RESUMO: A teoria funcionalista do delito visa identificar a missão do direito antes de fornecer um conceito de crime, consolidando, para tanto, um sistema penal aberto no qual vigora uma permeabilidade entre a política criminal e a dogmática jurídica, destacando que é preciso adotar-se os critérios de imputação objetiva que possibilitam a correta observância do princípio da ofensividade ou lesividade, necessário para a consecução dos legítimos fins inerente ao Direito Penal, o que fundamenta a incoerência de se punir crimes de perigo abstrato, crimes nos quais inexiste desvalor do resultado por não haver lesão efetiva ou colocação em perigo concreto de bens jurídicos.
PALAVRAS-CHAVE: Funcionalismo, Direito Penal Simbólico, Crimes de Perigo Abstrato.
1. INTRODUÇÃO
É cediço que nem todas as atividades perigosas praticadas no meio social devem ser proibidas. Isso é admitido desde que tais atividades se mantenham dentro do chamado “risco permitido” que é aferido através dos critérios propostos pela teoria da imputação objetiva, a qual visa agregar uma dimensão axiológica ao tipo objetivo tradicionalmente conhecido, tornando-o mais justo e condizente com o Estado Democrático de Direito.
Toma-se aqui, como ponto de partida, as ideias propostas pela corrente funcionalista da teoria geral do delito que, através de expoentes como Claus Roxin e Günther Jakobs, busca analisar o direito penal partindo da concepção do seu legítimo fim no seio da sociedade, o que em um Estado Constitucional Democrático de Direito se entende como sendo a exclusiva proteção de bens jurídicos.
Pela concepção aqui adotada, entende-se que a teoria finalista do delito, adotada pelo nosso código penal desde a reforma ocorrida na década de oitenta (80) do século XX, por vezes, chega a resultados errôneos, atribuindo responsabilidade penal em determinadas ocasiões nas quais não há piora da situação de quaisquer bens jurídicos.
O finalismo, por vezes, ignora o princípio da ofensividade que exige o desvalor do resultado como dado necessário para essa responsabilização, e, no tocante ao desvalor da ação se mostra insuficiente por não considerar a dimensão valorativa levada a efeito pela teoria da imputação objetiva, tornando possível a criminalização de condutas que não oferecem qualquer risco a bens jurídicos e que em nada contribuem para a segurança destes. Fala-se, então, nos chamados crimes de perigo abstratos.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 A admissibilidade do Direito Penal Simbólico
É cediço que, para efetivar a proteção de bens jurídicos, as normas penais desempenham uma função instrumental que, de acordo com Sánchez (2011, p. 458), consiste em: “[...] influir mediante mandatos e proibições eficazes e mediante a aplicação real de suas consequências jurídicas no caso de infração sobre o comportamento de seus destinatários [...]”, respeitando, para tanto, os princípios de política criminal como os de intervenção mínima, ofensividade, proporcionalidade, entre outros.
Todavia, as normas penais também desempenham uma função simbólica, pois buscam causar um impacto tranquilizador sobre a opinião social, reduzindo a sensação de insegurança e aumentando a confiança no sistema penal.
Não há problema no fato de que as normas também exerçam esta função, salvo se passarem a exercê-la de forma exclusiva, impedindo o desempenho da função instrumental que, na verdade, é a responsável pela concreta proteção dos bens jurídicos, conforme aduz Sánchez (2011, p. 460):
O problemático não é, portanto, o elemento simbólico, mas sua absolutização em disposições que, incapazes de cumprir diretamente a declarada finalidade de proteção de bens jurídicos (função instrumental), se limitam a produzir tal efeito, que, por isso, acaba sendo elevado à categoria de “função exclusiva” [...] por isso – e apesar de ser evidente que a legislação puramente simbólica constitui uma característica do Direito Penal de nosso tempo -, pode-se considerar já que as disposições com uma exclusiva função simbólica são ilegítimas e devem ser banidas do ordenamento jurídico.
