Resumo: O presente trabalho procura analisar, em breves linhas, a relação entre o poder normativo das agências reguladoras e o princípio da separação de poderes.
Abstract: This paper analyzes in brief lines, the relationship between the normative power of regulatory agencies and the principle of separation of powers.
Keywords: Regulatory Agencies - Regulatory authority - Separation of Powers.
1. INTRODUÇÃO
As agências reguladoras são entidades criadas pelo Poder Público sob forma de autarquia. Possuem típica função de controle da prestação de serviço público e do exercício de atividades econômicas, bem como das pessoas privadas que passaram a executá-las através do regime de concessão.
Para o exercício dessa função de controle as agências reguladoras foram dotadas de um poder administrativo específico chamado de poder normativo. Tendo em vista que esse poder permite a edição de normas técnicas, bem com a solução de conflitos afetos a área de sua competência, surgiu o questionamento sobre possível violação ao princípio da separação de poderes.
Essa relação entre o poder normativo das agências reguladoras e o princípio da separação de poderes é o que se busca retratar, em breves linhas, no presente estudo.
2. O PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
As agências reguladoras encontram origem no regime norte-americano nas chamadas “independent regulatory agencies”, que são entes administrativos destinadas à regulação econômica ou social.
Ensina Carvalho Filho[1] (2006, p. 399):
No processo de modernização do Estado, uma das medidas preconizadas pelo Governo foi a criação de um grupo especial de autarquias a que se convencionou denominar de agências, cujo objetivo institucional consiste na função de controle de pessoas privadas incumbidas da prestação de serviços públicos, em regra sob a forma de concessão ou permissão, e também na intervenção estatal no domínio econômico, quando necessário para evitar abusos nesse campo, perpetrados por pessoas de iniciativa privada.
Para o exercício da função de controle, as agências reguladoras foram dotadas de um poder administrativo específico chamado de poder normativo. Através desse poder, as agências reguladoras impõem às concessionárias de serviço público a adequação da execução de suas atividades aos fins almejados pelo Governo, bem como suas estratégias econômicas e administrativas.
Sobre o poder normativo das agências reguladoras, Carvalho Filho[2](2006, p. 392) observa que:
[...] o poder normativo técnico indica que essas autarquias recebem das respectivas leis, delegação para editar normas técnicas (não as normas básicas de política legislativa) complementares de caráter geral, retratando poder regulamentar mais amplo, porquanto tais normas se introduzem no ordenamento jurídico como direito novo (jus novum).
3. O PODER NORMATIVO E O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES
O poder normativo não se trata transferência de poder legiferante aos entes da Administração Pública, mas uma extensão do poder regulamentar visando à regulamentação de matéria de ordem técnica.
Essa extensão faz com que as agências reguladoras detenham funções quase judiciais na medida em que também possuem o poder de resolver os conflitos administrativos relacionados à área de sua competência técnica e que lhe são submetidos.
Sobre da ausência de violação do poder normativo ao princípio da separação dos poderes, ressalta Carvalho Filho[3] (2006, p. 392) que:
Esse fenômeno, de resto já conhecido em outros sistemas jurídicos, tem sido denominado de deslegalização (ou deslegificação, como preferem alguns), considerando que a edição de normas de caráter técnico se formaliza por atos administrativos regulamentares em virtude de delegação prevista na respectiva lei. Na verdade, não há, como supõem alguns estudiosos (equivocamente, a nosso ver), transferência do poder legiferante a órgãos ou pessoas da Administração, mas tão-somente o poder de estabelecer regulamentação sobre matéria de ordem técnica, que, por ser extremamente particularizada, não poderia mesmo estar disciplinada na lei. Por conseguinte, nenhuma ofensa estará sendo perpetrada ao princípio da reserva legal contemplado em âmbito constitucional. Em nosso entender, trata-se de exigência dos tempos modernos e, por refletir inovação, não surpreende a reação oposta por alguns setores jurídicos em semelhantes situações.
