RESUMO: A análise da constitucionalidade do artigo 2.035 do Código Civil pressupõe a aplicação de regras para solução de conflitos de normas, a partir da antinomia existente e da análise dos princípios informadores do próprio Direito Privado.
PALAVRAS-CHAVES: Constitucionalidade – Antinomia – Princípios – Direito Privado.
1. O caput do artigo 2.035 do Código Civil
O novo Código Civil dispõe em seu artigo 2.035 que:
“A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.
A constitucionalidade do caput do presente artigo é questionada em razão do disposto no inciso XXXVI do artigo 5° da Constituição Federal, que preceitua que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
No entender de alguns doutrinadores, o caput do artigo 2.035 é inconstitucional, pois os contratos celebrados na vigência do Código de 1916, mesmo que de trato sucessivo, excetuados os abrigados pelas leis consumeristas, teriam aplicação conforme a lei anterior e não segundo o Código de 2002.
Deste entendimento não pactua Maria Helena Diniz[1], entendendo que:
“(...) o art. 2.035, caput, não atinge, portanto, os efeitos contratuais e substanciais do ato jurídico perfeito já consumados ou a serem realizados; alcançará tão-somente o modo de realização das conseqüências legais que, ainda, não advirem, desde que os contratantes não tenham determinado em cláusula contratual ou forma para sua execução”.
Os argumentos apontados pela corrente doutrinária que entende pela constitucionalidade do caput do artigo 2.035 nos parece mais acertada, na medida em que pautada nos princípios informadores do Código Civil de 2002.
Na exposição de motivos do Anteprojeto do Código Civil de 2002, Miguel Reale[2] explicou:
“Superado de vez o individualismo, que condicionara as fontes inspiradoras do Código vigente; reconhecendo-se cada vez mais que o Direito é social em sua origem e em seu destino, impondo a correlação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclusivismos, numa ordem global de comum participação,...”
O novo Código Civil é regido pelos princípios da eticidade, socialidade e operabilidade, que são princípios constitucionais do direito privado, explicando Nelson Nery Jr.[3] que a doutrina se utiliza dessa expressão para se referir a certos valores ou princípios que foram adotados pela Constituição Federal e se referem a temas que são próprios do direito privado.
A eticidade busca a valorização da ética e o Código Civil de 2002 apresenta valores como a probidade, a boa-fé, a correção. Isto se opõe ao formalismo jurídico que o Código Civil de 1916 continha. A influência da Teoria Tridimensional de Miguel Reale nesse ponto, no novo Código, é visível, uma vez que fato, valor e norma devem ser considerados, pois nesta visão a subsunção exige critérios valorativos. Demonstram bem isso as cláusulas gerais contidas no atual Código Civil, pois permitem que o juiz leve ética para a sua decisão, uma vez que são normas orientadoras sob forma de diretrizes, dirigidas ao julgador, vinculando-o ao mesmo tempo em que lhe dão liberdade para decidir.[4]
A socialidade se opõe ao individualismo que caracterizava o Código Civil anterior. A função social dos contratos e da propriedade são exemplos claros deste princípio.
Sobre o assunto observou Judith Martins-Costa[5] que a atual situação do Código Civil é uma reação ao excessivo individualismo que caracterizou a Era da codificação oitocentista. Através da função social e da boa-fé, instrumentaliza o Código Civil novo a diretriz constitucional da solidariedade social, colocada como um dos objetivos fundamentais da República.
A operabilidade busca a efetividade da norma, através de maior mobilidade do sistema e maior flexibilidade para o julgamento do juiz, sem perder a segurança jurídica das relações.
Christiano Cassettari[6] explica que outra função da operabilidade é facilitar o estudo dos institutos jurídicos, como, por exemplo, quando o legislador do Código Civil coloca o instituto da decadência, acabando com a confusão que permeava esse instituto e o da prescrição.
