Resumo: O artigo aborda a formação do stare decisis na Inglaterra e o tratamento do precedente judicial no sistema anglo-saxônico, com ênfase para as técnicas de aplicação e superação de precedentes no Reino Unido e nos Estados Unidos da América.
Abstract: The article discusses the formation of stare decisis in England and the theory of judicial precedent in the Anglo-Saxon system, with emphasis on application techniques and overcoming precedent in the United Kingdom and the United States.
A jurisdição civil brasileira, sobretudo na última década, tem sido objeto de sucessivas alterações por iniciativas legislativas que, na busca pela efetividade do processo, tencionam desafogar as instâncias superiores, cuja capacidade de produção judiciária tem beirado o limite do factível. Tais inovações, dentre as quais se destacam o julgamento unificado dos recursos especiais repetitivos, a repercussão geral em recurso extraordinário, a súmula vinculante e as faculdades outorgadas ao Supremo Tribunal Federal no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade, acabaram por impingir ao sistema jurídico brasileiro características cada vez mais aproximadas às do hodierno modelo anglo-saxônico, ou da common law, em que vige a regra do precedente vinculante, ou stare decisis. Com efeito, na medida em que se fortalece a jurisprudência dos tribunais superiores, perde valor a literalidade do texto legal, que se torna, paulatinamente, fonte subsidiária para a resolução de problemas que demandem a aplicação do direito.
Nesse contexto, torna-se imprescindível a compreensão do tratamento conferido ao precedente nos países de common law, os quais, por força de uma formação histórica peculiar, ostentam tradição secular no manejo da decisão judicial como fonte do Direito. O presente estudo examina a formação do stare decisis na Inglaterra e a teoria do precedente judicial no sistema anglo-saxônico, com ênfase para as técnicas de aplicação e superação de precedentes no Reino Unido e nos Estados Unidos da América.
A expressão stare decisis é uma fórmula reduzida do adágio latino stare decisis et non quieta movere, que, literalmente, significa “mantenha-se a decisão e não se moleste o que foi decidido” (MIRANDA, 2006, p. 12). Na Inglaterra, é utilizada como sinônimo da doctrine of precedent (ou rule of precedent), definitivamente reconhecida em 1898, no caso London Trainways Company v. London County Council, em que a House of Lords reiterou a obrigatoriedade de nortear-se por suas próprias decisões, em efeito autovinculante (vinculação horizontal), além de declarar a eficácia externa de seus julgados a todas as cortes de grau inferior (vinculação vertical). Em verdade, desde 1861 (caso Beamisch v. Beamisch), já se havia estabelecido que a House of Lords “estaria obrigada a acatar sua própria autoridade proclamada nos julgamentos”, tese repetida no caso Bradford v. Pickles, de 1895. Em 1898 fixou-se em definitivo a regra do precedente (TUCCI, 2010, p. 219-222), doutrina que somente veio a flexibilizar-se em 1966, quando a câmara judicial do Parlamento britânico reconheceu que a aderência excessivamente rígida às decisões pretéritas poderia levar à injustiça em um caso particular, além de restringir indevidamente o correto desenvolvimento do Direito (BUSTAMANTE, 2012, p. 77).
Não é correto, porém, afirmar que a vinculação aos precedentes é um instituto verificável no processo inglês somente na parte final do século XIX. Em que pese tenha sido esse o marco formal da versão mais incisiva da doutrina (doctrine of absolutely binding precedent, que importa no efeito autovinculante das decisões dos tribunais), uma forma mais branda da regra do precedente obrigatório (simpliciter binding precedent, mera eficácia vertical [1] do julgado) já era praticada na Inglaterra, pelo menos, desde o século XVII (BUSTAMANTE, 2012, p. 83). Corolário de um ordenamento jurídico de base jurisprudencial, o preceito da vinculação aos precedentes, ou stare decisis, surgiu como decorrência natural da ausência, no período de formação da common law, de um catálogo de regras de fundo do direito inglês. A opção histórica da coroa britânica por emanar normas jurídicas de processo, relegando aos Tribunais Reais ou ao da Chanceleria a tarefa de dizer o direito em primeiro plano, foi determinante para que, com o passar do tempo e o desenvolvimento dos ideais democráticos, os anseios por segurança jurídica e por uma maior previsibilidade da atividade jurisdicional conduzissem a uma recorrência cada vez mais elaborada aos precedentes judiciais, o que culminou com a fixação, na segunda metade do século XIX, da regra do precedente absolutamente vinculante, com eficácia horizontal. [2]
Ademais, diferentemente do que se pode pensar, o stare decisis não foi uma construção exclusiva do sistema anglo-saxônico ou da common law. No período de formação do Estado Moderno (séculos XVI a XVIII), diversos países outorgaram importante valor à jurisprudência como fonte do Direito, entendida como o meio mais eficaz para se alcançar a pretendida uniformização do jus commune europeu, [3] de evidente pretensão cosmopolita. Pode-se elencar como exemplos de Estados de tradição romanista que se utilizavam do sistema de precedentes vinculantes a Toscana (século XVII), a Santa Sé (séculos XVI e XVII), o Reino de Nápoles (séculos XV e XVI), o Piemonte e a Savoia (século XVIII), a Baviera (século XVIII) e os Estados Sardos (séculos XVIII e XIX), sendo certo que iniciativas do gênero se intensificaram no século XIX, verificando-se a instituição da obrigatoriedade do respeito às decisões da Suprema Corte no Estado de Sachsen-Weimar, entre os anos 1816 e 1831, e na própria França, em 1836, quando todas as Cours d’Appel foram obrigadas a seguir certos precedentes da Cour de Cassation, conhecidos como arrêts en robes rouges (BUSTAMANTE, 2012, p. 78-80).
Logo, não obstante as especificidades do caso inglês, cuja história evidencia desde o princípio razões suficientes para a utilização, em maior ou menor medida, de um elaborado sistema de precedentes, a doutrina da vinculação estrita aos julgados das cortes de apelação revelou-se um movimento geral, próprio da Idade Moderna, que atravessou diversas monarquias constitucionais, como verdadeira expressão do Estado de Direito. Parecia inconcebível ao jurista da modernidade que a sociedade e o próprio monarca fossem submetidos ao primado da lei e que esta mesma lei pudesse ser interpretada de diferentes formas para casos análogos. A necessidade inarredável de uniformização exigiria, pois, a adoção de estratégias em torno da tarefa interpretativa, tendo a experiência demonstrado as vantagens de se relegar a competência hermenêutica ao órgão de cúpula do Judiciário:
Como observa Dolezalek, do século XVII em diante, “afirma-se a exigência de se desenvolverem técnicas mais eficientes para o governo do Estado”, em cujo âmbito se encontrava especialmente uma “específica tendência à homogeneização do Direito em todo o Estado”. Era necessário, para a consolidação do Estado Moderno, que todas as leis fossem interpretadas de modo igual [Dolezalek 1998:77-78]. Duas vias foram adotadas para atingir esse objetivo: uma delas, de “escassa praticabilidade”, foi “concentrar toda a atividade interpretativa em uma única instituição” (como, por exemplo, aconteceu em França, em 1790, com a criação do référé legislatif); a outra, mais promissora e que apresentou maior sucesso histórico, foi “atribuir força de lei aos precedentes do Tribunal Supremo”. (BUSTAMANTE, 2012, p. 79)
A atribuição de efeito vinculante a determinadas decisões judiciais, assim, mais do que uma realidade estritamente inglesa, constituiu, nos séculos XVI a XVIII, instrumento jurídico amplamente difundido também no seio da civil law, em diferentes países de origem romano-germânica, dada a concepção moderna de que seria indispensável à estruturação do Estado de Direito (BUSTAMANTE, 2012, p. 82). [4] O desenvolvimento da rule of precedent na Inglaterra, contudo, para alcançar a teoria do precedente absolutamente vinculante (doctrine of absolutely binding precedent), de 1898, com eficácia horizontal ou auto-obrigatória, revelou-se uma construção particular, para a qual foram determinantes os trabalhos de Jeremy Bentham, inspirados no positivismo jurídico do século XIX. Bentham se opunha fortemente à teoria declaratória do direito, que pregava ser a atividade judicial apenas um meio de exteriorização da common law, defendendo, em seu lugar, a teoria constitutiva, segundo a qual o precedente judicial literalmente cria o direito.
Segundo parcela da doutrina da época, a perspectiva declaratória era incompatível com a eficácia autovinculante do precedente, sob o argumento de que o tribunal poderia cometer equívoco na aplicação da norma no caso concreto: uma vez que a common law já existiria em um plano não escrito, não se poderia obrigar o tribunal a eternizar decisão pretérita emanada da corte, pois esta não constituía o direito inglês propriamente dito, mas apenas a compreensão dos juízes a seu respeito. A teoria constitutiva, por outro lado, ao defender que os tribunais efetivamente criam o direito jurisprudencial, exigiu, à luz do pensamento positivista, que essa norma constituída pelos tribunais fosse aplicada de maneira uniforme, o que constituiu o cerne da teoria estrita do precedente vinculante. Bentham foi um opositor ferrenho do case law, o qual, em sua perspectiva, era um judge-made law. Seu projeto político – nunca levado a cabo – era o de reformar toda a common law, em trabalho de codificação, com a finalidade de alcançar a “certeza jurídica” e remover “de uma vez por todas a discricionariedade dos juízes para ponderar entre a segurança jurídica e outras considerações” (BUSTAMANTE, 2012, p. 88-89). Tal busca pela certeza do direito positivo, associada à noção de que o direito judicial era mera uma criação humana, conduziu ao exacerbamento da doutrina do precedente na Inglaterra, culminando no que ficou decidido no caso London Trainways (1898), somente flexibilizado em 1966, quando se passou a admitir a superação do precedente, nas raras hipóteses em que este causasse, no entender da corte, evidente “injustiça”.