Conforme observa o autor, hodiernamente é comum a tipificação de condutas com intuito meramente simbólico nos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo.
O legislador, percebendo que o Estado não consegue proteger os bens jurídicos eleitos como fundamentais através do Direito Penal ora posto, passa a criar tipos legais de perigo abstrato que possuem caráter meramente simbólico, visando construir a imagem de que o Poder Público está atento aos problemas da criminalidade existentes e está agindo para prevenir com maior efetividade as lesões a bens jurídicos que vêm sendo praticadas.
Contudo, essa atividade legiferante em descompasso com os critérios criminológicos e de política criminal em nada contribuem, concretamente, para a prevenção de lesão a tais bens, pois despreza o requisito da ofensividade ou lesividade de bens jurídicos para a responsabilização penal. Neste sentido, leciona Hassemer[1] (1995, p. 12, nossa tradução) que as leis simbólicas que instituem os crimes de perigo abstrato: “Encobrem a ausência de força fática do Direito Penal para proteger bem jurídicos, ao suprimir o vínculo entre comportamento criminalizado e lesão de bem jurídico.”.
2.2 A incompatibilidade dos crimes de perigo abstrato com os fins do Direito Penal
Conforme já ressaltado, a substancialidade ofensiva da conduta é um dado imprescindível para o sistema penal proposto pela teoria da imputação objetiva, estando a ela vinculados o legislador, o intérprete e o aplicador do direito.
Destarte, em tal sistema penal não é mais possível a criação de tipos penais que criminalizam a mera desobediência de um dever sem qualquer relação com a ofensividade concreta da conduta infratora, assim como não é mais suficiente o mero ajuste formal da conduta ao tipo penal se daquela não resulta qualquer lesão ou colocação em perigo concreto de bens jurídicos.
Nesta esteira, afirma Ferrajoli[2] (1992, p. 11, nossa tradução) que os delitos de perigo abstrato ou presumido são:
[...] aqueles nos quais o perigo não é entendido como algo concreto, como perigo corrido por um bem jurídico, mas de forma abstrata pela lei, de maneira que, em casos em que o perigo não exista de fato, se castiga a mera violação formal da lei por parte de uma ação inofensiva por si só. Se se quer aplicar o princípio da ofensividade, também estes delitos teriam que ser reestruturados como delitos de dano, ou ao menos, de perigo concreto, conforme o bem jurídico mereça uma tutela limitada ao dano ou antecipada à sua mera colocação em perigo [...].
A consciência de que o ser humano vive em uma sociedade de risco, ou seja, em uma organização social na qual diversas atividades perigosas são desenvolvidas corriqueiramente, ainda que dentro do chamado “risco permitido”, acaba por criar um sentimento de proximidade de riscos não permitidos e potencialmente lesivos entre as pessoas. A mídia desempenha papel capital nesse sentido ao publicizar tragédias diariamente, contribuindo para o afloramento de uma insegurança geral no meio social e, muitas vezes, do descrédito no sistema penal.
Para pacificar tais preocupações e demonstrar que o Estado não está inerte em face dessa criminalidade recorrente, não é incomum que a atividade legislativa acabe por adotar uma postura de não aguardar a ocorrência de um resultado lesivo para penalizar o sujeito. Destarte, proíbem-se comportamentos perigosos, ainda que não causem resultado jurídico algum, exatamente para criar uma falsa sensação de segurança, originando o referido direito penal simbólico, no qual estão inseridos os delitos de perigo abstrato.
