Há um fenômeno comum, que pode ser observado em todos os países cuja tradição jurídica esteja atrelada ao sistema romano-germânico, também conhecido como europeu-continental ou como civil law e que pode ser apontado como a diferença mais relevante em relação àqueles ligados às premissas do sistema anglo-saxônico (common law): enquanto estes sempre atribuíram posição de destaques ao precedente judicial, considerado-o a principal fonte do Direito, de observância quase sempre obrigatória (ainda que possa, em certos casos ser superado), naqueles a decisão judicial era tradicionalmente considerada um elemento meramente persuasivo, cuja utilidade era restrita à interpretação dos termos da lei[1].
No Brasil, em que a tradição jurídica deita raízes no sistema romano-germânico, é inegável que o papel historicamente atribuído às decisões judiciais decorre diretamente (embora não exclusivamente) da filiação à escola positivista, a qual possui como denominador comum de suas várias vertentes, o primado da lei como principal fonte de criação do Direito.
Não é demais lembrar que, não obstante atualmente em inegável desuso, uma das correntes do Positivismo de maior destaque foi a escola da Exegese, que repudiava a existência de qualquer outra fonte do Direito que não a lei.
Para Montesquieu, um dos expoentes dessa vertente, o juiz era apenas um autômato cuja função limitava-se a subsumir o caso concreto à regra prevista no ordenamento. “A sua operação mental irrompe limitada e mecânica: examinar os fatos, individuar as regras pertinentes e extrair as conseqüências[2]”. Assim, para ele, o poder de julgar era um poder nulo[3].
A análise, ainda que breve, do momento histórico em que surgiu a Escola da Exegese pode ser de grande utilidade para entender o valor atribuído pelo positivismo às decisões judiciais.
Com a Revolução Francesa, ocorreu naquele país a ascensão política da classe burguesa. Naturalmente, os burgueses pretenderam disseminar pela sociedade as idéias que entendiam corretas. Fizeram-no através das codificações. O Direito posto era reflexo do ideário burguês, cujo ápice foi o Código Civil Napoleônico.
Paulo Gustavo Gonet Branco[4], calcado nas lições de Maurizio Fioravanti, leciona que a Revolução Francesa objetivava não apenas a restringir os excessos do Antigo Regime, mas superar todo o seu regime político e social.
Após a Revolução, as monarquias absolutistas transformaram-se em monarquias constitucionais, em que o poder era dividido com uma nova força social. Os revolucionários, intitulando-se representantes do povo, alocaram-se no Parlamento, arrogando, fortalecendo-o em detrimento dos demais poderes do Estado.
Contudo, era faticamente impossível a súbita substituição de toda a máquina estatal francesa, para que todos os cargos relevantes fossem ocupados apenas por partidários da classe ascendente, comprometidos com as ideias liberais.
A magistratura da época era ocupada por integrantes da nobreza (Ancien Régime). Por isso, também gozava de grande desconfiança por parte dos revolucionários, que temiam que as decisões judiciais pudessem, por meio de subterfúgios, burlar às normas legais para favorecer os interesses da nobreza, em detrimento da recém ascendida classe burguesa, pondo em xeque as conquistas obtidas por meio da Revolução.
Na verdade, o destaque dado à lei, mais que o seu conteúdo levava em consideração sua proveniência orgânica, sendo que o prestígio da lei decorria justamente da influência alcançada pelo Parlamento.
Teorizou-se que o rei seria o representante da unidade da nacional, enquanto o parlamento era tido como o representante do povo, desempenhando a função de governo.
A lei, enquanto expressão da vontade popular foi erigida à principal fonte inovadora do direito, levando-se ao extremo a teoria da separação orgânica dos Poderes.
Daí a vedação à utilização de qualquer forma de integração, analogia ou eqüidade nas decisões judiciais. Negava-se a existência de lacunas na lei. A interpretação da lei deveria ser apenas a gramatical e a sistêmica, sempre buscando a intenção do legislador. Não se admitia que na lei se vislumbrasse a existência de conceitos vagos ou indeterminados. Os Códigos eram considerados completos, hermeticamente fechados, de maneira que as decisões judiciais não poderiam ser influenciadas por qualquer outro elemento que não a própria lei.
A única função atribuída aos precedentes judiciais era manter a coerência do Direito Codificado. O julgador não era mais que um instrumento de pronúncia das palavras da lei, sendo-lhe vedada a interpretação da lei segundo sua própria consciência ou vontade, daí a criação do référé législatif, pelo qual o Judiciário remetia ao Parlamento a interpretação de texto legislativo, em caso de obscuridade.
