo nosso).
As escolas públicas têm financiamento e gestão públicos. O fato de o estudo ser gratuito, em qualquer outro tipo (filantrópica, cooperativa, particular em sentido estrito conveniada com o Poder Público), não justifica a pretensão de equivalência entre uma e outra. O ensino é gratuito em diversas fundações, algumas mantidas por grandes instituições como é o caso, exemplificativamente, da Fundação Bradesco e da Fundação José Carvalho.
A gratuidade do ensino, e mesmo o aporte de algum recurso público, NÃO significa que as escolas conveniadas estejam submetidas às restrições de custeio, instalações, corpo docente e outros, limitações estas que, notoriamente, enfrentam as escolas públicas e que refletem consideravelmente no rendimento de alunos oriundos destes estabelecimentos.
A previsão da integralidade do período cursado em escola pública visa evitar distorções vedando a admissão como beneficiários da norma aqueles alunos que não se submeteram a diferença patente de ensino entre a escola pública e a privada. Convém ressaltar que situações limítrofes poderiam, eventualmente, ser enquadradas dentro do conceito de integralidade, mas não serem tomados como regras.
Acolhendo as razões expostas o Superior Tribunal Justiça assim já se manifestou:
COTAS. UNIVERSIDADE PÚBLICA. ALUNOS. ESCOLA PARTICULAR.
A Turma negou provimento ao REsp interposto pelo Ministério Público cujo objetivo era reformar acórdão do tribunal de origem que negou o pedido, em ação civil pública, de afastar restrição de acesso ao sistema de cotas de inclusão social em universidade federal dos candidatos provenientes de escola particular e beneficiados com bolsa de estudos integral, bem como aos discentes de escolas comunitárias, filantrópicas e confessionais, ainda que mantidas por convênio com o Poder Público. Para o Min. Relator, os referidos candidatos desfrutaram das mesmas condições dos demais matriculados na escola particular. Nesse contexto, não se pode interpretar extensivamente norma que impõe como critério a realização exclusiva do ensino fundamental e médio em escola pública para abarcar instituições de ensino de outra espécie, sob pena de inviabilizar o fim buscado por meio da ação afirmativa. Precedente citado: REsp 1.132.476-PR, DJe 21/10/2009. STJ. REsp 1.206.619-PR, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 6/12/2011.
E o Tribunal Regional Federal da 5ª Região:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. MATRÍCULA. SISTEMA DE COTAS. ALUNO EGRESSO DE ESCOLA PARTICULAR "DE BAIRRO". EQUIPARAÇÃO A ALUNO DE ESCOLA PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE DO DIREITO INVOCADO. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Agravo de instrumento interposto pelo particular em face de decisão que, em Mandado de Segurança impetrado contra ato do Reitor do IFPB - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba, indeferiu pedido de liminar para matrícula, ou reserva de vaga, no referido instituto, no curso técnico em Eletrônica, em uma das vagas destinadas aos candidatos que concorreram pelo sistema de cotas da rede pública de ensino, por entender que a agravante não preencheu os requisitos constantes no Edital IFPB n.º 230/2013, subitem 5.3.5, alíneas "a" e "b" para ingresso nas vagas de cotistas. 2. Dispõe o art. 4º da Lei n.º 12.711/2012: "As instituições federais de ensino técnico de nível médio reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso em cada curso, por turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que cursaram integralmente o ensino fundamental em escolas públicas." 3. O Edital IFPB n.º 230/2013, por sua vez, no subitem 5.3.6, (fl. 52), de modo semelhante, discorre que "não poderão concorrer às vagas reservadas por meio do Sistema de Cotas para Egressos de escolas Públicas os candidatos que tenham, em algum momento, cursado parte do Ensino Fundamental em escolas particulares ou de natureza não pública". 4. Deste modo, verifica-se o acerto da decisão agravada ao indeferir pedido de inserção da agravante nas vagas reservadas a estudantes oriundos de escolas públicas, pelo fato de ter cursado dois anos do ensino fundamental (6ª e 7ª séries) em instituição privada de ensino, não tendo objetivamente preenchido os requisitos do Edital e da Lei n.º 12.711/2012. 5. A alegação de que a escola particular frequentada pela estudante seria de baixo custo não afasta a exigência prevista no Edital de que, para concorrer pelo sistema de cotas para egressos de escola pública, o aluno teria, efetivamente, que ter cursado todo o Ensino Fundamental em escolas públicas ou obtido certificado de conclusão com base no resultado do ENCCEJA (Edital IFPB n.º 230/2013, subitem 5.3.5, alíneas "a" e "b). 6. No mesmo sentido vem se posicionando esta 4ª Turma ao definir que a qualidade do ensino é o verdadeiro fator de discrime na implementação da política cotas para ingresso nas instituições federais de ensino técnico. 7. Impossibilidade de apreciação do pedido sucessivo formulado pela agravante, que trata da garantia do direito de matrícula por meio das vagas de ampla concorrência, por se tratar de pedido novo, o que implicaria em violação ao princípio da não supressão de instância. 8. Ausência de plausibilidade do direito invocado. Agravo de instrumento não provido.
(AG 00063524120134050000, Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, TRF5 - Quarta Turma, DJE - Data::05/09/2013 - Página::507.)
CONCLUSÃO
Em verdade, a aplicação da Lei 12.711 não traz em si um excesso formalístico. Trata-se, isto sim, de buscar o real significado da norma, a intenção verdadeira do dispositivo (mens legis). O que se erige como princípio basilar do sistema de cotas é que o aluno proveniente do sistema de ensino realmente público, com todas as suas restrições, possa concorrer com seus pares, isto é, com aqueles que enfrentaram ao longo da sua vida acadêmica as mesmas dificuldades.
E a motivação de tudo isso é a busca da realização da justiça social: só assim os socialmente excluídos poderão ter acesso ao sistema de ensino superior público e, desta maneira, ascender socialmente e economicamente pela via do estudo acadêmico, realizando-se profissionalmente.
[1] PROCESSUAL E ADMINISTRATIVO – PROGRAMA EXPERIMENTAL DE INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR – PEIES – AVALIAÇÃO SERIADA – LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO (LEI 9.394/96). (...)
5. A Lei 9.394/96, ao regulamentar o art. 207 da Constituição Federal de 1988, abandonou por completo a sistemática de acesso ao ensino superior unicamente através de "vestibular", antes definido pela Lei 5.540/68, traçando novas diretrizes quanto aos critérios de seleção e admissão de estudantes, que passaram a ser fixados de acordo com o princípio da autonomia didático-científica das universidades, mediante articulações destas com os órgãos normativos dos sistemas de ensino.
6. Nesse contexto, uma vez que observadas as normas da Lei 9.394/96 e principalmente o princípio da publicidade dos critérios de seleção, dentro do contexto de autonomia didático-científica atribuída às instituições de ensino, como bem salientado pelo Tribunal de origem, legítimo é o processo seletivo de avaliação seriada criado pela Universidade recorrida, sem que se possa falar em ofensa do princípio da igualdade no acesso à escola, previsto no art. 3º, inciso I desta lei.(...)” (RESP 546232. STJ, 2ª Turma. Rel. Min. Eliana Calmon. DJU de 05.09.2005) (grifamos)
Procuradora Federal da PGF/AGU. Mestranda do Programa de Direitos Humanos da UFPB. Pós-Graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Gama Filho. Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Camilla Guedes Pereira Pitanga. Cotas para ensino público após a Lei nº 12.711/2012 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jul 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40135/cotas-para-ensino-publico-apos-a-lei-no-12-711-2012. Acesso em: 23 dez 2024.
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