RESUMO: É cediço que os contratos firmados pela Administração Pública, em razão de sua posição diferenciada na relação contratual, trazem regras específicas insculpidas, de forma geral, pela Lei nº8666/93. Sem embargos, nos contratos de locação em que a Administração figura como locatária, regras de direito privado permeiam a relação, em razão da necessidade de se respeitar a propriedade privada. Nesse cenário, merece destaque a situação em que a Administração pretende aditar um contrato de locação, promovendo uma alteração quantitativa no objeto locado, com fundamento na regra do art. 65, I, ‘b’ da Lei 8666/93. Seria essa alteração passível de aplicação nos contratos de locação de imóvel pela Administração? A busca pela resposta a esta indagação é justamente o objeto de estudo deste artigo.
INTRODUÇÃO
Contrato administrativo, de acordo com a Lei nº 8.666/1993, art. 2º, parágrafo único[1], é todo e qualquer ajuste celebrado entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, por meio do qual se estabelece acordo de vontades, para formação de vínculo e estipulação de obrigações recíprocas.
Regulam-se os contratos pelas respectivas cláusulas, pelas normas da Lei de Licitação e pelos preceitos de direito público. Na falta desses dispositivos, regem-se pelos princípios da teoria geral dos contratos e pelas disposições de direito privado.
Contudo, em relação aos contratos de locação, em que a Administração Pública figure como locatária, existe uma situação excepcional, prevista na própria lei de licitações, que exclui de sua aplicação algumas regras típicas do contrato público, tendo em vista a incompatibilidade com sua natureza eminentemente privada.
Nesse sentido, o art. 62 § 3º, I, da Lei nº 8666/93, preceitua:
''Art. 62 - (...)
§ 3 º: Aplica-se o disposto nos arts. 55 e 58 a 61 desta Lei e demais normas gerais, no que couber:
I - aos contratos de seguro, de financiamento, de locação em que o Poder Público seja locatário, e aos demais cujo conteúdo seja regido, predominantemente, por norma de direito privado" (Grifou-se).
Desse modo, percebe-se que os contratos de locação, em que a Administração Pública figure como locatária, serão regidos pelas normas de Direito Privado, caracterizando-se não como um contrato administrativo propriamente dito, mas como um contrato da administração. Todavia, impende deixar claro que o próprio fato da Administração Pública ser parte da relação contratual já impõe a aplicação do regime jurídico de direito público, de modo que se houver conflito entre uma norma de direito público e outra de direito privado, a primeira deve prevalecer.
O Prof. MARÇAL JUSTEN FILHO ao comentar o § 3º acima transcrito, ensina com maestria[2]:
''A previsão do § 3º está mal colocada e melhor ficaria em um dispositivo específico, pois não tem relação com o restante do artigo. Ali fica determinado que o regime de direito público aplica-se inclusive àqueles contratos ditos de "privados': praticado pela Administração. A regra disciplina a hipótese em que a Administração Pública participe dos contratos ditos de direito privado. Tais contratos, no direito privado, apresentam caracteres próprios e não comportam que uma das partes exerça as prerrogativas atribuídas pelo regime de direito público, à Administração. Não se atribui uma relevância mais destacada ao interesse titularizado por uma das partes. A mera participação da Administração Pública como parte em um contrato acarreta alteração do regime jurídico aplicável. O regime de direito público passa a incidir, mesmo no silêncio do instrumento escrito. O conflito entre regras de direito privado e de direito público resolve-se em favor destas últimas. Aplicam-se os princípios de direito privado na medida em que sejam compatíveis com o regime de direito público”(Grifou-se).
Nesse sentido, a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no Processo AC nº 950461885-5. ReI. juiz Paulo Afonso B. Vazo D.j de 11 novo 98, p. 485, registra que:
“Locação de imóvel pela Administração, conquanto regida por algumas regras de direito público, sofre maior influência de normas de direito privado, aplicando-se-Ihe, na essência, a Lei do Inquilinato. Passível, inclusive a denúncia vazia”.
Também sobre o assunto o Advogado da União, Ronny Charles esclarece em sua obra, Leis de Licitações Públicas Comentadas o seguinte:
“Contudo, nada obstante a preocupação do legislador em deixar clara a aplicação no que couber, do regramento previsto nos artigos 55 e 58 a 61, deve-se entender que a aplicação de algumas dessas regras já desvirtuam a condição eminentemente privada do contrato, impondo, mesmo que parcialmente, a incidência de algumas regas próprias do direito público”.[3]
Observa-se, portanto, que no contrato de locação de imóveis, em que a Administração figure como locatária, caso houvesse a inteira publicização do vínculo, poderia se conduzir para a desnaturação da propriedade privada, razão pela qual se torna necessário a relativização de algumas cláusulas típicas dos contratos administrativos, com a aplicação das regras de direito privado.