Acerca da regulamentação de ordem técnica exercida pelas agências reguladoras através do poder normativo, citam-se os seguintes julgados do Superior Tribunal da Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTADOR-REVENDEDOR-RETALHISTA (TRR). PORTARIA ANP 201/99. PROIBIÇÃO DO TRANSPORTE E REVENDA DE GLP, GASOLINA E ÁLCOOL COMBUSTÍVEL. EXERCÍCIO DO PODER NORMATIVO CONFERIDO ÀS AGÊNCIAS REGULADORAS. LEGALIDADE.
1. Ação objetivando a declaração de ilegalidade da Portaria ANP 201/99, que proíbe o Transportador-Revendedor-Retalhista - TRR - de transportar e revender gás liquefeito de petróleo - GLP-, gasolina e álcool combustível.
2. A Lei 9.478/97 instituiu a Agência Nacional do Petróleo - ANP -, incumbindo-a de promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis (art. 8º).
3. Também constitui atribuição da ANP, nos termos do art. 56, caput e parágrafo único, do mesmo diploma legal, baixar normas sobre a habilitação dos interessados em efetuar qualquer modalidade de transporte de petróleo, seus derivados e gás natural, estabelecendo as condições para a autorização e para a transferência de sua titularidade, observado o atendimento aos requisitos de proteção ambiental e segurança de tráfego.
4. No exercício dessa prerrogativa, a ANP editou a Portaria 201/99 (atualmente revogada pela Resolução ANP 8/2007), proibindo o Transportador-Revendedor-Retalhista - TRR - de transportar e revender gás liquefeito de petróleo - GLP-, gasolina e álcool combustível. O ato acoimado de ilegal foi praticado nos limites da atribuição conferida à ANP, de baixar normas relativas ao armazenamento, transporte e revenda de combustíveis, nos moldes da Lei 9.478/97.
5. "Ao contrário do que alguns advogam, trata-se do exercício de função administrativa, e não legislativa, ainda que seja genérica sua carga de aplicabilidade. Não há total inovação na ordem jurídica com a edição dos atos regulatórios das agências. Na verdade, foram as próprias leis disciplinadoras da regulação que, como visto, transferiram alguns vetores, de ordem técnica, para normatização pelas entidades especiais." (CARVALHO FILHO, José dos Santos. "O Poder Normativo das Agências Reguladoras" / Alexandre Santos de Aragão, coordenador - Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, págs.
81-85).
6. Recurso especial provido, para julgar improcedente o pedido formulado na inicial, com a consequente inversão dos ônus sucumbenciais. (REsp 1101040/PR, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/06/2009, DJe 05/08/2009)
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AUTORIZAÇÃO PARA O EXERCÍCIO DA ATIVIDADE DE NAVEGAÇÃO DE LONGO CURSO. DEVER DE OBEDIÊNCIA AOS REQUISITOS PREVISTOS NA RESOLUÇÃO ANTAQ 843/2007. EXERCÍCIO DO PODER NORMATIVO CONFERIDO ÀS AGÊNCIAS REGULADORAS.
1. Mandado de segurança voltado contra a Portaria 6/MT, de 5 de janeiro de 1998, que aprova "Normas para Outorga de Autorização para Operação de Empresas Brasileiras de Navegação de Longo Curso, Cabotagem, Apoio Portuário e Apoio Marítimo", exigindo, da pessoa jurídica interessada em operar como empresa brasileira de navegação, o cumprimento dos seguintes requisitos: (a) possuir pelo menos uma embarcação inscrita no Registro de Propriedade Marítima, em tráfego, operando comercialmente; (b) possuir capital mínimo integralizado de 6.500.000 UFIR (seis milhões e quinhentas mil unidades fiscais de referência), para a navegação de longo curso.