A adequada compreensão do fenômeno do stare decisis nos países de tradição saxônica exige que se esclareça com precisão o conceito de precedente, conforme utilizado no contexto da common law, com o fito de afastar a confusão passível de ocorrência com institutos assemelhados do civil law, verificáveis na experiência jurídica brasileira.
Precedente é “a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos.” (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 381) Na doutrina do common law, já foi definido como “an adjudged case or decision of a court, considered as furnishing an example or authority for an identical or similar case afterwards arising or a similar question of law.” [5] (BLACK apud SOUZA, 2013, p. 41) É, portanto, a deliberação judiciária que, por questões de competência ou autoridade do órgão que a emanou, e de uma evidente inovação no entendimento de uma questão de direito, pode ou deve ser utilizada para balizar as decisões subsequentes a respeito do tema, tanto por parte do componente prolator quanto pelas instâncias a ele inferiores.
Há, pois, uma diferença nítida entre precedente e decisão judicial. Todo precedente é decisão judicial, mas nem toda decisão judicial está revestida dos elementos que permitem qualificá-la como precedente. Segundo Marinoni (2013, p. 213-214), o precedente versa sempre sobre questão de direito (point of law), ao passo que a maioria das decisões diz respeito a matérias de fato. A decisão que se limita a reproduzir o conteúdo da lei sem evidenciar uma tarefa interpretativa ou que, interpretando-a, apenas segue julgado prévio que consolidou determinada opção hermenêutica, pela ausência do atributo da inovação, não configura um precedente. Ademais, é preciso que a decisão, para efetivamente formar precedente invocável, enfrente todos os principais argumentos relacionados à questão de direito que permeia os casos de fato, já que a omissão em relação a uma ou mais das teses jurídicas alegadas constituiria deficiência na fundamentação, tornando insuficiente a mera remissão ao precedente como única motivação do julgado. Por essa razão, sustenta o autor que o precedente deve formar-se a partir da análise de mais de um caso concreto, “mediante uma construção da solução judicial da questão de direito que passa por diversos casos.” No entender do autor, o precedente é “a primeira decisão que elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia, deixando-a cristalina” (MARINONI, 2013, p. 214).
Não há que se confundir, igualmente, precedente com enunciado sumular da jurisprudência. A súmula é uma descrição acerca do conteúdo das decisões de um tribunal, não uma decisão que se qualifica como precedente. Um enunciado sumulado não se reveste das garantias que possui um precedente, porque sua elaboração não provém da participação em contraditório dos litigantes. O texto da súmula é editado pelo tribunal sem a participação das partes que protagonizaram os casos concretos que lhe deram origem. Logo, inexiste, para a súmula, legitimidade idêntica à de um precedente – formado com as garantias do contraditório e após extensivo debate dos sujeitos interessados –, sobretudo quando se pretenda a incidência obrigatória do enunciado sobre a esfera jurídica de outros jurisdicionados. Com efeito, “a preocupação, como parte, com os efeitos da decisão, ou, mais especificamente, com a coisa julgada, curiosamente, confere legitimidade à eficácia do precedente obrigatório em relação a terceiros”, algo de que se ressentem as súmulas, inclusive as vinculantes (MARINONI, 2013, p. 215).
Afora tal aspecto conceitual, há nas súmulas, formalmente, uma distinção fundamental em relação ao precedente, na medida em que se desvinculam das circunstâncias do caso concreto, buscando apenas delimitar um enunciado jurídico. Todo precedente encerra uma tese jurídica inseparável das especificidades da demanda que lhe deu causa, o que não ocorre em relação às súmulas, cujo formato de edição tem por finalidade nítida “resolver” uma questão jurídica no plano geral. Ao afastar-se dos elementos de fato que justificam a decisão, a súmula impede sua correta aplicação, vez que inviabiliza o exame da identidade ou do distinguish do caso em julgamento em relação ao paradigma (MARINONI, 2013, p. 216). Tal, aliás, é o motivo pelo qual, no mais das vezes, incorrem as súmulas em problemática idêntica à da própria lei, cuja fórmula genérica é incapaz de abarcar, na integralidade, a multiplicidade dos fatos de relevância para o Direito.
Chamberlain, citado por Ramires (2010, p. 68), propõe uma concepção técnica de precedente, a qual seria “una decisión de um tribunal o un juez, tomada después de un razionamiento sobre una cuestión de derecho planteada en un caso, y necesaria para el establecimiento del mismo", que se converte em "una autoridad [...] para el mismo tribunal y para otros tribunales de igual o inferior foro, en subsiguientes casos en que se plantee otra vez la misma cuestión."
A definição evidencia alguns caracteres essenciais do precedente: a) advém de um “raciocínio” judicial, que se encontra na motivação do julgado; b) versa sobre uma “questão de direito” ou questão jurídica, não por isso desgarrada dos elementos de fato que deram origem à demanda; c) possui abrangência restrita, na medida em que sua força vinculante se limita a questionamentos futuros da “mesma questão”; d) é uma decisão “necessária” à resolução do caso concreto, isto é, representa a tese jurídica indispensável ao deslinde da controvérsia (ratio decidendi ou holding), na medida em que há elementos adicionais constantes do acórdão que assenta o posicionamento da corte, consistentes em meros pronunciamentos circunstanciais (obiter dictum ou dictum), [6] os quais, segundo parcela da doutrina, não integram tecnicamente o conceito de precedente (RAMIRES, 2010, p. 68).
Consoante Marinoni (2013, p. 213), nos países de common law, a palavra “precedente” é utilizada com diferentes significados jurídicos. Em sentido estrito, porém, refere-se à decisão pretérita, de caráter vinculante, emanada da própria corte de apelação ou de uma corte superior da mesma jurisdição.
Questão de interesse ao presente estudo é a atinente à natureza jurídica do precedente. A temática foi objeto intensa de discussão durante séculos, debatendo-se magistrados e teóricos do direito inglês acerca da natureza constitutiva ou declaratória do precedente judicial.
A primeira teoria, denominada declarativa, declaratória ou ortodoxa, afirma que a norma preexiste à decisão judicial. O direito, de origem legislativa ou consuetudinária, fruto do uso imemorial dos cidadãos, independe da decisão judicial, que é, tão somente, a forma pela qual a norma jurídica é exteriorizada pelo agente do Estado. O magistrado apenas declara o direito, que é criado em momento anterior, por obra do legislador ou da própria sociedade (SOUZA, 2013, p. 41).
O jurista inglês Willian Blackstone foi um dos principais defensores dessa teoria. Para ele, havia uma lex non scripta (direito não escrito ou common law), e uma lex scripta (direito escrito ou statute law). O common law abrangeria tanto os costumes gerais do Reino quanto os particulares, vivenciados em apenas algumas partes do território inglês (MARINONI, 2013, p. 23). Segundo o autor, a decisão judicial constituía “a principal e mais competente prova, que pode ser dada, da existência de como o costume deve fazer parte da common law”. A edição dos precedentes, no dizer de Blackstone, justifica-se somente “para manter uma mesma e constante escala de justiça e não ser passível de renúncia a cada nova opinião judicial”, uma vez que os juízes são competentes para julgar “não de acordo com as suas convicções pessoais”, mas “de acordo com o conhecimento das leis e costumes da terra” (ALMEIDA, 2012, p. 349).
Uma segunda teoria, denominada positivista ou constitutiva, contrapõe-se à primeira, sustentando que o common law existe porquanto formulado por juízes detentores de law-making authority. Nessa perspectiva, o direito seria o produto da vontade dos juízes, que o criam no momento da edição da decisão, e não o resultado de uma elaboração anterior, meramente declarada pelos tribunais (ALMEIDA, 2012, p. 350). A doutrina é capitaneada por Jeremy Bentham e John Austin, que, de forma impiedosa, tecem duras críticas à teoria declaratória, chegando a acusá-la de “ficção infantil” (MARINONI, 2013, p. 24).
A moderna filosofia da linguagem superou tal discussão ao revelar que todo texto admite certo grau de interpretação, ao passo que toda atividade interpretativa comporta o elemento da criatividade (SANTOS, 2013, p. 5). Ademais, é sabido que o dogma da completude do ordenamento jurídico somente se sustenta com a utilização de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, cujo real sentido somente pode ser conferido à luz das circunstâncias do caso concreto. Trata-se de opção consciente do legislador, o qual, conhecedor da impossibilidade de prever em texto normativo a totalidade das relações sociais passíveis de conflito, relega a solução de determinadas controvérsias ao Judiciário, que, a partir de princípios e valores jurídicos e sociais, constrói a norma que se afigura mais justa para a espécie, pela atividade dialética dos tribunais. Logo, em certa medida, tanto o juiz do civil law quanto o do common law sempre “criaram” direito.
É fato, porém, que a inexistência de um corpo normativo prévio à ocupação normanda fez com que o juiz inglês efetivamente produzisse os textos jurídicos que estão na base dos ordenamentos anglo-saxônicos. Os direitos inglês e norte-americano são de formação essencialmente jurisprudencial, não legislativa. Jamais se admitiu, na Inglaterra e nos Estados Unidos, a ficção de que o juiz poderia ser meramente la bouche de la loi, como apregoavam os ideais da Revolução Francesa. Além disso, a assunção de um regime de precedentes vinculantes pelos países de common law colocou em evidência o caráter constitutivo de seus precedentes judiciários, já que a principal razão de ser da regra do stare decisis não era outra senão a contenção do potencial arbítrio judicial, o qual somente pode ocorrer em um sistema que garanta aos magistrados ampla liberdade de atuação. Por essa razão, durante algum tempo, persistiu o mito de que o juiz do common law “cria” direito, ao passo que o juiz do civil law “declara” o direito.
