RESUMO: No presente trabalho busca-se demonstrar a necessidade de se adotar os critérios de imputação objetiva que, basicamente, consistem na criação de um risco juridicamente não permitido e a realização deste risco no resultado, além de outros critérios que são desdobramentos destes, no âmbito do tipo objetivo, os quais possibilitam a correta observância do princípio da ofensividade ou lesividade que é político-criminalmente necessário para a consecução da missão de proteção de bens jurídicos inerente ao Direito Penal.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria da imputação objetiva, Fato típico, Ofensividade.
1. INTRODUÇÃO
A teoria da imputação objetiva visa tornar o substrato “fato típico” mais garantista, justo e compatível com os fins do Direito Penal, tendo em vista que, segundo esta orientação, só deverão ser tutelados, por este ramo da ciência jurídica, as infrações ao texto legal nas quais houver relevante lesão ou perigo de lesão a bens jurídicos (caráter fragmentário), ou seja, apenas se houver uma lesão concreta ou perigo concreto de lesão, respeitando-se, assim, o princípio da ofensividade, e apenas na eventualidade de tais comportamentos não serem tuteláveis por outros ramos do direito (caráter subsidiário).
Assim, as soluções alcançadas pela teoria da imputação objetiva revelam-se muito mais adequadas ao Direito Penal Contemporâneo, no qual tanto as garantias das vítimas como dos infratores merecem guarida constitucional, do que aquelas atingidas pelas teorias tradicionais construídas sob alicerces ontológicos ou estritamente causais.
Possibilitar o acolhimento da nova dimensão axiológica sugerida pela teoria da imputação objetiva, mormente, observando-se o princípio da ofensividade ou lesividade, é político-criminalmente necessário para a consecução da missão do direito penal: a exclusiva proteção de bens jurídicos.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 A visão pós-moderna do delito
O Direito Penal é formado por um conjunto de normas que servem de instrumentos para a consecução dos seus fins. Tais normas geralmente são dividas em normas primárias e normas secundárias pela doutrina, sendo distinguidas da seguinte maneira, conforme ensina Sánchez (2011, p. 479):
[...] as “normas primárias”, aqui entendidas como aquelas dirigidas aos cidadãos para proibir-lhes o cometimento de delitos, e as “normas secundárias”, dirigidas aos juízes para ordenar-lhes a imposição de sanções penais no caso de que se cometam delitos.
O preenchimento do tipo objetivo, antes do advento da teoria da imputação objetiva e da reorientação dos fins do direito penal para a proteção de bens jurídicos, tinha lugar sempre que a norma primária fosse violada por alguém, portanto, prevalecia uma concepção formalista do direito penal na qual bastava o ajuste formal da conduta à descrição presente na norma primária para que estivesse preenchido o tipo objetivo.
No contexto pós-moderno, entretanto, essa posição não deve prevalecer uma vez que a composição do tipo objetivo foi incrementada com o advento da teoria da imputação objetiva. Agora, para que seja preenchido o tipo objetivo é necessário, além da adequação formal da conduta ao texto da lei, o preenchimento dos requisitos materiais agregados pela teoria da imputação objetiva.
Estes requisitos de caráter material são os conhecidos critérios de imputação objetiva, os quais, para Claus Roxin, cujo modelo de funcionalismo é o mais compatível com o nosso ordenamento jurídico, são apresentados como a criação de um risco não permitido, a realização desse risco no resultado e o fim de proteção da norma.
Da simples adição desses critérios ao tipo objetivo, percebe-se a necessidade da presença do desvalor do resultado para o preenchimento deste primeiro substrato do crime, uma vez que se passa a exigir a realização do risco não permitido criado pelo agente no resultado concreto de lesão ou de perigo concreto de lesão a bens jurídicos, conforme, aduz Gomes (2011, p. 92):
A tipicidade objetiva, doravante, passa a ser entendida também em sentido material, porque está sendo enriquecida com o novo aspecto material (lesão ou perigo concreto de leão ao bem jurídico protegido). Parte-se de outro lado do seguinte: os ilícitos penais são condutas castigadas porque atentam contra valiosos interesses do homem e da sociedade (prohibita quia malam), não comportamentos reprováveis pelo simples fato de que a lei os sancione (mala quia prohibita): só o déspota e o tirano castigam por castigar ou proíbem por proibir.
Entender como suficiente o ajuste da conduta à norma primária a partir da simples violação do seu aspecto imperativo é ignorar por completo o seu caráter valorativo descoberto pelos neokantistas, o qual foi revitalizado e melhor desenvolvido pelos elaboradores da teoria da imputação objetiva, conforme a lição de Gomes (2011, p. 125).