Somente a partir da superação da desconfiança em relação aos magistrados e a constatação de que a completude do ordenamento jurídico era tão somente teórica, já que é impossível ao legislador prever hipoteticamente toda a gama de situações verificadas no tecido social, surge um movimento que prega uma nova maneira de interpretar o Direito, afastando-se do critério literal do positivismo clássico para pregar uma análise teleológica das regras jurídicas.
Essa idéia pode ser observada na doutrina da Escola Histórica, que teve em Friedrich Karl von Savigny seu maior expoente. Savigny retoma a doutrina de que a jurisprudência, ao lado das leis e dos costumes seria apta a construir o Direito, atribuindo particular importância na integração das lacunas do ordenamento.
A ideia central é a de que seria “próprio das instituições jurídicas conformar-se aos fatos e circunstâncias do momento e do lugar[5]”
Para essa corrente, competiria ao julgador a aplicação da norma jurídica levando em consideração a idéia de direito que se observa em determinada época, em dado lugar, já que a idéia de Justiça não seria nem imutável e nem universal.
Atualmente, “a obrigação do jurista não é mais apenas o de revelar as palavras da lei, mas sim o de projetar uma imagem, corrigindo-a e adequando-a aos princípios de justiça e aos direitos fundamentais. Aliás, quando essa correção ou adequação não for possível, só lhe restará demonstrar a inconstitucionalidade de lei[6]”. É o chamado pós-positivismo.
A análise histórica também pode ser de grande valia para a compreensão da importância despendida pelos países seguidores do sistema anglo-saxônico às decisões judiciais, desde sempre lhes atribuindo a natureza de fonte primária do Direito.
Marcelo Alves Dias de Souza ensina que no período que precedeu à conquista normanda do território hoje correspondente à Inglaterra, em 1066, o Direito inglês era bastante rudimentar para os padrões da época[7].
A elaboração do sistema jurídico inglês foi fortemente influenciada pelos Normandos, que não possuíam a tradição de codificar suas regras sociais. O período que se estendeu da invasão Normanda até o início da dinastia Tudor, em 1485, foi essencial para a formação do sistema da common law. A tarefa de solucionar as lides que surgissem competia aos reis e a seus juízes, que nessa tarefa não estavam submetidos a nenhum texto legal escrito[8].
Diversamente do que ocorrera na França, na Inglaterra, a Revolução Gloriosa (ocorrida em 1688) não visava suplantar o vigente, mas somente tolher o poder do monarca nos pontos em que consideravam haver abusos
O embasamento teórico de Revolução e do Bill of Rights dela resultante foram as ideias de John Locke, expostas na obra “Segundo Tratado sobre o Governo Civil” [9]. Os direitos fundamentais perseguidos à época eram, basicamente, vida, liberdade e propriedade.
Locke defendia que apenas o consentimento expresso dos governados, expresso por meio do Parlamento, seria a fonte do poder político, de forma que o rei estaria submetido à lei (e, portanto, ao Parlamento).
Na Inglaterra, entretanto, não havia a submissão do Judiciário ao Parlamento. Todavia, diferentemente do que viria a ocorrer na França, os ingleses viam nos magistrados aliados no embate contra os abusos do soberano, razão pela qual a função jurisdicional não foi apequenada, sendo lícita a interpretação das leis pelos juízes, bem como a anulação das leis promulgadas em contrariedade ao ordenamento jurídico e ainda a possibilidade de os juízes criarem o direito da common Law ao julgar.
Inicialmente, o Common Law inglês surge como um direito consuetudinário[10] e em momento seguinte passa ter natureza de um direito pretoriano, jurisprudencial[11]
As decisões judiciais foram inicialmente baseadas nos costumes da terra, observados entre os Englishmen. A decisão judicial caracterizava-se como o reconhecimento judicial da existência do costume, sendo, a partir de então, desnecessária a prova da existência do costume, substituída pela prova da existência da decisão. O Direito possuía, assim, uma marcante feição consuetudinária, embora a decisão judicial e os costumes não se confundissem.
O sistema da common law sempre despendeu grande preocupação em evitar julgamentos contraditórios, assim, ainda que em seu início não existisse regra expressa que atribuísse efeito vinculante às decisões judiciais, a busca por precedentes ganhou relevo e no início do século XVI o que era observado como mera praxe forense, ganhou força obrigatória, com o reconhecimento da eficácia vinculante da ratio decidendi dos precedentes judiciais.