O advento do constitucionalismo moderno, [7] contudo, que conferiu ao juiz do civil law o poder de afastar a aplicação de determinada lei ante a declaração de incompatibilidade do texto legislativo com os preceitos constitucionais, alterou significativamente a compreensão do papel da magistratura nos países de tradição romanista. A função normativa e hermenêutica dos princípios constitucionais, por vezes descritos em fórmulas abertas e indeterminadas, ampliou a tarefa interpretativa do Poder Judiciário, conduzindo a um quadro nunca antes visto de produção judiciária do direito nos Estados do sistema romano-germânico.
Esta, aliás, é a razão pela qual o tema do precedente judicial tem ganhado tanto relevo nos países de civil law: houve um inequívoco crescimento da atividade criadora do Judiciário, o qual, contudo, foi desacompanhado de institutos que promovessem a contenção do poder normativo dos tribunais. Se não se pode negar às cortes o papel de interpretar, sistematizar e consolidar o direito, o mínimo que delas se pode exigir é a uniformidade e a coerência no desempenho da função judicante, sob pena de vivenciar-se um estado de completa insegurança jurídica, com risco de instalação de verdadeira ditadura judicial.
Há, pois, modernamente, a compreensão de que, tanto no civil law quanto no common law, existe certo grau de criatividade na atividade jurisdicional, como, de resto, ocorre em toda atividade interpretativa (CAPPELLETTI, 1993, p. 42). E é precisamente o caráter constitutivo do precedente judicial que justifica a utilização do stare decisis, como elemento de contenção do poder normativo do Judiciário. [8]
Não obstante a clareza dos conceitos acima esposados, uma melhor compreensão do precedente enquanto instituto jurídico passa pelo exame de seus elementos constitutivos. Com efeito, a técnica de utilização de precedentes, de importância crescente na experiência jurídica brasileira, requer uma compreensão acurada de suas partes integrantes, cujas relações internas são objetos de teorias divergentes, a depender da perspectiva jurídico-filosófica adotada.
Conforme José Rogério Cruz e Tucci, citado por Didier Júnior (2009, p. 381), “todo precedente é composto de duas partes distintas: a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório.” O núcleo essencial da fundamentação, contudo, diferencia-se dos argumentos apenas incidentemente articulados pelo julgador (obiter dictum), os quais não são determinantes para a fixação da proposição jurídica acolhida. Tal distinção é relevante porquanto a eficácia vinculante do precedente obrigatório se circunscreve tão somente à ratio decidendi, sendo de fundamental importância o domínio da técnica de identificação das razões centrais da decisão judicial.
Assim, propõe-se uma definição de precedente que comporta dois elementos: a) a ratio decidendi, ou tese jurídica eleita na decisão, que, por sua vez, é formada pela descrição dos fatos que ensejaram o julgado, o raciocínio judicial e o dispositivo do julgamento propriamente dito; b) o obiter dictum, ou o que de mais foi dito pelo julgador, a par da fundamentação essencial do decisum.
A ratio decidendi, denominada de holding no contexto norte-americano, é o elemento de eficácia persuasiva ou vinculante do precedente. Ainda segundo José Rogério Cruz e Tucci, citado por Didier Júnior (2009, p. 381), “a ratio decidendi constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law)” e é composta a) da indicação dos fatos relevantes da causa (statement of material facts), b) do raciocínio lógico-jurídico da decisão (legal reasoning) e c) do juízo decisório (judgement).
Quando o magistrado decide uma demanda judicial, cria necessariamente duas normas jurídicas: a primeira, de caráter geral, é o resultado da interpretação dos fatos que deram origem à demanda e de sua conformação com o direito objetivo; a segunda, de natureza individual, é o provimento específico emanado para solucionar o conflito em particular (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 382). A tese de direito acolhida pelo julgador à luz do caso concreto, diferentemente do dispositivo judicial, ostenta caráter geral dado o potencial de aplicação reiterada em casos vindouros. É a essa norma jurídica que se dá o nome de ratio decidendi ou holding.
Note-se, contudo, que a norma geral criada pelo magistrado encontra-se intimamente vinculada aos fatos que lhe deram origem (SOARES apud RAMIRES, 2010, p. 70). Por essa razão, é elemento fundamental da ratio decidendi a descrição do fato que ensejou a controvérsia de direito (statement of material facts), porquanto indissociável da tese jurídica acolhida pelo julgador. Cuida-se de fato jurídico, na medida em que, sobre ele, quando ainda mero fato social, incidiu a norma jurídica, no denominado processo de jurisdicização. [9]
A componente fática do ratio decidendi se subdivide entre o fato principal e as circunstâncias. Do latim circum + stare, “que está ao redor”, circunstância é o elemento factual que circunda o fato essencial ou primordial. Quando a circunstância possui relevância jurídica, integra o conceito de fato jurídico para todos os efeitos, atraindo a incidência da norma.
A descrição do fato e das circunstâncias é parte essencial do precedente judicial. O precedente não é norma genérica, de aplicação ampla, mas regra estrita, inteiramente ligada aos fatos da demanda originária, razão pela qual é imprescindível, em um sistema que valorize a jurisprudência como fonte do direito, a explicitação formal e permanente do acontecimento concreto como fundamento implícito da tese jurídica adotada.
A doutrina da common law jamais perdeu de vista essa realidade. Como bem pontuado por Maurício Ramires,
A “exigência hermenêutica”, segundo Gadamer, “é justamente a de compreender o que diz o texto a partir da situação concreta na qual foi produzido.” Assim, ainda que tenha sido permeável à subjetividade dos métodos, a tradição da common law nunca cedeu à tentação de esquecer os fatos ou de escondê-los sob as conceituações jurídicas contidas nas decisões judiciais ou nas opinions of the court. Ao contrário, para o juiz daquele sistema decidir invocando um precedente é imprescindível que antes tome conhecimento dos fatos do caso presente e do caso que deu origem ao julgado pretérito, e, só após compará-los, identificá-los e distingui-los, ele poderá aplicar a regra. (RAMIRES, 2010, p. 70-71)
Nada mais razoável. Por mais que o efeito vinculante resida somente sobre a proposição de direito encerrada no precedente – já que a coisa julgada, no que pertine à controvérsia de fato, interessa exclusivamente aos destinatários iniciais do comando sentencial, que foram partes no processo –, a correta aplicação do prejulgado exige que fato presente e fato pretérito guardem relação de similitude, pois, não havendo identidade ou semelhança, estar-se-á diante de “precedente inespecífico”, inservível para governar o julgamento. Essa, aliás, é a essência do método das distinções, que se encontra na base da formação do jurista da common law. Fato e direito são realidades indissociáveis, pois toda questão de fato é também de direito e toda questão de direito emana de uma situação de fato. É o que revela Lênio Streck, citado por Ramires (2010, p. 71), ao afirmar que, não obstante seja de fácil visualização que “direito é concretude”, e que sua finalidade expressa é “resolver casos particulares”, não é igualmente evidente que “o processo interpretativo é applicatio, e que o direito é parte integrante do próprio caso, e uma questão de direito é sempre uma questão de fato e vice-versa.”
Nesse sentido, há muito já asseverou Miguel Reale, ao referir-se à sua famosa teoria tridimensional do Direito:
a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor; b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta; c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo (já que vimos que o Direito é uma realidade histórico-cultural) de tal modo que a vida do Direito resulta da interação dinâmica e dialética dos três elementos que a integram. (REALE, 2002, p. 65)
Se fato e norma se mostram inseparáveis no plano abstrato, do Direito enquanto “realidade histórico-social”, quanto mais hão de sê-lo no nível concreto, da demanda formalmente judicializada, em que se instalou um conflito real e efetivo. Inquestionável, assim, em um sistema de precedentes, a necessidade de o jurista proceder a uma análise minuciosa dos fatos que ensejaram determinada conclusão em matéria de direito e, mais que isso, a relevância da descrição cuidadosa e indivisível dos fatos no acórdão que documenta o precedente.
O raciocínio judicial (legal reasoning) é um segundo elemento do precedente, que integra a ratio decidendi. Cuida-se do iter ou caminho perseguido pelo magistrado no processo de subsunção da norma ao fato. Compõe-se dos critérios de interpretação dos fatos e da indicação dos princípios e regras de direito aptos a contribuir para a interpretação do texto jurídico tido por aplicável ao caso. É a lógica jurídica adotada pelo julgador para fundamentar a opção por determinada tese de direito, escolhida como razão de decidir.
Por último, o juízo decisório (judgement) é o elemento central do ratio decidendi, a norma geral produzida, a tese jurídica adotada como fundamento do provimento emanado no feito em julgamento. É a norma de eficácia geral que resulta da aplicação do direito objetivo, integralmente considerado, aos fatos demonstrados no bojo da demanda, norma essa que dá sustentação ao dispositivo do julgado, cuja aplicabilidade, em regra, é restrita às partes do processo.
Não há que se confundir, pois, o judgement, qual elemento da ratio decidendi, com o dispositivo do julgado-precedente. O dispositivo é norma de eficácia estrita, provimento específico emanado pelo magistrado que tem por finalidade resolver determinada demanda judicial; o juízo decisório ou judgement, diversamente, é a norma anterior, fruto da interpretação acerca da legislação e dos princípios gerais do direito, que subsidia o julgamento da causa particular em apreço. A norma contida na ratio decidendi possui aplicabilidade geral, podendo ser sucessivamente invocada para a solução de casos posteriores, sendo essa a essência do conceito de precedente; a norma específica presente no dispositivo, de seu turno, depende da ratio decidendi e destina-se, no mais das vezes, aos litigantes, que figuraram como partes na relação jurídica processual.