Diferentemente do que o finalismo preconizava, a teoria da imputação objetiva não se satisfaz com a concepção exclusivamente legalista do tipo, sendo necessário que o seu aspecto substancial também seja atendido no caso concreto para que se conclua pelo preenchimento do tipo objetivo, sendo, então, possível o questionamento acerca dos demais níveis do crime (tipo subjetivo, antijuridicidade e culpabilidade).
Neste sentido, Tavares (2003, p. 227) assevera que:
Caso a incriminação não possa ter como referência a lesão ou o perigo de lesão do bem jurídico, é ela inválida por não representar a norma um instrumento adequado do processo de comunicação, que se destina a determinar, antes de tudo, as zonas do lícito e do ilícito.
Assim, mostra-se mais acertada a concepção de que a norma primária além do seu aspecto imperativo, consistente na subsunção literal da conduta praticada àquela descrita no tipo legal, apresenta, ainda, um aspecto valorativo ou substancial que só será preenchido caso haja relevante lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico (desvalor do resultado), em consonância com o princípio da ofensividade. Nesta esteira, leciona D’avila (2009, p. 46):
A este ilícito-típico, aqui entendido como categoria dogmática materialmente informada por um juízo de ilicitude centrado na ofensa a bens jurídicos, não basta, pois, o mero preenchimento dos requisitos formais da tipicidade. É também indispensável o atendimento de seus requisitos substanciais de legitimidade, dos requisitos atinentes à ofensividade.
Destarte, o princípio da ofensividade passa a desempenhar papel vital na teoria do delito que se tornou permeável em relação às decisões valorativas de política criminal, mitigando o positivismo jurídico exacerbado que é predominante no finalismo.
Precursor da teoria funcionalista moderada ou teleológica, Roxin (2002 p. 205-211) ressalta a necessidade de se partir de dados normativos para a construção do sistema da teoria do delito, o qual deve estar voltado para a proteção de bens jurídicos, fim maior do Direito Penal. Para tanto, as decisões valorativas do Estado devem compor esse sistema, a fim de que cada elemento do crime cumpra uma função político-criminal.
Essas decisões que antes se encontravam fora do sistema dogmático penal agora passam a integrá-lo, de tal forma que as leis deixam de cumprir a função de mera garantia da ordem jurídica já estabelecida, pois os problemas de política criminal passam a fazer parte do próprio sistema penal, exigindo que o intérprete compatibilize a literalidade do texto legal com os fins de política criminal predominantes.
2.2 Da necessária limitação do poder estatal
A concepção de se exigir a efetiva ofensividade da conduta para que se evidencie ser esta conduta objetivamente típica é essencial para frear o poder punitivo ilimitado do Estado que, a depender do ideário político dominante, poderá justificar uma forma autoritária de governo. Exemplo disso é a compatibilidade dos Estados nacional-socialistas com sistemas penais que desprezam a ofensa a um bem jurídico como dado indispensável para a tipicidade objetiva, conforme observa D’avila (2009, p. 51):
Nunca é demais lembrar, o que aqui se faz meramente a título de ilustração, que em um ponto diametralmente oposto ao modelo que ora se propõe está justamente a concepção de crime defendida durante o nacional-socialismo. Neste período, o ordenamento jurídico-penal alemão erige-se sobre a noção de violação do dever e da obediência ao Estado. Não maios o bem jurídico é a pedra angular do fenômeno delitivo, mas a “violação do vínculo ético”. A sociedade representada no Estado substitui o espaço antes ocupado pelo homem, e o centro do direito penal é ocupado por conceitos como fidelidade e obediência.
No contexto nacional-socialista, ponto principal do Direito Penal é a fidelidade e a obediência ao sistema posto, deixando o homem, destinatário final da proteção dada pelo direito penal, em segundo plano. Destarte, a todo custo deverá a norma jurídica ser cumprida, de sorte que qualquer hipótese de violação de seu comando imperativo será merecedora da sanção prevista em seu comando secundário.
Ocorre que a incriminação consiste em um processo de ponderação de bens no qual a liberdade do infrator é sopesada com os bens da vítima que foram lesados.
É preciso reconhecer que todos os bens envolvidos na situação delituosa são constitucionalmente protegidos, inclusive a liberdade do infrator, caso contrário não haveria limites para o julgador na aplicação de penalidades aos que transgridem a previsão legal, o que possibilitaria injustiças com a aplicação desproporcional de sanções.