É certo que, de imediato, as normas meramente simbólicas surtem algum efeito tranquilizador no meio social afetado pela espécie de criminalidade que se busca repelir, todavia, não possuem a idoneidade de emanar efeitos preventivos em detrimento das ofensas aos bens jurídicos, as quais continuarão a ser praticadas, gerando, dentro de certo tempo, a perda total da confiança naquelas normas, conforme revela Sánchez (2011, p. 461):
Uma nova norma ou um incremento de penalidade que, em princípio, tiveram importantes efeitos para o estabelecimento ou restabelecimento da confiança da população no ordenamento jurídico, em médio ou longo prazo perdem toda confiabilidade com sua inaplicação ou ineficácia. Definitivamente, portanto, a legislação simbólica deve ser repelida, porque, em curto prazo, cumpre funções educativas/promocionais/de integração, que já avaliamos negativamente; e, em longo prazo, redunda mesmo numa perda de confiabilidade do ordenamento em seu conjunto, bloqueando-lhe as funções instrumentais.
Ilustrativamente, no ordenamento jurídico pátrio há a previsão do crime de porte ilegal de arma de fogo previsto no artigo 10 da Lei n° 9.437/97 que se trata de crime de perigo abstrato, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal assentado no HC 96.922/RS no ano de 2009.
No julgado supramencionado, o Pretório Excelso decidiu pelo indeferimento do habeas corpus impetrado no qual se pleiteava a descaracterização da materialidade da conduta imputada ao sujeito, uma vez que não teria havido perícia para a comprovação do potencial lesivo da arma de fogo apreendida.
De acordo com o órgão julgador, a norma incriminadora não fazia qualquer menção à necessidade de comprovação do potencial ofensivo da arma de fogo, além do fato de que o próprio Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2006) tipificou, no seu artigo 14, até mesmo a conduta de portar munição ainda que sem a arma correspondente, ou seja, sem qualquer potencial ofensivo. Assim, na visão do Supremo Tribunal Federal, estaria dispensada a realização da pericia do revólver.
Observa-se que a referida decisão ignorou completamente o princípio da ofensividade, político-criminalmente necessário em um Estado Constitucional Democrático de Direito como o brasileiro. A antecipação da tutela penal através dos chamados crimes de perigo, ou seja, crimes que ensejam a punição do infrator antes mesmo de haver efetiva lesão ao bem jurídico, só é possível quando há a constatação de um perigo concreto para o referido bem, sendo indispensável, destarte, o exame pericial pleiteado, conforme leciona Gomes (2011, p. 124):
Essa antecipação da proteção penal (que dispensa uma lesão ao bem jurídico) só é legítima (no Estado constitucional e democrático de direito) quando se constata um perigo concreto para os bens jurídicos protegidos (incolumidade pública ou bens pessoais). No caso da arma de fogo o perigo concreto exige: (a) idoneidade ofensiva da arma e (b) disponibilidade de uso (tal como reconhecido pelo STF, RHC 81.057).
Caso fossem considerados os critérios propostos pela moderna teoria da imputação objetiva por parte do Pretório Excelso no julgado suprarreferido, além do aspecto imperativo da norma primária, seria preciso examinar, também, o seu aspecto valorativo, no qual incidiria o princípio da ofensividade. Desta feita, não haveria o preenchimento do aspecto material da tipicidade, mas o mero ajuste formal da conduta ao tipo legal, conforme afirma Gomes (2011, p. 125):
Quem porta ou possui qualquer tipo de arma de fogo viola o aspecto imperativo da norma (que manda exatamente o contrário). Esse é um lado da questão. O outro reside na violação do aspecto valorativo da norma, ou seja, na violação do bem jurídico protegido.
Os bens jurídicos protegidos pelos tipos penais previstos no artigo 10 da Lei 9.437/97 e no artigo 14 do Estatuto do Desarmamento em momento algum foram colocados em risco concreto, uma vez que uma arma desmuniciada, quebrada ou mesmo a simples posse de munição sem a arma correspondente, não possuem idoneidade para tanto, pelo menos, não mais do que quaisquer outros objetos comuns como cabos de vassoura, tijolos, pedras, entre outros.