Isso não quer dizer que não haja legislação escrita nos países adeptos da common law. No entanto, mesmo nas regras escritas são deixadas, propositadamente, muitas lacunas, objetivando que estas sejam preenchidas a partir da interpretação do Direito. “Os sistemas de direito da família romano-germânica são sistemas fechados, a common law é um sistema aberto, na qual novas regras são continuamente reveladas; estas novas regras fundam-se na razão”.[12]
Disso resultou a doutrina do stare decisis, cujo nome decorre da redução do adágio stare decisis et non quieta movere, que pode ser traduzido como “mantenha aquilo que já foi decidido e não altere aquilo que já foi estabelecido”[13], que se consubstancia na vinculação obrigatória ao entendimento dos Tribunais de hierarquia superior (vinculação horizontal), e também na vinculação dos Tribunais ao próprio entendimento (vinculação vertical).
João Luís Fischer Dias esclarece que “O precedente é formado por uma decisão antiga, que, em face da autoridade moral e jurídica de sua fundamentação, passa a vincular, paradigmaticamente, uma decisão futura”[14]
É importante frisar que independentemente da tradição jurídica a que se filie não há diferença ontológica quanto ao fenômeno da decisão judicial: uma decisão tomada pelo Poder Judiciário ao analisar um caso concreto levado à sua apreciação será sempre considerada um precedente judicial. A diferença que marca os dois sistemas são os efeitos jurídicos atribuídos a tal decisão[15].
José Rogério Cruz e Tucci leciona que “As duas faces da decisão judicial – autoridade e razão – estão estritamente ligadas: uma legislação e um jurisprudência constantemente irracionais perderiam toda a autoridade, mas um pensamento jurídico racional, revestido portanto de autoridade, deve transpor-se à decisão. Na teoria do direito europeu-continental o acento mais forte é colocado sobre o elemento da autoridade, naquela anglo-americana, sobre o elemento da razão. Na realidade jurídica, os precedentes gozam, para os juízes dos sistemas de tradição romanística, da mesma importância que ostentam aos juízes da common law[16]”.
[1] SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. 1ª ed. Juruá Editora: Curitiba, 2008. p. 308.
[2] Guido Alpa, L’arte di giudicare, Roma, Laterza, 1996. pp.3-4, APUD TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente Judicial como fonte do direito. 1ª ed. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2004. pp. 199-200.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 25
[4] Mendes, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitcional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. .
[5] SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. 1ª ed. Juruá Editora: Curitiba, 2008. p. 27.
[6] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 45
[7] Ob. cit. p. 37.
[8] TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente Judicial como fonte do direito. 1ª ed. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2004. p. 152.
[9] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed. Malheiro Editores: São Paulo, 1999. p. 157
[10] MARINONI, Luiz G. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2010. p. 34.
[11] ORTOLAN, Marcelo Augusto Biehl. Common Law, judicial review e stare decisis: uma abordagem histórica do sistema de controle de constitucionalidade anglo-americanoem perspectiva comparada com o sistema brasileiro. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord). A força dos predentes. Estudos dos cursos de mestrado e doutorado em direito processual civil da UFPR. 2 ed. Editora Juspodivm: Salvador, 2012.
[12] DIAS, João Luís Fischer, idem. p.43
[13] ODAHARA, Bruno Periolo. Um rápido olhar sobre o stare decisis. In: A Força dos Precedentes. Organizador Luiz Guilherme Marinoni. Editora Juspodivm. Salvador, 2012.
[14] DIAS, João Luís Fischer. O efeito vinculante: dos precedentes jurisprudenciais: das súmulas dos tribunais. 1ª ed. São Paulo: IOB Thomson, 2004. p.14
[15] TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente Judicial como fonte do direito. 1ª ed. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2004.; SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. 1ª ed. Juruá Editora: Curitiba, 2008.
[16] TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente Judicial como fonte do direito. 1ª ed. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2004. pp.22-23
Procurador Federal - AGU
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GIANNINI, Marcelo Henrique. Noções históricas introdutórias - o precedente judicial para a tradição romano-germânica (civil law) e para a anglo-saxônica (common law) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 ago 2014, 09:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40619/nocoes-historicas-introdutorias-o-precedente-judicial-para-a-tradicao-romano-germanica-civil-law-e-para-a-anglo-saxonica-common-law. Acesso em: 23 dez 2024.
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