Dessa observação resta clara, também, a distinção entre ratio decidendi e coisa julgada erga omnes. A eficácia geral eventualmente outorgada à coisa julgada não se confunde com a aplicabilidade genérica do juízo decisório encerrado na ratio decidendi. Enquanto a primeira é uma regra técnica voltada a conferir definitividade às decisões judiciais, em atenção ao princípio da segurança jurídica, a segunda é um instituto associado à uniformidade, previsibilidade e coerência da jurisprudência de um tribunal, ante a replicação da tese jurídica aos casos vindouros. Como bem pontua Tiago Asfor Rocha Lima,
A coisa julgada é uma qualidade da decisão que garante a não modificação do julgado, fincando um ponto final na controvérsia levada a juízo. Por sua vez, a transcendência da ratio decidendi, ainda que também se apresente como protetora da segurança jurídica, vincula-se mais propriamente à replicação da tese jurídica em futuros casos similares. Decorre, pois, do dever de respeito ao entendimento de um tribunal, tentando, pois, evitar novos litígios. (LIMA, 2013, p. 181)
Apesar disso, é inegável que a eficácia geral e o efeito vinculante eventualmente verificáveis na coisa julgada aproximam a decisão judicial da noção de precedente. Mais que isso, transmudam o julgado no que se poderia considerar como o “precedente por excelência”, porquanto a ratio decidendi, aqui qualificada qual fundamentação de um juízo definitivo e obrigatório de caráter geral, passa a não poder ser afastada, dada sua conexão com o dispositivo vinculante.
A par da ratio decidendi (fatos, raciocínio judicial e juízo decisório da tese jurídica que embasa o dispositivo), a doutrina costuma elencar o obiter dictum ou simplesmente dictum (plural: obter dicta) como elemento do precedente. Trata-se dos argumentos expostos apenas de passagem na motivação do julgado, que consubstanciam “juízos acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento que não tenha influência relevante e substancial para a decisão”, pelo que se revelam como algo “prescindível para o deslinde da controvérsia” (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 383).
Com efeito, podem existir questões que, não obstante tenham sido mencionadas no corpo de uma decisão judicial, não foram consideradas pelo juiz quando de sua atividade cognitiva, não ostentando relevância para a formação do dispositivo. Constituem, pois, meras reflexões que ali constaram em virtude do raciocínio lógico-jurídico do magistrado, mas que não podem ser consideradas tecnicamente como justificativa para a conclusão judicial. Tais argumentos adicionais, incidentais, de mero reforço argumentativo, são o que se denomina de obiter dictum (LIMA, 2013, p. 171).
O obiter dictum é normalmente identificado negativamente, sendo compreendido como tudo aquilo que não integra a ratio decidendi (SOUZA, 2013, p. 139). É composto pelos elementos do precedente que não se identificam com o núcleo da fundamentação do julgado, configurando “qualquer conclusão a que chega o Tribunal, mas que não é essencial para o julgamento do caso concreto.” Em outras palavras, é a parte do decisum cuja exclusão em nada alteraria as razões de decidir (NOGUEIRA, 2013, p. 184) e tampouco infirmaria de nulidade a sentença ou acórdão por ausência de motivação. A distinção entre ratio decidendi e obiter dictum constitui tarefa essencial em um sistema de precedentes obrigatórios, na medida em que o efeito vinculante reside somente no elemento essencial da fundamentação, isto é, no juízo decisório que compõe a ratio decidendi.
Marcelo Alves Dias de Souza sustenta que, a rigor, há diferença entre as expressões obiter dictum e dictum. Aduz, também, haver nomenclatura adicional para os elementos do precedente que estão de fora da ratio decidendi, os quais seriam denominados de gratis dictum e judicial dictum:
Quanto à precisão terminológica, diz-se que dictum é uma proposição de Direito, constante do julgamento do precedente, que, apesar de não ser ratio decidendi, tem considerável relação com a matéria do caso julgado e maior poder de persuasão. Em comparação, obiter dictum é uma proposição de Direito, constante do julgamento, com ligação muito tênue com a matéria do caso e pouquíssimo persuasiva. Outra terminologia que é empregada, tomando por referência o grau de persuasão, fala em gratis dictum e judicial dictum. [...] Gratis dicta são meros desperdícios (afirmações que são jogadas fora, como se fossem de graça), e, assim, de pouquíssimo, se houver, valor ou força persuasiva. É provável, portanto, que as gratis dicta serão tidas, sobretudo, como mero produto do pensamento do juiz. As judicial dicta, por outro lado, terão sido precedidas não apenas por um longo e cuidadoso pensamento, mas também de uma extensiva argumentação sobre o ponto em questão. De fato, portanto, as judicial dicta podem ser tão fortemente persuasivas como também praticamente indistinguíveis da ratio. (SOUZA, 2013, p. 140)
Como se vê, a classificação constitui um crescendo, tendo sido estruturada a partir de um critério gradativo da força vinculante, que parte dos elementos de eficácia persuasiva mínima ou inexistente do precedente (obiter dictum ou gratis dicta), passa pelos de significativo ou elevado teor suasório (dictum ou judicial dicta), e, por fim, alcança a ratio decidendi, cuja eficácia é vinculante no sistema anglo-saxônico. Certo é, contudo, que, obiter dictum e dictum, diferentemente da ratio decidendi, jamais ostentam eficácia obrigatória (NOGUEIRA, 2013, p. 184).
Na common law, o precedente pode ostentar força obrigatória ou meramente persuasiva. Na primeira hipótese, a ratio decidendi do julgado é vinculante às instâncias hierarquicamente inferiores e à própria corte prolatora; na segunda, a decisão da corte de jurisdição mais elevada não vinculada os julgadores ordinários, mas a autoridade de quem emanou os argumentos produz um efeito convincente, suasivo, que resulta, por vezes, na replicação prática da tese jurídica adotada.
Ainda que presentes todos os requisitos da doutrina do stare decisis, que qualificam o precedente como vinculante, porém, é possível ao julgador do common law, em determinadas circunstâncias, afastar a aplicação de determinado precedente, utilizando-se de técnicas específicas e cuidadosamente elaboradas. É o que se examina a seguir.
O distinguishing é uma técnica de confronto, interpretação e aplicação do precedente, utilizada para os casos em que houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma (precedente invocável), seja por ausência de coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e os que serviram de base à ratio decidendi constante do precedente, seja porque, não obstante exista certa aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento permite o afastamento da aplicação do precedente (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 392). É um dos elementos característicos do common law, mas que tende a se expandir cada vez mais para outros domínios e tradições jurídicas, sendo certo que, quanto mais rígida for a aderência ao precedente judicial, mais frequente será o seu emprego (BUSTAMANTE, 2013, p. 470).
Para se aplicar a ratio decidendi a um caso, é necessário comparar o caso que a originou com o caso sob julgamento, analisando-se as circunstâncias de ambos. No âmbito do common law, tal diferenciação ou distinção de casos assume a forma de técnica jurídica voltada a permitir a aplicação de precedentes. O distinguishing, pois, expressa a distinção entre demandas judiciais para o efeito de se subordinar ou não o caso sob julgamento a determinado precedente (MARINONI, 2013, p. 326).
Nas hipóteses de distinguishing (ou distinguish), o caso a ser julgado apresenta particularidades que não permitem aplicar adequadamente a jurisprudência do tribunal. Embora possa permanecer inalterada a norma de interpretação, que é a norma jurídica em si mesma, a norma de decisão não reproduz a literalidade da primeira, o que ocorre em razão de determinadas circunstâncias fáticas que recomendam o afastamento da regra, situações essas, por vezes, nem mesmo previstas no espectro do precedente (LAGO, 2013, p. 1).
Thomas da Rosa de Bustamante (2013, p. 471) ensina que o distinguishing pode se manifestar de duas maneiras: a) pelo um reconhecimento de uma exceção direta (direct exception) à regra judicial invocada, justificada por circunstâncias especiais no caso em julgamento; b) pelo estabelecimento de uma exceção indireta (indirect exception, circumvention ou fact-adjusting), hipótese em que os fatos do caso presente são reclassificados como algo diferente, com o fito de evitar a aplicação do precedente judicial. Trata-se, em verdade, de um só ato de distinção baseado nos elementos fáticos do precedente, diferenciando-se as exceções entre direta e indireta, tão somente, no plano da estratégia argumentativa, tendo em vista a ênfase que é dada, no primeiro caso, à premissa maior (normativa) e, no segundo caso, à premissa menor (fática), do silogismo jurídico. Em palavras do autor:
a técnica do distinguishing deve ser definida como um tipo de afastamento do precedente judicial no qual a regra da qual o tribunal se afasta permanece válida, mas não é aplicada com fundamento em um discurso de aplicação em que, das duas, uma: (1) ou se estabelece uma exceção anteriormente não reconhecida – na hipótese de se concluir que o fato sub judice pode ser subsumido na moldura do precedente judicial citado; ou (2) se utiliza um argumento a contrario para fixar uma interpretação restritiva da ratio decidendi do precedente invocado na hipótese de se concluir que o fato sub judice não pode ser subsumido ao precedente. No primeiro caso (redução teleológica), opera-se a exclusão de determinado universo de casos antes compreendidos no âmbito de incidência da norma apontada como paradigma; no segundo caso (argumento a contrario), a norma jurisprudencial permanece intacta, mas se conclui que suas consequências não podem ser aplicadas aos fatos que não estejam compreendidos em sua hipótese de incidência. (BUSTAMANTE, 2013, p. 473)
Marcelo Alves Dias de Souza afirma que, das técnicas utilizadas para evitar a aplicação de um precedente, a da distinção entre os casos (distinguishing) é a principal, ou, pelo menos, a mais comum. Encontra-se relacionada à noção de fatos fundamentais (material facts), na medida em que, se os fatos fundamentais de um precedente, analisados no apropriado nível de generalidade, não coincidem com os fatos fundamentais do caso posterior (em julgamento), os casos devem ser considerados, pelo tribunal ou juiz do caso posterior, como distintos, com o consequente afastamento do precedente. O que é razoável distinguir em cada caso, contudo, depende da análise da demanda em particular (SOUZA, 2013, p. 142-143).