Frise-se que o Supremo Tribunal Federal assim vinha entendendo antes da mudança de orientação ocorrida a partir do julgado ora analisado. Neste sentido, vale colacionar um trecho da ementa do acórdão proferido no RHC 81057/SP, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, datado do ano de 2004:
No porte de arma de fogo desmuniciada, é preciso distinguir duas situações, à luz do princípio de disponibilidade: (1) se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o tipo; (2) ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal - isto é, como artefato idôneo a produzir disparo - e, por isso, não se realiza a figura típica.
Diante do exposto, denota-se que este entendimento, apesar de mais antigo, mostra-se mais acertado, pois está em consonância com a moderna teoria da imputação objetiva a qual é indispensável para possibilitar a construção de um sistema penal efetivamente voltado para a missão do Direito Penal Contemporâneo (proteção de bens jurídicos) e concebido à luz de critérios de política criminal, bem como para fornecer soluções mais adequadas para o aplicador do direito tanto em crimes dolosos quanto em crimes culposos, a partir da ideia de risco que conjuga o desvalor da conduta com o desvalor do resultado.
3. CONCLUSÃO
Assim, ficou demonstrada a insuficiência dos sistemas penais tradicionais para fornecerem soluções condizentes com os princípios e critérios de política criminal necessários para a concretização de um Direito Penal legítimo, razão pela qual a teoria da imputação objetiva, aperfeiçoada pelos funcionalistas, não pode ser desprezada pelos Estados Democráticos de Direito pós-modernos.
Verificou-se, destarte, que só o acolhimento da novel teoria é capaz de blindar o sistema penal contra o desenfreado arbítrio estatal.
Um Estado que é livre para criar figuras delitivas desvinculadas dos fins do Direito Penal torna-se totalitário, pois, nestas condições, passa a ser possível o estabelecimento de qualquer conduta como crime, inclusive a mera desobediência formal da lei, ainda que se trate de uma norma de conteúdo simbólico na qual não encontra espaço o princípio da ofensividade, indispensável aos legítimos Estados Constitucionais Democráticos de Direito
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERRAJOLI, Luigui. Derecho Penal mínimo y bienes jurídicos fundamentales. Disponível em: <http://www.juareztavares.com/textos/ferrajoli_bens_minimo.pdf>. Acesso em: 1 abr. 2013.
GOMES, Luís Flávio. Teoria constitucionalista do delito e imputação objetiva: O novo conceito de tipicidade objetiva na pós-modernidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
HASSEMER, Winfried. Derecho Penal simbólico y protección de bienes jurídicos. Disponível em: <http://www.juareztavares.com/textos/hassemer_bem_juri
dico.pdf> Acesso em: 1 abr. 2013.
JAKOBS, Günther. ______. A Imputação objetiva no direito penal. Trad. André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
ROXIN, Claus. A Proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. 2. ed. Org. e trad. André LuísCallegari, Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
______. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Intro. e trad. Luís Greco. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
SÁNCHEZ, Jésus-María Silva. Aproximação ao direito penal contemporâneo. Tradução: Roberto Barbosa Alves. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[1] Encubren la ausencia de fuerza fáctica del Derecho penal para proteger bienes jurídicos, al suprimir el vínculo entre comportamiento criminalizado y lesión de bien jurídico.
[2] [...] en los que el peligro tampoco es requerido como algo concreto, como "peligro corrido" por el bien jurídico, sino que es presumido en abstracto por la ley, de manera que, en los casos en que ese peligro no exista de hecho, se castiga la mera violación formal de la ley por parte de una acción inofensiva de por sí. Si se quiere aplicar el principio de ofensividad, también estos delitos tendrían que ser reestructurados como delitos de daño, por lo menos, de peligro concreto, según sea que el bien jurídico merezca uma tutela limitada al daño o anticipada a su mera puesta en peligro [...].
Assessor de Promotor de Justiça do Ministério Público da Paraíba, Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus, Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Philipe Amorim. Funcionalismo e a insubsistência dos crimes de perigo abstrato Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jul 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40299/funcionalismo-e-a-insubsistencia-dos-crimes-de-perigo-abstrato. Acesso em: 23 dez 2024.
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