A respeito do significado de ato jurídico perfeito, importante ressaltar a lição de Nelson Nery Jr, a saber:
“Ter efeito imediato e geral significa que a lei nova atinge somente os fatos pendentes (facta pendentia) e os futuros (facta futura) que se realizarem sob sua vigência, não abrangendo os fatos pretéritos (facta praeterita), estes últimos protegidos pela cláusula constitucional da irretroatividade. Não se pode confundir, portanto, a eficácia imediata que toda lei nova tem, atingindo os negócios jurídicos em curso a partir de sua entrada em vigor, com retroatividade da lei, proibida pelo sistema conforme disposto na CF 5° XXXVI e LICC 6° caput. Dizemos isso porque não tem sido incomum essa confusão, grassando em alguns setores de nossa sociedade a incorreta idéia de que, se o contrato foi celebrado antes da vigência da nova lei, está imune aos efeitos desta, ainda que as novas regras sejam incompatíveis com aquelas constantes do contrato celebrado anteriormente. Quando entra em vigor nova lei revogando a anterior, o sistema retira do mundo jurídico a lei antiga e não mais permite que produza efeitos, salvo as exceções que expressamente constem da Constituição ou do novo sistema legal revogador. Para os contratos já executados, isto é, cujo objeto já se esgotou no tempo e no espaço, a nova lei não tem o que atingir, pois o contrato já se encontra pronto, acabado e executado. Nesse caso, mudada a regra do negócio pela nova lei, não existe a possibilidade de, por exemplo, repetir-se aquilo que, segundo aquela, teria sido pago indevidamente no sistema da lei revogada (que permitia referido pagamento). Nesse caso, vale dizer que os facta praeterita, praticados sob o regime da norma revogada, estão acobertados pela cláusula constitucional da irretroatividade, porque se caracterizam como ato jurídico perfeito. É nisso que reside a proteção constitucional (CF 5° XXXVI) e legal (LICC 6°, caput) do ato jurídico perfeito: impossibilidade de a lei nova atingir o que foi praticado no regime da lei revogada. Só isso e nada mais.”
A interpretação que deve ser dada ao caput do artigo 2.035 é nesse sentido, uma vez que não há afronta a ideia do ato jurídico perfeito, que continua a ser respeitado, mas a aplicação do novo diploma legal aos fatos pendentes e futuros, ou seja, aos contratos que ainda não tiveram sua execução efetivada e concluída[7].
2. O parágrafo único do artigo 2.035 do Código Civil
Quanto ao parágrafo único do artigo 2.035, igualmente entende Maria Helena Diniz[8] que não há nenhuma inconstitucionalidade, por ser norma especial e já serem os princípios da função social do contrato e o da função social da propriedade anteriores ao novo Código Civil.
A autora afirma que entre o artigo 5°, XXXVI da Constituição Federal e o artigo 2035 do Código Civil existe uma antinomia real de segundo grau, por haver conflito entre o critério hierárquico e o da especialidade da norma.
2.1 Antinomia real de segundo grau
Cabe colocar alguns conceitos importantes para o entendimento da questão. “Antinomia é o conflito entre duas normas, dois princípios, ou de uma norma e um princípio geral de direito em sua aplicação prática a um caso particular”[9].
Para que ocorra uma antinomia real três elementos devem estar presentes: incompatibilidade, indecidibilidade e necessidade de decisão. Segundo Maria Helena Diniz o melhor conceito de antinomia real foi dado por Tércio Sampaio Ferraz Jr, que a define como oposição total ou parcial, entre duas normas contraditórias, emanadas de autoridades competentes no mesmo patamar normativo, que coloca o aplicador numa posição insustentável ante a incompletude ou a inconsistência de critérios normativos.[10]
A antinomia real é de primeiro grau quando há ausência de critérios normativos para solucioná-la, isto é, lacuna de regras de solução, e é de segundo grau quando há conflito entre os critérios existentes.