Gustavo Santana Nogueira esclarece os fundamentos da utilização do distinguishing nos seguintes termos:
A partir do momento em que os precedentes vinculam, a única chance que a parte tem de se sagrar vencedora quando um precedente está na “contramão” da sua pretensão é demonstrando que o seu caso difere substancialmente dos precedentes; daí resulta claro a importância do processo de distinção. (...) O fato é que nenhum caso é igual a outro, e, se forem iguais, existem mecanismos legais que impedem o rejulgamento do segundo, de modo que estamos tratando de casos que se assemelham, mas entre os quais existe uma diferença que torna o precedente inaplicável. (...) Todos os casos submetidos ao Judiciário contêm diferenças entre si, vez que, se forem idênticos, estaremos diante do fenômeno da duplicidade de ações (litispendência), porém os casos, quando postos em comparação, podem conter semelhanças que justifiquem a aplicação ao caso que está sendo julgado da ratio decidendi precedente. Não há uma fórmula que identifique com precisão que tipo de diferenças podem justificar a não aplicação do precedente, cabendo a cada juiz fazer a sua análise e ao Tribunal que elaborou o precedente verificar, quando cabível, se o distinguishing foi corretamente feito. (NOGUEIRA, 2013, p. 212)
Sob um primeiro olhar, a técnica das distinções pode parecer não acrescentar muito à teoria processual, porquanto a aplicação de qualquer texto jurídico, incluindo os formalmente legislativos, exige um contínuo trabalho de diferenciação ou distinção entre os fatos concretos e o suporte fático da norma que se pretende subsumir. No âmbito dos precedentes judiciais, contudo, a tarefa alcança uma dimensão mais elaborada, vez que os conceitos jurídicos abertos ou indeterminados e as eventuais lacunas da legislação terão sido superados pela atividade interpretativa dos tribunais, os quais fecham o espectro de atuação da norma e delimitam seu alcance, nos estritos termos do fato real trazido a julgamento.
Isto é, se determinada hipótese fática ou certo conflito principiológico não foi resolvido a priori pelo legislador, o tribunal, ante a vedação ao non liquet e o dever funcional de solucionar a tensão social encerrada no litígio, a partir de um esforço hermenêutico e democrático-dialético, pautado no contraditório, criará a norma jurídica aplicável, a qual forma a ratio decidendi do precedente, cuja eficácia é, no mínimo, persuasiva em relação ao próprio tribunal e à jurisdição inferior. Por conseguinte, no nível do precedente, a distinção dos fatos (ou distinguish) alcança muito maior relevância, vez que a norma jurídica de base jurisprudencial é bem mais específica e delimitada que a regra de direito de origem doutrinária ou legislativa.
Um exemplo pode vir a calhar: um demandante pleiteia dano moral, a par do dano material, sob o argumento de ter sofrido estresse por abalo psicológico resultante de um acidente de trânsito sem vítimas ocasionado por comprovada culpa exclusiva do demandado. Inexistindo precedente vinculante sobre a matéria, o juiz de primeiro grau pode livremente interpretar o direito do autor e julgar procedente a demanda sem se ater a maiores especificidades fáticas, por entender que o simples acidente, com efeito, gerou transtornos no cotidiano do demandante, indenizáveis sob a ótica do dano moral. Havendo precedente obrigatório, contudo, no sentido de que o alegado transtorno constitui “mera intempérie da via moderna”, sendo cabível tão somente a condenação pelo dano material, o julgamento de procedência da demanda exigiria a distinção (distinguish) entre o caso em apreço e o paradigma, o que somente ocorreria com o aprofundamento da instrução para a demonstração de circunstâncias aptas a comprovar que, na espécie, o fato superou os limites de uma simples “intempérie”, ocasionando um efetivo dano ao patrimônio moral do litigante. Assim, hipoteticamente, caso se comprovasse que o autor perdera seus familiares em acidente de trânsito e, traumatizado, havia passado por anos de tratamento psicológico para reabilitar-se a conduzir veículo automotor, encontrando-se, na data do fato, em seu primeiro percurso como motorista após custoso processo de recomposição, evidente estaria a especificidade do caso em julgamento em relação ao precedente, que previa a improcedência do pedido de dano moral para condutor experiente e livre de quaisquer traumas e temores relacionados à direção.
A hipótese ilustra como a aplicação do precedente exige o aprofundamento das questões de fato, tornando muito mais elaborada a instrução do feito e a fundamentação da decisão que se pretende diferenciar do paradigma. Revela, também, o quanto o distinguishing é relevante para a correta utilização do direito jurisprudencial, o qual, se adotado cegamente, tem o condão de ocasionar inequívoca injustiça no caso concreto. Resta claro, outrossim, o quão necessário é, em um sistema normativo que valorize a jurisprudência como fonte do direito, estarem as partes, por intermédio de seus advogados ou solicitadores, cientes do teor dos pré-julgados relacionados à lide, já que a não demonstração das circunstâncias distintivas na fase instrutória pode ensejar a aplicação equivocada de um precedente na posterior fase de julgamento, com prejuízos potencialmente irreparáveis.
Não se pode perder de vista, contudo, que o distinguishing pode ser desvirtuado por um mau uso, consistente no afastamento inadequado de precedentes que deveriam ser aplicados. Se é cogitável que um precedente tem cabimento no caso em julgamento, é bastante provável que os fatos da espécie e do paradigma não ostentem diferença gritante. A distinção, pois, quase sempre decorrerá de nuances ou especificidades fáticas presentes nas circunstâncias, e não nos fatos fundamentais, já que, se esse fosse o caso, muito provavelmente, o paradigma sequer seria invocado. Tal constatação demonstra o nível de cautela que precisa ser adotada na utilização do distinguishing, o qual, se olvidado quando necessário, nega à decisão conformidade com a justiça distributiva, ao passo que, se aplicado fora das hipóteses legais, viola frontalmente o princípio da igualdade.
Nesse sentido, Marcelo Alves Dias de Souza (2013, p. 145) refere a um “poder de distinguir” concedido aos magistrados, o qual é necessário para conferir flexibilidade ao sistema e permitir a realização da “justiça no caso concreto”; afirma, porém, que, se “levado ao extremo”, tem o condão de “ferir, com uma injustiça gritante, o princípio da isonomia”, além de conduzir a um estado de dúvida relativamente à real vinculação dos juízes e tribunais aos precedentes obrigatórios, o que, por sua vez, pode ocasionar a falência do sistema. É o que ensina, igualmente, Luiz Guilherme Marinoni:
A o realizar o distinguishing, o juiz deve atuar com prudência e a partir de critérios. Como é óbvio, poder para fazer o distinguishing está longe de significar sinal aberto para o juiz desobedecer precedentes que não lhe convêm. Ademais, reconhece-se, na cultura do common law, que o juiz é facilmente desmascarado quando tenta distinguir casos com base em fatos materialmente irrelevantes. Diferenças fáticas entre casos, portanto, nem sempre são suficientes para se concluir pela inaplicabilidade do precedente. Fatos não fundamentais ou irrelevantes não tornam casos desiguais. Para realizar o distinguishing, não basta o juiz apontar fatos diferentes, cabendo-lhe argumentar para demonstrar que a distinção é material, e que, portanto, há justificativa para não se aplicar o precedente. Ou seja, não é qualquer distinção que justifica o distinguishing. A distinção fática deve revelar uma justificativa convincente, capaz de permitir o isolamento do caso sob julgamento em face do precedente. (MARINONI, 2013, p. 325-326)
De fato, é preciso ter em conta que, cada vez que um precedente é afastado, há a edição tácita de um adendo ou emenda que restringe ainda mais o seu âmbito de aplicação. A esse respeito, Tiago Asfor Rocha Lima (2013, p. 209-210) afirma que, embora não altere o precedente tal como o overruling, que efetivamente revoga ou reforma o entendimento jurisprudencial consolidado, o distinguishing é uma técnica de “quase superação” da ratio decidendi, na medida em que “a não incidência do precedente a um determinado caso retira-lhe uma margem de aplicação que pode enfraquecê-lo”, sobretudo quando há distinção reiterada entre o paradigma e os casos confrontados. Por conseguinte, leciona o autor que a distinção entre os casos deve ostentar relevo suficiente para autorizar a Corte a não seguir o precedente, “sob pena de a irregular operação de confronto entre os casos ser facilmente apontada pelos advogados e por outros julgadores, prejudicando consideravelmente a reputação do julgador.” (LIMA, 2013, p. 210)
Overruling (ou overriding) [10] é o procedimento através do qual um precedente perde sua força vinculante e é substituído por outra ratio decidendi. É técnica de superação do precedente, e não apenas de aplicação, interpretação ou confronto de decisões judiciais. À semelhança da revogação de uma lei por outra, pode ocorrer de forma expressa (express overruling) ou tácita (implied overruling), conforme o tribunal manifeste expressamente seu interesse em adotar uma nova orientação, abandonando a anterior, ou adote posição contrária à previamente esposada sem, contudo, dispor diretamente a respeito (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 395).