2. O referido ato normativo, entretanto, não mais subsiste em nosso ordenamento jurídico. Aliás, o setor de transportes aquaviários, atualmente, é controlado pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ -, a quem incumbe, entre outras atribuições, nos termos do art. 27, V, XXI e XXIV, da Lei 10.233/2001: (a) "celebrar atos de outorga de permissão ou autorização de prestação de serviços de transporte pelas empresas de navegação fluvial, lacustre, de travessia, de apoio marítimo, de apoio portuário, de cabotagem e de longo curso, observado o disposto nos arts. 13 e 14, gerindo os respectivos contratos e demais instrumentos administrativos"; (b) "fiscalizar o funcionamento e a prestação de serviços das empresas de navegação de longo curso, de cabotagem, de apoio marítimo, de apoio portuário, fluvial e lacustre"; (c) "autorizar as empresas brasileiras de navegação de longo curso, de cabotagem, de apoio marítimo, de apoio portuário, fluvial e lacustre, o afretamento de embarcações estrangeiras para o transporte de carga, conforme disposto na Lei nº 9.432, de 8 de janeiro de 1997".
3. O art. 29 da Lei 10.233/2001 dispõe, ainda, que "somente poderão obter autorização, concessão ou permissão para prestação de serviços e para exploração das infra-estruturas de transporte doméstico pelos meios aquaviário e terrestre as empresas ou entidades constituídas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País, e que atendam aos requisitos técnicos, econômicos e jurídicos estabelecidos pela respectiva Agência." 4. O legislador ordinário conferiu amplos poderes normativos à Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ -, entre os quais o de criar requisitos para a obtenção de autorização necessária ao funcionamento das empresas brasileiras de navegação de longo curso.
5. O art. 50 do mesmo diploma legal também não deixa dúvida acerca da necessidade de adequação dessas empresas, inclusive das que já eram detentoras de outorgas expedidas por entidades públicas federais do setor dos transportes, às novas determinações estabelecidas pela agência reguladora.
6. No exercício dessas prerrogativas, a ANTAQ editou a Resolução 843, de 14 de agosto de 2007, prevendo diversos requisitos para o fim de se obter autorização para operar em navegações de longo curso, de cabotagem, de apoio marítimo e de apoio portuário, entre os quais: (a) ser proprietário de pelo menos uma embarcação de bandeira brasileira que não esteja fretada a casco nu a terceiros, adequada à navegação pretendida e em condição de operação comercial;
(b) comprovar ter boa situação econômico-financeira caracterizada por patrimônio líquido mínimo de R$ 8.000.000,00 (oito milhões de reais), para a navegação de longo curso.
7. A norma em comento não difere muito daquela prevista no ato impugnado por intermédio da presente impetração. Conclui-se, portanto, que a ora recorrente, para obter a autorização almejada, deverá preencher todos os requisitos definidos pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ -, sobretudo porque o art. 2º da Lei 9.432/97, cuja ofensa fora invocada nas razões recursais, é claro ao definir o conceito de "empresa brasileira de navegação" como sendo "a pessoa jurídica constituída segundo as leis brasileiras, com sede no País, que tenha por objeto o transporte aquaviário, autorizada a operar pelo órgão competente".
8. Recurso especial desprovido. (REsp 894.442/RJ, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/10/2008, DJe 05/11/2008)
Ainda acerca da natureza do poder normativo das agências reguladoras, reproduz-se trecho do voto da Ministra Denise Arruda, REsp 1101040/PR:
Percebe-se, pela simples leitura dos dispositivos legais acima transcritos, que o legislador ordinário conferiu poderes à ANP para baixar normas destinadas à regulamentação das atividades do setor pelo qual é responsável, no que estão contidas as operações de transporte de petróleo, seus derivados e gás natural.
No tocante ao poder normativo conferido às agências reguladoras, José dos Santos Carvalho Filho (in O Poder Normativo das Agências Reguladoras / Alexandre Santos de Aragão, coordenador - Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, págs. 81-85) leciona o seguinte:
‘A grande discussão em torno do denominado 'poder normativo' das agências reguladoras teve origem nas atribuições conferidas a essas novas autarquias de controle, entre as quais despontava a de editar normas gerais sobre o setor sob seu controle.