DESENVOLVIMENTO
Uma vez esclarecida a natureza jurídica dos contratos de locação de imóvel em que a Administração faz as vezes de locatária, grande celeuma se instaura quando passa-se a imaginar se tal contrato poderia ter seu objeto aditado no limite de 25%, previsto para hipótese de alteração quantitativa dos contratos, no art. 65, I, “b” e §1º da Lei nº8666/93.
Tal artigo assim estabelece:
Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
I - unilateralmente pela Administração:
b) quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei;
§ 1o O contratado fica obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, os acréscimos ou supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato, e, no caso particular de reforma de edifício ou de equipamento, até o limite de 50% (cinquenta por cento) para os seus acréscimos.
Observa-se que tal dispositivo prevê hipótese de alteração unilateral dos contratos pela Administração Pública a fim de que esta possa readequá-lo para o fim a que se destina, sem com isso trasmudar o objeto contratual. Tais alterações, justamente porque se tratam de readequações, são impostas aos contratados que devem aceita-las, obviamente com a recomposição do equilíbrio contratual.
No caso dos contratos de locação de imóvel, haveria completa arbitrariedade se o particular fosse compelido a aceitar tais tipos de alteração, sob pena de se ferir de morte o princípio da propriedade privada, pois não poderia o locatário ser compelido a locar mais área do que o previamente estabelecido no contrato.
Nota-se, portanto, que tal alteração contratual não poderia ser imposta pela Administração ao locador, como se fosse uma alteração unilateral comum em outros tipos de contrato administrativos.
Porém, a celeuma não está resolvida, pois se tal alteração não pode ser aplicada pela impossibilidade de ser infligida unilateralmente pela Administração ao proprietário, pode-se imaginar que em havendo a anuência do locador o acréscimo dentro do limite de 25% (vinte e cinco por cento) no objeto locado, seria possível.
Sem embargos, permanece a inaplicabilidade tendo em vista que, conquanto se submeta a várias regras de direito privado, o contrato de locação em que a Administração Pública figura como locatária, deve necessariamente observar, como todo contrato em que Administração seja parte, o regime jurídico de direito público (conforme supra esclarecido) e, assim, o princípio da obrigatoriedade de licitação[4], da isonomia, da moralidade, impessoalidade e legalidade.
Deste modo, imperioso notar que o aditamento pretendido não se trata tão somente de acréscimo ao objeto, mas de verdadeira mudança do objeto, o que fere o princípio licitatório e com isso todos os seus consectários lógicos. Isso porque as cláusulas mutáveis unilateralmente, isso é, as previstas no art. 65, I, Lei de Licitações, referem-se à necessidade de adequação do objeto à satisfação da finalidade buscada por meio da contratação e não na possibilidade de inserção de um novo objeto, como pretendido ao se aplicar o art. 65, I, ‘b’.
Nesse sentido, Marçal Justen Filho[5] é de clareza solar:
2.8) Limites da Modificação
Como princípio geral, não se admite que a modificação do contrato, ainda que por mútuo acordo entre as partes, importe alteração radical ou acarrete frustação aos princípios da obrigatoriedade da licitação e da isonomia.
O Tribunal de Contas da União possui entendimento de que as alterações contratuais são possíveis, desde que respeitados os limites do §1º, art.65, Lei 8666/93 e que não implique alteração da vantagem obtida na contração original.
Acórdão 625/2007 Plenário (Sumário)
É admissível a celebração de aditamento contratual que respeite o limite previsto no § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666/1993, e não implique alteração da vantagem obtida na contratação original, à vista do inciso XX I do art. 37 da Constituição Federal.
Desta feita, não se pode admitir que as alterações contratuais, de quaisquer tipos, acarretem violação ao dever da administração de licitar.
Ora, quando a Administração firma um contrato de locação de um bem imóvel, em que ela figura como locadora, todo um processo licitatório deve ser instaurado, mesmo que se utilize da regra de dispensa prevista no art. 24, X, Lei nº8666/93[6]. Logo, TODO contrato de locação de bem imóvel será firmado com UM OBJETO (definido e limitado), que deverá conter todas as especificações solicitadas pela Administração.