Na Inglaterra, o Practice Statement 1966 autorizou a House of Lords a fazer uso da superação de seus próprios precedentes (NOGUEIRA, 2013, p. 193). Apesar disso, a prerrogativa tem sido utilizada com pouca frequência, haja vista o desgaste que importaria à imagem da suprema corte a alteração permanente de orientações jurisprudenciais em um sistema de precedentes vinculantes. Nos Estados Unidos, a técnica do overruling pela Supreme Court é considerada a medida de interpretação mais extrema à disposição dos magistrados, representando uma “dramática forma de mudança normativa” (LIMA, 2013, p. 207).
Não obstante, na prática judiciária, a superação do precedente pelo overruling se justifica por uma série de razões que importam em inequívoca injustiça da ratio decidendi vigente, forçando o Tribunal a uma revisão no entendimento, tais como a modificação das condições econômicas, políticas, culturais e sociais de determinado povo (LIMA, 2013, p. 206). A mudança de composição do Tribunal que elaborou o precedente e a alteração dos valores sociais também são elementos que ocasionam a substituição do julgado paradigma (NOGUEIRA, 2013, p. 199-200). Pode ocorrer, ainda, de um provimento posterior do Poder Legislativo (lei em sentido estrito) revogar dispositivo normativo que servia de base à interpretação jurisprudencial, ou, até mesmo, contrariar frontalmente o conteúdo de determinado precedente, já que, inclusive na Inglaterra, “o precedente está subordinado à legislação como fonte do direito”, de sorte que “um statute [11] pode sempre ab-rogar os efeitos de uma decisão judicial, e os tribunais se consideram obrigados a cumprir a legislação” (NOGUEIRA, 2013, p. 193-194). Certo é que, na sistemática do stare decisis, a mudança de orientação jurisprudencial exige sempre motivação pela corte, a qual, quando se furta a esse dever, é usualmente tachada de autoritária pelas instâncias sociais.
Para Tiago Asfor Rocha Lima (2013, p. 209), overruling e overriding não são sinônimos. Defende o autor que “o overriding refere-se à prática de restringir o âmbito de aplicação de um precedente judicial em julgamento posterior”, pelo que se assemelha a uma revogação parcial da orientação jurisprudencial pretérita, limitando-se o alcance da holding extraída no primeiro julgamento. Distingue o autor, ainda, o overruling do reversal. Neste caso, não há propriamente revogação do precedente, mas reforma pelo órgão ad quem da decisão prolatada pela instância inferior, a qual aplicou equivocadamente a ordem jurídica ao caso – hipótese que ocorre, no mais das vezes, para adequar o julgamento proferido pelo juízo de primeiro grau aos precedentes emanados pela corte revisora (LIMA, 2013, p. 209).
Incumbe, ainda, registrar a distinção entre overruling e conflito de precedentes (conflict over time), proposta por Michele Tarufo, citada por Gustavo Santana Nogueira. Segundo a autora, o overruling é uma mudança de opinião consciente feita pelo Tribunal que leva a sério a função dos precedentes, enquanto o conflict over time decorre normalmente da “falta de conhecimento acerca da existência de um precedente em sentido contrário ou da falta de consideração acerca do papel que precedentes consistentes têm em um sistema legal” (NOGUEIRA, 2013, p. 198).
O conflict over time, pois, encontra-se relacionado à doutrina das decisões per incuriam, assim consideradas “as que são dadas na ignorância de um precedente obrigatório ou de uma lei relativos ao caso” (SOUZA, 2013, p. 146). Nessa hipótese, para que o julgado não seja reputado como overruling, não basta que o precedente ou lei tenham deixado de ser referidos no julgamento ou não tenham sido discutidos completamente pelos integrantes da corte; é necessário ficar caracterizado que, se o tribunal tivesse tido ciência do precedente ou da lei, teria, inequivocamente, chegado a uma conclusão diversa para o caso (SOUZA, 2013, p. 146).
Desta feita, relevante a fixação de critérios objetivos para a identificação dos precedentes efetivamente superados pela jurisdição superior. No processo judiciário dos Estados Unidos, Saul Brenner e Harold Spaeth, citados por Gustavo Santana Nogueira, defendem o ensino de Sidney Ulmer, para quem um precedente terá sido superado ou overruled sempre que: a) a maioria do colegiado julgador expressamente assim o declarar; b) o juiz reconhecer a superação do precedente em outra decisão ou em estudos jurídicos distintos de sua função judicante; c) o report da corte citar o precedente como revogado no sumário de casos; d) o Shpard’s Citations [12] listar o case como superado (NOGUEIRA, 2013, p. 198).
Segundo Marinoni (2013, p. 334), em determinados sistemas jurídicos de precedente vinculativo, notadamente nos Estados Unidos da América, verifica-se a utilização de técnicas de aplicação e superação do precedente situadas entre o distinguishing e o overruling. Nessas circunstâncias, o tribunal não revoga o precedente, mas também não realiza uma adequado distinguishing, deixando aparente que o caso em julgamento não se diferencia, em essência, dos que já haviam sido apreciados para a formação da jurisprudência vigente.
É o caso da denominada “técnica da sinalização” (sinaling). Por meio desta, o tribunal reconhece que o conteúdo do precedente está equivocado ou, pelas mais diversas razões, não mais deve subsistir. Apesar disso, em respeito à segurança jurídica, a corte aplica a interpretação do julgado anterior e deixa de revogá-la, preferindo apontar para a sua perda de consistência e sinalizar para sua futura revogação (MARINONI, 2013, p. 334). Em palavras do processualista paranaense:
Nesta situação, o tribunal tem consciência de que o distinguishing não é possível, pois a solução que se pretende dar à questão é logicamente incompatível com a ratio decidendi do precedente. A exceção que derivaria do distinguishing não guardaria lógica com a manutenção do precedente. Não obstante, também sabe a corte que a revogação do precedente, diante das particularidades da situação, estará colocando em risco a segurança jurídica, mediante a negação da previsibilidade então outorgada à comunidade. Mantém-se o precedente unicamente em virtude da segurança jurídica, da previsibilidade dada aos jurisdicionados e da confiança que o Estado deve tutelar, ainda que não se duvide de que a sua manutenção está em desacordo com o ideal de direito prevalente à época. (MARINONI, 2013, p. 334)
Logo, pela técnica da sinalização, o tribunal comunica à sociedade e, sobretudo, aos advogados, que o precedente que até então orientava a atividade dos jurisdicionados e a estratégia dos agentes do Direito será revogado. Evita-se, com isso, que alguém atue em conformidade com o direito jurisprudencial e, ainda assim, seja prejudicado em sua esfera patrimonial. A sistemática permite que os litigantes não sejam surpreendidos pela mudança de orientação da corte, já que a decisão do caso em apreço será balizada pela ratio decidendi em vias de revogação, ficando as partes e a comunidade jurídica cientes de que, para os casos futuros, deve-se levar em consideração a superação do precedente sinalizado.
Parcela da doutrina sustenta que o objetivo maior da technique of sinaling, qual seja, tutelar a justificada confiança da população na previsibilidade das decisões judiciais, ante a sistemática do stare decisis, poderia ser alcançado com a mera atribuição de efeitos puramente prospectivos ao overruling (MARINONI, 2013, p. 340). Com efeito, os tribunais norte-americanos, de fato, já se utilizaram da faculdade de conferir à superação dos precedentes efeitos exclusivamente futuros: mantém-se, no julgamento em apreço, a ratio decidendi vigente, ao passo que se declara, desde já, a revogação do acórdão enquanto paradigma. Defensores da técnica da sinalização, contudo, afirmam que esta permite uma melhor modulação futura dos efeitos do overruling, na medida em que se torna possível observar o impacto da sinalização no plano social (MARINONI, 2013, p. 341).
Outra estratégia situada no plano intermediário, que não se qualifica como distinguishing ou overruling, é a denominada de transformation. Trata-se de uma modificação substancial no conteúdo do precedente desprovida de manifestação expressa do tribunal no sentido da revogação. Consiste na imputação de relevância aos fatos que, no precedente, foram considerados apenas de passagem, atribuindo-se-lhes nova configuração (MARINONI, 2013, p. 346). Melvin Eisenberg, citado por Marinoni (2013, p. 342), chega a afirmar que “tanto a transformation quanto o overruling envolvem a completa revogação de um precedente”, sendo que “a distinção entre os dois modelos é frequentemente mais formal do que substantiva”.
Em verdade, porém, o overruling se apresenta como uma mudança de posicionamento mais drástica que a qualificada como transformation. No overruling, há uma incontestável revogação do precedente, fundada na absoluta incompatibilidade da decisão que está sendo prolatada com a decisão-paradigma; na transformation, por sua vez, tenta-se, no mais das vezes, compatibilizar o precedente com o resultado alcançado no caso sob julgamento (MARINONI, 2013, p. 343). Fala-se, assim, não em revogação do precedente, mas em atualização, conformação, releitura ou “transformação” do julgado, pelo que o instituto se revela menos gravoso que revogação abrupta que caracteriza o overruling.
Comparada à revogação do paradigma, a transformation tem a vantagem de conferir uma maior estabilidade ao sistema de precedentes, na medida em que não implica o reconhecimento necessário da ocorrência de erro no julgamento anterior. De fato, no overruling, a corte admite não apenas um equívoco na tese jurídica que embasou as decisões pretéritas, mas, também, uma verdadeira falha no julgamentos efetuados, cujo resultado poderia ter sido inverso se inexistente a ratio decidendi superada (MARINONI, 2013, p. 344). Na transformation, diversamente, limita-se o tribunal a adequar a tese constante do precedente ao resultado do julgamento que pretende prolatar, deixando de negá-la por completo (caso do overruling) e tampouco abrindo uma exceção pautada em critérios estritamente fáticos (hipótese do distinguishing).