(...)
A Lei nº 9.478, de 06.08.1997, a seu turno, regulando a política energética nacional, criou a Agência Nacional do Petróleo - ANP e, como já se fizera anteriormente, também conferiu à entidade poder regulatório, como se observa no art. 8º, segundo o qual a ANP terá como finalidade 'promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo'.
Sobre a atividade regulatória é justo reconhecer que o sistema, nos moldes como foi introduzido, em decorrência da reforma administrativa do Estado, não se situa dentro dos padrões clássicos de atuação de órgãos administrativos no exercício de poder normativo. Mas - também é oportuno realçar - não traduz, em nosso entender, nenhuma evolução no sistema tradicional, mas, ao contrário, estampa mero resultado de uma evolução natural no processo cometido ao Estado de gestão dos interesses coletivos.
(...)
Não se pode negar que os fenômenos que se instalaram no mundo contemporâneo - como, por exemplo, a globalização, as novas tecnologias, os avanços da informática, a complexidade dos novos serviços públicos - não poderiam mesmo ser enfrentados com as velhas e anacrônicas munições estatais. O Estado, como bem salientava Jèze, tem que andar lado a lado com a dinâmica da evolução social, de modo que, criadas novas realidades, deve o Estado adequar-se a elas, aparelhando-se de forma eficiente e completa para satisfazer o interesse da coletividade. Aqui o conservadorismo
deve ceder lugar à inovação, dentro, é claro, dos paradigmas traçados na lei
constitucional.
Por conseguinte, não nos parece ocorrer qualquer desvio de constitucionalidade no que toca ao poder normativo conferido às agências. Ao contrário do que alguns advogam, trata-se do exercício de função administrativa, e não legislativa, ainda que seja genérica sua carga de aplicabilidade. Não há total inovação na ordem jurídica com a edição dos atos regulatórios das agências. Na verdade, foram as próprias
leis disciplinadoras da regulação que, como visto, transferiram alguns vetores, de ordem técnica, para normatização pelas entidades especiais - fato que os especialistas têm denominado de 'delegalização', com fundamento no direito francês ('domaine de l'ordonnance', diverso do clássico 'domaine de la loi'). Resulta, pois, que tal atividade não retrata qualquer vestígio de usurpação da função legislativa pela Administração, pois que poder normativo - já o acentuamos - não é poder de legislar: tanto pode existir este sem aquele, como aquele sem este [...]
4. CONCLUSÃO
Verifica-se que o poder normativo das agências reguladoras não viola o princípio da separação de poderes na medida em que estas exercem mesmo função regulamentadora, ou seja, estabelecem disciplina, de caráter complementar, com observância dos parâmetros existentes na lei que lhes transferiu aquela função.
As agências reguladoras não inovam no mundo legislativo, apesar de editar norma técnicas complementares de caráter mais amplo, mas dentro dos limites de sua delegação e especialidade, garantindo a qualidade, a universalidade e a continuidade do serviço para os administrados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, JOSÉ DOS SANTOS. Manual de Direito Administrativo. 15ªed. 2006. Rio de Janeiro: Lumen Juris
RESP 894.442/RJ. Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/10/2008, DJe 05/11/2008
Procuradora Federal junto ao Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, Chefe do Serviço de Gerenciamento Estratégico, pós graduada em Direito Processual pela AVM Faculdade Integrada e pós-graduanda em Direito Administrativo. Fui analista judiciária do Superior Tribunal de Justiça, com exercício nos Gabinetes dos Ministros Maria Thereza de Assis Moura e Nilson Naves. Fui também advogada da Embrapa, com exercício na Embrapa-Sede.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Agueda Cristina Galvão Paes de. O poder normativo das Agências Reguladoras e o princípio da separação dos poderes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jul 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40143/o-poder-normativo-das-agencias-reguladoras-e-o-principio-da-separacao-dos-poderes. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.