Segundo ensina Maria Helena Diniz[11], haverá antinomia de segundo grau quando houver conflito entre os critérios:
“1) hierárquico e cronológico, hipótese em que sendo uma norma anterior superior antinômica a uma posterior-inferior, pelo critério hierárquico deve-se optar pela primeira e pelo cronológico, pela segunda;
2) de especialidade e cronológico, se houver uma norma anterior-especial conflitante a uma posterior-geral, seria a primeira preferida pelo critério de especialidade e a segunda pelo critério cronológico;
3) hierárquico e de especialidade, no caso de uma norma superior-geral ser antinômica a uma inferior-especial, em que prevalece a primeira aplicando-se o critério hierárquico e a segunda, utilizando-se o da especialidade.”
2.2 Metacritérios para resolução das antinomias
Há a necessidade de se estabelecer metacritérios para resolver as antinomias reais de segundo grau, que são muito úteis para auxiliar na solução dos conflitos.
Assim, havendo conflito entre o critério hierárquico e o cronológico, o metacritério é que norma posterior inferior não prevalece sobre norma anterior superior. Prevalecerá o critério hierárquico.
Havendo conflito entre o critério de especialidade e o cronológico, prevalece o critério da especialidade, pois o metacritério é que norma posterior geral não prevalece norma anterior especial.
Se o conflito for entre o critério hierárquico e o de especialidade, não há metacritério, havendo propriamente uma antinomia real.
No caso do parágrafo único do artigo 2.035 do CC, há antinomia entre o critério hierárquico e o da especialidade, pois a regra constitucional (art. 5°, XXXVI) é norma superior-geral e a do CC é norma inferior-especial, hipótese em que não há metacritério, gerando uma lacuna de conflito, sendo aplicáveis os arts. 4° e 5° da LICC, possibilitando uma interpretação corretiva, ao se aplicarem os princípios da função social da propriedade e do contrato, partindo do critério do justo.[12]
A aplicação dos princípios já apontados acima, como o da socialidade, são de grande importância nesta questão, pois o parágrafo único do artigo 2035 retrata a necessidade de se adaptar à nova situação jurídica, em que prevalece a função social a que se destina o ato negocial.
Rosa Maria de A. Nery[13] afirma que não se pode mais ter a visão de que os contratos operam efeitos apenas entre as partes. O contrato deve ser estudado sob o ponto de vista de sua base subjetiva, isto é, manifestação da vontade das partes, mas também sob o aspecto da sua base objetiva e de sua função social.
“...Há na compreensão moderna do contrato, bem como da empresa que opera o mercado e da propriedade privada, um sentido funcional, de promoção social que ultrapassa os limites da funcionalidade do ato e do negócio, como mera experiência particular de um sujeito. Os institutos do direito de obrigações não podem abdicar de sua função construtiva de uma sociedade mais justa. Não pode o contrato, fruto da mais elaborada técnica jurídica, dispor-se a representar um papel que se ponha contra essa finalidade cientifica do direito.”
Como ensina Maria Helena Diniz, o principio da solidariedade social procura conciliar as exigências coletivas com os interesses particulares. Desta forma, qualquer ato negocial, seja anterior ou posterior ao atual Código Civil, deve obedecer à norma de ordem pública que disciplina princípios consagrados na Constituição Federal, pois não há direito adquirido ou ato jurídico perfeito contra norma de ordem pública. A livre iniciativa na esfera econômica e a socialidade devem ser considerados na função social do contrato e da propriedade.
A irretroatividade da lei nova não tem caráter absoluto, uma vez que não prevalece pois há no ordenamento jurídico civil a norma intertemporal expressa que não admite a produção de efeitos incompatíveis com os princípios gerais do direito (art. 5° da LINDB).[14]
3. Conclusão
Face ao exposto, diante da discussão a respeito da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do artigo 2.035 do Código Civil vigente, vimos que a visão do direito civil moderno deve ser atualizada de acordo com a nova principiologia inserida no diploma legal de 2002.