Não obstante, carrega o instituto o grave inconveniente de tornar dificultosa a compreensão, pelas cortes inferiores, do novo significado outorgado ao precedente. Na medida em que se modifica o resultado do julgamento sem negar vigência ao antecedente, cria-se um estado de indefinição que faz tormentosa a tarefa de interpretar o paradigma. Segundo Marinoni (2013, p. 344), tal problemática resulta precisamente da “artificialidade” da transformation, consistente na falsa ideia de que o respeito ao precedente ainda estaria sendo preservado.
Nos Estados Unidos da América, fala-se, ainda, em overriding – que, nesse contexto, não se confunde com o overruling – para referir à técnica mediante a qual o Tribunal, sem adotar uma revogação expressa, limita ou restringe o âmbito de incidência de determinado precedente (MARINONI, 2013, p. 346). Assemelha-se a medida a uma revogação parcial, mas não se constitui efetivamente em uma porquanto não se cogita da invalidação do precedente, mas, tão somente, da inaplicabilidade da integralidade do paradigma a determinado caso concreto, tendo em vista a existência de novas condicionantes sociais (LOURENÇO, 2013, p. 1).
Por meio do overriding, afasta-se a aplicação de um precedente sem revogá-lo, pelo que a estratégia mais se aproxima da técnica do distinguishing. Difere desta, contudo, na medida em que não se pauta o julgador por distinções factuais, mas baliza sua decisão em lei ou entendimento superveniente fundado em proposições sociais incompatíveis com as que, outrora, justificaram a formação do precedente.
Significa dizer, pois, que não se nega a validade do precedente à luz do estado de coisas vigente ao momento de sua edição; tampouco se declara a impropriedade da ratio decidendi e muito menos a incorreção dos julgados pretéritos que nela se baseiam. Afirma-se, tão somente, que, no estágio de desenvolvimento social ao tempo do segundo julgamento, e tendo em vista o novo sistema de valores que comporta a sociedade, é de se superar parte do entendimento constante do paradigma para um julgamento eficaz do conflito sub examine. Marinoni esclarece o ponto nos seguintes termos:
O overriding se baseia na necessidade de compatibilização do precedente com um entendimento posteriormente formado. A distinção que se faz, para se deixar de aplicar o precedente em virtude do novo entendimento, é consistente com as razões que estiveram à base da decisão que deu origem ao precedente. Como explica Eisenberg, em teoria, o overriding poderia ser visto apenas como um caso especial de desvinculação (hiving off) mediante distinções consistentes, quando a Corte lida com um tipo de situação que não estava envolvida nos precedentes que deram origem ao entendimento anterior e conclui que, dadas as proposições sociais que fundamentam aquele entendimento anterior, a situação em questão deveria ser desvinculada para ser tratada de acordo com o entendimento mais recente. Portanto, há nova situação e novo entendimento no plano dos tribunais ou da academia, capaz de não permitir que caso substancialmente idêntico seja tratado da mesma forma. A distinção feita no overriding supõe que o litígio anterior, caso fosse visto na perspectiva da nova situação e do novo entendimento, teria tido outra solução. É por isso que, embora o overriding não signifique revogação, o seu resultado, do mesmo modo que aquele a que se chegou com o overruling, é incompatível com o precedente. (MARINONI, 2013, p. 346)
Eisenberg, citado por Maira Portes (2013, p. 1), aponta para o fato de que o overriding é uma forma de analisar uma questão não abordada no precedente, de maneira independente, e considerando-se as condições sociais que inspiraram a adoção da ratio decidendi. Ainda segundo o autor, na prática, porém, verifica-se que as cortes, muitas vezes, revogam parcialmente uma doutrina sob as mesmas condições sociais vigentes quando da edição originária do precedente. Nessas circunstâncias, o overriding nada mais se revela do que uma revogação parcial e implícita do precedente (PORTES, 2013, p. 1).
Por último, registra-se a técnica estadunidense da elaboração de distinções inconsistentes (drawing of inconsistent distinctions), no âmbito dos procedimentos de interpretação, aplicação e superação de precedentes. Trata-se de artifício pelo qual o tribunal, sem revogar o precedente que o abriga, deixa de aplicar parte de determinado entendimento, à semelhança do que ocorre com o overriding. Diferentemente deste, contudo, a tese que se adota no julgamento corrente não é compatível com a ratio decidendi do paradigma, precisamente porque inexistem novas condicionantes sociais ou legais (MARINONI, 2013, p. 349). Por essa razão, fala-se que a distinção suscitada pela corte é “inconsistente”, vez que não resiste a uma análise de compatibilidade entre os valores fundantes da distinção e aqueles que inspiraram o precedente.
Uma vez que a consistência é um atributo desejável para os precedentes, a utilização de distinções inconsistentes pode parecer imprópria, devendo as cortes limitarem-se a aplicar os precedentes de forma coerente, ampliando seu alcance pelo uso de uma interpretação extensiva ou afastando sua aplicação mediante técnicas de diferenciação (distinguishing) ou de superação (overruling). Entretanto, sendo a elaboração de distinções inconsistentes uma prática consolidada nos tribunais norte-americanos, autores se dedicaram à tarefa de explicar teoricamente o instituto, sustentando a possibilidade de as cortes se valerem do expediente.
Nesse sentido, Ronald Dworkin, ao elaborar a teoria do direito como integridade, sustenta que as proposições jurídicas são verdadeiras quando comportam ou derivam de princípios de justiça, isonomia e constituem o devido processo pelo qual proveem a melhor construção interpretativa da prática jurídica da comunidade (MARINONI, 2013, p. 350). A integridade, para Dworkin, pressupõe dois aspectos distintos, sendo um legislativo e outro jurisdicional. Reside o primeiro na tarefa imposta ao parlamento de tornar o conjunto de leis do Estado moralmente coerentes, ao passo que a segunda perspectiva impõe aos magistrados que, por ocasião da atividade judicante, considerem como pilar hermenêutico a coerência moral que deve envolver o ordenamento jurídico (FERRI, 2013, p. 1). Trata-se, assim, de uma noção de integridade ou consistência sistêmica, e não meramente pontual, pelo que uma técnica essencialmente inconsistente, se utilizada de forma coerente como elemento da ordem normativa, não retira a integridade do sistema.
A partir dessa premissa, Melvin Eisenberg, citado por Marinoni, defende que argumentar o equívoco da utilização, pelas cortes judiciárias, da técnica das distinções inconsistentes
derivaria de uma concepção de integridade restrita a resultados, passo que o significado comum do termo “integridade” – assim como “isonomia” (evenhandedness) – pode se satisfazer não somente pela consistência dos resultados, mas também pelo emprego consistente dos princípios institucionais que geram estes resultados. Assim, os princípios institucionais do overruling, por exemplo, podem gerar resultados atuais incoerentes com os passados, de modo que o emprego consistente de princípios institucionais não afasta a integridade e a isonomia simplesmente porque gerou resultados inconsistentes. (MARINONI, 2013, p. 350)
Uma razão que justificaria a adoção de distinções inconsistentes seria a hipótese de o tribunal não estar completamente convencido de que o entendimento anterior deve ser revogado. Utilizar-se-ia a corte, nessas circunstâncias, de uma distinção inconsistente como passo provisório para uma revogação total, sendo o princípio institucional da provisoriedade responsável pela manutenção da integridade do sistema normativo, o qual manteria a isonomia, apesar de elaborar regra inconsistente com a ordem jurídica vigente (MARINONI, 2013, p. 351).
Outro argumento em prol do instituto é a tutela da confiança justificada. A distinção inconsistente permitiria a proteção daqueles que confiaram no núcleo de determinado entendimento, isto é, na parte essencial de determinado precedente, a qual, plausivelmente, não pode ser sequer diferenciada, sendo, portanto, mantida pelo tribunal, por ficar de fora da distinção suscitada. Com efeito, há casos em que é impossível efetuar-se uma revogação parcial (overruling), vez que o resultado que se pretende proferir seria incompatível com a manutenção de parte da regra, exigindo o caso uma revogação total do precedente. Igualmente, há hipóteses em que não cabe promover nova configuração a fatos não essenciais (transformation) ou justificar a alteração do precedente em um novo quadro de valores sociais (overriding), mas, simplesmente, de excluir-se determinada situação do campo de incidência de um julgado por mera conveniência do julgamento (critério da “justiça” da decisão). A utilização de distinções inconsistentes permite produzir o resultado pretendido sem revogar o núcleo essencial do precedente, prestigiando, assim, o particular que confiou na estabilidade regra de direito jurisprudencial.
Stare decisis é uma fórmula reduzida do adágio latino stare decisis et non quieta movere, que, literalmente, significa “mantenha-se a decisão e não se moleste o que foi decidido”. Na Inglaterra, é utilizada como sinônimo da doctrine of precedent (ou rule of precedent), definitivamente reconhecida em 1898, no caso London Trainways Company v. London County Council, em que a House of Lords reiterou a obrigatoriedade de nortear-se por suas próprias decisões, em efeito autovinculante (vinculação horizontal), além de declarar a eficácia externa de seus julgados a todas as cortes de grau inferior (vinculação vertical).
Na teoria do common law, nem todo provimento judicial é reputado como precedente, entendendo-se como tal apenas a decisão sobre matéria de direito, indispensável à resolução de um caso concreto, que, por enfrentar todos os principais argumentos relativos a determinada questão, torna-se apta a servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos. Como elementos fundamentais do precedente, a par da descrição precisa dos fatos que ensejaram a demanda, costuma a doutrina reconhecer a ratio decidendi (essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto) e o obiter dictum (argumentos expostos apenas de passagem na motivação do julgado, que consubstanciam juízos acessórios e secundários, sem influência relevante e substancial para a decisão). Na sistemática do stare decisis, o que vincula o tribunal e as instâncias inferiores nos julgamentos futuros é, tão somente, a proposição jurídica reputada essencial à solução da demanda-paradigma, a saber, a ratio decidendi do julgado, pelo que sua identificação e diferenciação dos argumentos considerados como mero obiter dicta constitui tarefa das mais relevantes na técnica jurídica dos países de common law.