O Estado estaria autorizado a usar do seu poder ilimitadamente, situação que seria assaz temerária em virtude da natureza humana de sempre procurar agregar o máximo de poder possível, conforme já se observou inúmeras vezes ao longo da história através dos estados absolutistas, totalitários, socialistas, entre outros.
Tal conclusão já havia sido anunciada por Hobbes, que destaca como: “[...] tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte.” (1997, p. 91).
Portanto, faz-se necessário a fixação de pressupostos mínimos para a restrição dessa liberdade constitucionalmente resguardada, papel que é desempenhado pela teoria do delito mediante a construção do sistema jurídico penal voltado para a exclusiva proteção de bens jurídicos contra lesões e colocações em perigo concreto, pois, conforme D’avila (2009, p. 53-54):
[...] a liberdade, enquanto valor constitucional fundamental, somente pode ser restringida quando o seu exercício implicar a ofensa de outro bem em harmonia com a ordem axiológico-constitucional. Meros interesses administrativos insuscetíveis de configurar um bem jurídico-penal estariam, de pronto, e por estas mesmas razões, totalmente excluídos da possibilidade de constituir substrato suficiente para o surgimento de uma qualquer incriminação [...] Mas,se isso é assim, se a exigência de ofensividade é uma imposição constitucional de legitimidade, dois níveis de valoração se fazem necessários para a verificação e aceitação de um ilícito-típico em âmbito criminal. Um primeiro nível, no qual será verificada a existência de um bem jurídico-penal como objeto de proteção da norma. E um segundo nível, no qual se irá verificar a existência de ofensividade, como resultado (jurídico) da relação entre a conduta típica e o objeto de tutela da norma.
Desta feita, a teoria da imputação objetiva ocasionou um maior desenvolvimento da teoria das normas, tendo em vista que consolidou um sistema penal axiológico no qual, além da violação da norma primária, exige-se a violação concreta dos valores protegidos pela norma para que haja o preenchimento do tipo objetivo.
3. CONCLUSÃO
Diante dessa conjuntura, não há mais espaço para sistemas ontológico-formalistas que desprezam o aspecto substancial da ofensa ao bem jurídico.
Toda ofensa a bem jurídico carece de um resultado para ser punível o qual não necessariamente será naturalístico, mas, ao menos, jurídico, como ocorre com os crimes formais e de mera conduta, e esse resultado deve ser real, isto é, deve consistir em uma lesão ou colocação em perigo concreto, o que não retira o caráter real da ofensa praticada, pois aqui o prejuízo não é presumido (crime de perigo abstrato).
Entretanto, este resultado jurídico só poderá ser imputado ao autor da conduta se guardar correspondência com o risco proibido por ele criado, caso contrário não haverá preenchimento do tipo objetivo, sem que se faça mais necessário o questionamento acerca do dolo ou da culpa do autor.
Portanto, não há mais espaço para infrações penais como a “vadiagem”, contravenção penal prevista no artigo 59 da nossa Lei de Contravenções Penais, que pune o modo de ser da pessoa e não uma ofensa concreta por ela praticada.
A concepção material do delito construída a partir da teoria da imputação objetiva veda intervenções desproporcionais do Direito Penal, mormente os casos de simples violação de um dever (comando da norma primária) ou em virtude do modo de viver ou de pensar dos indivíduos, afinal, vivemos em uma sociedade que busca ser livre, justa e solidária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
D’AVILA, Fábio Roberto. Ofensividade em direito penal: Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
GOMES, Luís Flávio. Teoria constitucionalista do delito e imputação objetiva: O novo conceito de tipicidade objetiva na pós-modernidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
JAKOBS, Günther. ______. A Imputação objetiva no direito penal. Trad. André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
MALMESBURRY, Thomas Hobbes de. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
ROXIN, Claus. A Proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. 2. ed. Org. e trad. André LuísCallegari, Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
______. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Intro. e trad. Luís Greco. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
SÁNCHEZ, Jésus-María Silva. Aproximação ao direito penal contemporâneo. Tradução: Roberto Barbosa Alves. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência: Uma contribuição à teoria do crime culposo. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
Assessor de Promotor de Justiça do Ministério Público da Paraíba, Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus, Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Philipe Amorim. A ofensividade como requisito da intervenção penal à luz da teoria da imputação objetiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jul 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40292/a-ofensividade-como-requisito-da-intervencao-penal-a-luz-da-teoria-da-imputacao-objetiva. Acesso em: 23 dez 2024.
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