Assim, se porventura a Administração, através de uma necessidade superveniente, verifica que precisa locar outro imóvel para atender suas finalidades, está-se diante de nova demanda que impõe um novo objeto. Nesse sentido, a locação de uma nova área, ainda que adjacente a já locada e, mesmo que acréscimo de área pretendido esteja dentro dos limites de 25% previstos no art. 65, I, ‘b’ da Lei nº8666/93, evidencia um novo pleito e, desta forma, precisa cumprir todos os requisitos originários de uma nova contratação.
Ademais, é cediço que todo bem imóvel é um bem infungível, isto é, não pode ser substituído por outro de mesma espécie, qualidade ou quantidade. Logo, quando a Administração loca, por exemplo, 600m² situados na Rua ‘X’, nº’Y’, no Edifício WWWW, loca aquele espaço. A locação de mais metros quadrados é a locação de um novo lugar, ainda que possa estar localizado no mesmo local.
Destarte, a identidade de sujeitos contratuais e o fato de haver disponibilidade do espaço que se pretende locar no mesmo local em que já foi feito a locação do contrato originário, não são capazes de levar a conclusão de se trata de um mesmo objeto.
Assim, a mera utilização pela Administração de área locada já satisfaz por completo o objeto contratual, de modo que o acréscimo de metros quadrados caracteriza-se não como adequação do objeto à satisfação da finalidade buscada por meio da contratação, mas sim como a inserção de um novo objeto.
Ora, afiguraria no mínimo desarrazoado e desproporcional (sem mencionar a possibilidade de violação aos princípios da licitação, da isonomia e moralidade, já abordados acima) exigir a efetivação de todo um procedimento licitatório para locação de uma área, com a comprovação de todos os requisitos necessários para tanto, e depois simplesmente ignorar tal necessidade em relação a uma nova área.
Portando, ainda que houvesse a necessidade de somente mais 10m², 20m², 10000m², a solicitação de aditamento fundamentada no limite de 25% (vinte e cinco por cento) não poderia proceder, uma vez que está-se sempre diante de um novo objeto e que, desta forma, impõe uma nova contratação.
CONCLUSÃO
Por todo exposto, pode-se concluir que o art. 65, I, ‘b’ da Lei nº8666/93 não pode ser aplicado aos contratos de locação de bem imóvel em que a Administração Pública figure como locatária, quando o objetivo for aditar o contrato para aumentar o objeto locado.
Isso porque, tal dispositivo refere-se à hipótese de alteração unilateral dos contratos pela Administração o que, pela própria natureza jurídica dos contratos de locação, não poderia ser a eles aplicados. Mas mesmo que o locador tenha interesse no acréscimo, um aumento de área no contrato de locação de imóvel, ainda que dentro do limite de 25% (vinte e cinco por cento), evidencia um novo objeto e que, assim sendo, deve preencher todos os requisitos necessários para contratação, sob pena de burla aos princípios da obrigatoriedade da licitação, isonomia, moralidade e transparência.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CARVALHO FILHO, José dos Santos; Manual de Direito Administrativo. 27 ed. São Paulo: Atlas. 2014.
CHARLES, Ronney. Leis de Licitações Públicas Comentadas / 6ª ed. revista, ampliada e atualizada: Salvador: JusPODIVM, 2014.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23ª ed. São Paulo: Atlas. 2010.
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Atlas. 2001.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos / 15ªed.; São Paulo: Dialética, 2012.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2002;
[1] Art. 2º, Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada.
[2] JUSTEN FILHO, Marçal; Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos / 15ªed.; São Paulo; Dialética, 2012 – pgs. 869/870.
[3] CHARLES, Ronney: Leis de Licitações Públicas Comentadas / 6ª ed. revista, ampliada e atualizada: Salvador: JusPODIVM, 2014 – pg. 617.
[4] Art. 37, XXI, CF/88 - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (Regulamento)
[5] JUSTEN FILHO, Marçal; Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos / 15ªed.; São Paulo; Dialética, 2012 – pg. 880.
[6] Art. 24. É dispensável a licitação:
X - para a compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades precípuas da administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia;
Advogada da União. Bacharel em Direito pela PUC/MG. Pós-graduada em Direito Tributário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOMAVILLA, Débora Lara. Alteração quantitativa e contratos de locação de imóvel em que a administração pública figura como locatária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 set 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40791/alteracao-quantitativa-e-contratos-de-locacao-de-imovel-em-que-a-administracao-publica-figura-como-locataria. Acesso em: 23 dez 2024.
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