O exame das técnicas de interpretação, aplicação e superação de precedentes nos países de common law revela o quanto a teoria se empenhou para formular um sistema que conferisse às cortes judiciárias maleabilidade no trato das demandas particulares sem que fosse negada a regra do precedente vinculativo. Há um nítido esforço em justificar teoricamente qualquer mudança de entendimento adotada pelos tribunais, os quais, com o fito de satisfazerem a justiça no caso concreto, necessitam, por vezes, de afastar a aplicação do precedente, sem, contudo, negar-lhe vigência – havendo, até mesmo, hipóteses em que a solução mais razoável para o caso parece ser a arguição de uma distinção nitidamente inconsistente com os valores que se encontram na base do paradigma.
A formação histórica do sistema da common law, que foi construído a partir de provimentos majoritariamente jurisprudenciais, explica o evidente receio da sociedade e da comunidade jurídica em outorgar ampla liberdade de atuação aos tribunais, os quais, a bem da previsibilidade e da igualdade jurídicas, devem se pautar pelas normas editadas por seus precursores. Grande parte dos mais importantes temas dos direitos norte-americano e inglês encontra-se disciplinada por acórdãos dos tribunais superiores, consolidados em obras de doutrina que compilam e interpretam os precedentes. Em um sistema de tal sorte, deixar de aplicar um pré-julgado, além de afastar a segurança jurídica, importa em inequívoca assunção de poder político por parte dos tribunais, o que não é desejado pela sociedade e tampouco pelos próprios magistrados, cientes dos limites de sua atividade jurisdicional. Como resultado, elaboram-se alternativas que buscam viabilizar o afastamento do precedente – com fundamento, por vezes, em distinção factual ou axiológica meramente artificial – sem, contudo, assumir formalmente a revogação do paradigma – estratégia que enfraquece o poder normativo do julgado e prepara a sociedade para a futura exclusão formal do precedente do sistema de direito, amenizando o impacto político da decisão revocatória da corte.
Não obstante a artificialidade no uso de determinadas técnicas, verifica-se, nos sistemas de precedentes vinculantes, a preocupação legítima com a tutela do princípio da isonomia, a coerência da ordem jurídica e a manutenção da confiança da sociedade no Poder Judiciário, na forma da previsibilidade dos julgamentos e da estabilidade das regras de direito. A utilização dos instrumentos centrais do distinguishing e do overruling, e, por questões de conveniência política, de suas variantes não derrogatórias do paradigma, revelam a viabilidade da sistemática do precedente vinculativo, a qual, longe de prejudicar o corpo social por um eventual engessamento um Direito, outorga à comunidade uma jurisdição eficiente, corente e potencialmente justa, porquanto isonômica, íntegra na perspectiva sistêmica, e aberta à superação dos valores sociais.
A tabela seguinte resume as principais técnicas de aplicação do precedente nos países de common law, conceituando em linhas gerais os institutos e descrevendo os efeitos de cada um deles quanto à manutenção ou exclusão formal da ratio decidendi na ordem jurídica.
Tabela 1 – Técnicas de aplicação e superação do
precedente no common Law
Distinguishing: Não revoga formalmente o precedente. Afasta a aplicação do precedente com base em distinções factuais entre o paradigma e o caso sob julgamento.
Overruling: Revoga o precedente, no todo ou em parte.Admite o equívoco das decisões anteriores fundadas no precedente revogado. Exclui o precedente do sistema.
Sinaling: Não revoga formal ou materialmente o precedente.Sinaliza para uma futura revogação do paradigma.
Transformation: Não revoga formalmente o precedente.Atribui nova configuração a fatos considerados apenas de passagem no julgado anterior. Não admite o equívoco das decisões anteriores.
Overriding: Não revoga formalmente o precedente. Afasta a aplicação de parte do precedente com base em novas condicionantes sociais. Não admite o equívoco das decisões anteriores.
Inconsistent distinctions: Não revoga formalmente o precedente. Afasta a aplicação de parte do precedente independentemente de novas condicionantes sociais (elabora distinção inconsistente).
Fonte: Elaborada pelo autor
NOTAS
[1] A eficácia “vertical” do efeito vinculante diz respeito à obrigatoriedade de cumprimento do precedente somente pelas instâncias inferiores, sem vinculação da corte que emanou o julgado.
[2] Considera-se “horizontal” a eficácia atribuída ao precedente que vincula tanto a jurisdição de grau inferior quanto o tribunal de origem da decisão obrigatória. Cf. BUSTAMANTE, 2012, p. 75-84.
[3] Jus commune ou é a expressão utilizada para designar o “direito comum” do continente europeu a partir do ano 1100, quando, com a redescoberta do Corpus Iuris Civilis pelo Ocidente, o direito romano, associado a elementos do direito canônico, passou a ser a base da ciência jurídica em toda a Europa. A Inglaterra, por uma opção histórica, manteve-se formalmente à parte desse processo, sendo regulada pelo seu próprio “common law” de base jurisprudencial, o qual, como já visto, sofreu, contudo, pela via da equity, grande influência dos princípios do jus commune, sem contudo transmudar-se em um sistema de direito de origem doutrinal e legislativa. Cf. DAVID, 1972, p. 65.
[4] Em palavras do autor: “O que esse excurso histórico sobre os séculos XVI a XVIII até agora revela é que não apenas na Inglaterra, mas em toda a Europa, os tribunais desempenharam um papel importante na unificação do Direito, o que era um requisito imprescindível para o fortalecimento do Estado Moderno. A fidelidade ao precedente, enquanto exigência natural dos princípios da igualdade (entendida como justiça formal) e da segurança jurídica, não era, mesmo, de causar surpresa. Não há sistema jurídico que possa desconsiderar por completo os precedentes judiciais na aplicação do Direito, qualquer que seja o momento histórico, sob pena de o direito positivo entrar em contradição com a própria ideia de sistema, a qual pressupõe a aplicação do Direito como algo racional e coerente. Qualquer sistema jurídico que se desenvolva até um patamar mínimo de racionalidade necessita de certo grau de aderência ao precedente judicial, sob pena de se frustrarem as próprias pressuposições formais implícitas na ideia de Estado de Direito.” (BUSTAMANTE, 2012, p. 82)
[5] Em uma tradução livre: “um caso sentenciado ou decisão da corte considerada como fornecedora de um exemplo ou de autoridade para um caso similar ou idêntico posteriormente surgido, ou para uma questão similar de direito.” Cf. SOUZA, 2013, p. 41.
[6] A distinção entre ratio decidendi e obiter dictum será detalhada adiante.
[7] O constitucionalismo moderno, identificado como o movimento do início da Idade Contemporânea caracterizado pela imposição de constituições escritas como instrumento de limitação do poder político, elaboradas por um modo de produção mais dificultoso que o da legislação infraconstitucional, que situa a Constituição no ápice do sistema normativo (rigidez constitucional), tem como marcos formais a promulgação da Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787, e a Constituição francesa, de 1791, cujo preâmbulo foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ano da Revolução. Desenvolveu-se durante o Iluminismo, em contraposição ao absolutismo reinante, e manifestou-se, inicialmente, pelo acentuado liberalismo (direitos de primeira geração, marcados pela valorização do indivíduo e pelo absenteísmo estatal). A insuficiência do Estado liberal para a pacificação das sociedades pós-Revolução Industrial resultou no predomínio da doutrina do Welfare State, (Estado-providência ou “Estado do bem-estar social”), caracterizado por direitos ditos de segunda geração, que implicam maior participação estatal na economia e no trato dos problemas sociais, de que são exemplos a Constituição do México, de 1917, e a de Weimar, de 1919, que influenciaram a brasileira de 1934 (LENZA, 2008, p. 6). A partir do constitucionalismo moderno, surgiu a noção hodierna de controle de constitucionalidade de lei ou ato normativo estatal.
[8] Registre-se que a aceitação da teoria declaratória da decisão judicial não é incompatível com a adoção da regra do precedente vinculante. De fato, por muitos anos, os juízes do common law entenderam que romper com os precedentes significaria legislar e, por isso, permaneceram adstritos aos julgados anteriores, demonstrando historicamente que a concepção ortodoxa do precedente não é inconciliável à ideia do stare decisis (MARINONI, 2013, p. 29).
[9] Sobre os conceitos de jurisdicização, teoria do ciclo vital do Direito e processualística sistêmica, vide ROCHA, 2008, p. 31-32.
[10] Nos Estados Unidos da América, overruling e overriding são institutos distintos. O overriding estadunidense será examinado adiante.
[11] Na Inglaterra, statute é um dos nomes conferidos ao ato normativo emanado do Poder Legislativo.
[12] Shpard’s Citations é um serviço de armazenamento de decisões, leis ou quaisquer outros atos com autoridade normativa de elevada reputação nos Estados Unidos, “a ponto de ser considerada uma fonte segura de informação acerca dos precedentes que foram superados ou reafirmados.” Cf. NOGUEIRA, 2013, p. 198.
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Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Ex-Assessor judicial da Justiça Federal da 5ª Região (TRF-5). Ex-Assessor jurídico do Ministério Público Federal (MPF) na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CLáUDIO RICARDO SILVA LIMA JúNIOR, . Stare decisis e teoria do precedente judicial no sistema anglo-saxônico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jul 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40296/stare-decisis-e-teoria-do-precedente-judicial-no-sistema-anglo-saxonico. Acesso em: 24 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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