Alguns doutrinadores falam no “novo Direito Civil”, para destacar a nova fase do direito civilista, calcada em principiologia que se reflete em todo direito privado, afastando-se do pensamento individualista que impregnava o Código Civil de 1916.
Porém, como ressalta Maria Helena Diniz[15], não é novidade a idéia de função social dos contratos e da propriedade. Já dispõe a respeito o artigo 5° da LICC, quando prevê que na aplicação deve-se considerar os fins sociais da norma, isto é, sempre houve a função social da lei, portanto, também do contrato. Igualmente no Código de Defesa do Consumidor já havia a vedação de cláusulas abusivas. A Teoria da Imprevisão também já permitia a revisão do contrato havendo onerosidade excessiva. Na Constituição Federal o princípio da função social da propriedade também não é novo, e a ele liga-se a noção de função social do contrato, pois ligados a noção de bem comum e de interesse social.
Assim, todo contrato deve atender a um fim social, prevalecendo o interesse da coletividade, conforme os princípios informadores da nova codificação civilista. Desta forma, se os contratantes não atenderem ao interesse social, baseado em norma de ordem pública e na justiça social, poderá ocorrer a anulação do contrato, não importando se foi celebrado antes ou depois da entrada em vigor do Código Civil de 2002, pois na verdade não se trata de retroatividade da norma, pois os princípios já existiam no ordenamento jurídico.
O artigo 2.035, parágrafo único, do CC prevê expressamente, que a função social do contrato é preceito de ordem pública, e desta forma pode ser reconhecida de ofício pelo juiz.
BIBLIOGRAFIA:
CASSETTARI, Christiano. Elementos de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2011.
DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.
__________________Conflito de normas. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009.
__________________O impacto do art. 2.035 e parágrafo único nos contratos anteriores ao novo Código Civil, Novo Código Civil : questões controvertidas, Série Grandes temas de direito privado, coords.: Mário Luiz Delgado e Jones Figueiredo Alves, vol. 4, São Paulo : Método.
__________________Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica. 22ª ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011.
MARTINS-COSTA, Judith. O novo Código Civil brasileiro: em busca da ética da situação. In: Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002.
NERY JUNIOR, Nelson. Código Civil Comentado. Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. 5ª edição ver., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
[1] O impacto do art. 2.035 e parágrafo único nos contratos anteriores ao novo Código Civil, Novo Código Civil : questões controvertidas, Série Grandes temas de direito privado, vol. 4, São Paulo : Método, coords.: Mário Luiz Delgado e Jones Figueiredo Alves, p. 474-475.
[2] Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil, in Código Civil Comentado. Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. 5ª edição ver., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.152.
[3] Código Civil Comentado. Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. 5ª edição ver., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.179.
[4] Idem, p. 176.
[5] O novo Código Civil brasileiro: em busca da ética da situação. In: Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 144.
[6] Elementos de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 30.
[7] Jornada IV STJ 300: “A lei aplicável aos efeitos atuais dos contratos celebrados antes do novo CC será a vigente na época da celebração; todavia, havendo alteração legislativa que evidencie anacronismo da lei revogada, o juiz equilibrará as obrigações das partes contratantes, poderando os interesses traduzidos pelas regras revogada e revogadora, bem como a natureza e a finalidade do negócio”.
[8] DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 71.
[9] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica. 22ª ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 501.
[10] Idem, p. 501.
[11] Ibidem, p. 507
[12] DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 71.
[13] NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 249.
[14] DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 72.
[15] Idem, p. 69-70.
Mestre e doutoranda em Direito das Relações Sociais pela PUC de São Paulo, professora de direito civil e de direito ambiental, advogada. Autora do livro Resumo jurídico de direitos reais, volume 19. São Paulo: Quartier Latin, 2004 (a venda na internet)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JARDIM, Luciana Chiavoloni de Andrade. Análise da constitucionalidade do artigo 2.035 do Código Civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 ago 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40358/analise-da-constitucionalidade-do-artigo-2-035-do-codigo-civil. Acesso em: 23 dez 2024.
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