Resumo: O presente trabalho, fundado na premissa de que vivenciamos uma hipertrofia do Judiciário, investiga como o ordenamento constitucional contribui para subjugar os demais Poderes. Realiza-se uma verticalização nos mecanismos e ferramentas a serviço da juristocracia (governo de juízes), bem como dos expedientes hermenêuticos para legitimar o arbítrio dos julgadores. Ao final, alguns institutos do Direito Comparado, que equalizam forças entre o Legislativo e o Judiciário, são mencionados.
Palavras-chaves: Supremo Tribunal Federal, juristocracia, governo de juízes, hermenêutica constitucional.
Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento 2.1 Uma separação desigual de poderes 2.2 Corte Suprema e Corte Constitucional 2.3 Accountability Hermenêutico 2.3.1 O Direito, quase sempre, será um instrumento legitimador da vontade do intérprete 2.3.2 Quando outras fontes exógenas são invocadas para legitimar a vontade do intérprete 2.3.3 Natureza alográfica do Direito: a necessidade de um Hermes como mensageiro dos Deuses 2.4 Princípio da proporcionalidade: a Katchanga real 2.5 Princípio da dignidade humana: um cheque em branco 3. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Inúmeros trabalhos jurídicos têm devassado os expedientes e artifícios de que se valem alguns juízes para proferir sentenças sentimentais. Dilemas morais têm sido enfrentados pelo Judiciário com o beneplácito dos demais Poderes e a indiferença da sociedade, permitindo que Ministros togados ajam como verdadeiros mensageiros dos Deuses. Para legitimar essa prestação jurisdicional ativista, inúmeros expedientes, institutos e princípios hermenêuticos têm sido utilizados, de modo que hoje é possível a um Juiz fundamentar razoavelmente qualquer decisão que venha a prolatar. Como consectário natural dessa abertura, o princípio da segurança jurídica tem sido aviltado, não mais sendo possível conhecer o comando das normas a partir do seu teor, pois tudo dependerá dos olhos (e da vontade) de quem invoca o Direito.
2.1 Uma separação desigual de Poderes
Nas palavras de Lord Acton, "O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus”. [1] A constatação empírica da natureza corruptiva do poder justificou a construção de teorias que abrandassem essa influência exercida sobre o caráter dos homens. Dentre elas, assume relevo o mecanismo de freios e contrapesos desenvolvido pelo Barão de Montesquieu.
A Constituição Federal de 1988 previu, no art. 2º, a cláusula da separação dos Poderes, pela qual “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Em boa verdade, não se adotou entre nós uma separação pura e rígida, tal qual teorizada originariamente por Montesquieu, mas isso não desnatura a essência do mecanismo: converter um poder absoluto em rarefeito, por meio de uma especialização funcional. A rigor, todos são expressões de um mesmo poder, qual seja, a soberania do Estado. Porém, o exercício foi cometido a órgãos distintos.
O desiderato da tripartição mencionada, como é consabido, foi o de estabelecer uma paridade entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, ou seja, nenhum deles pode se sobrepor ao outro. Ao contrário da Constituição de 1824, que previu a existência de um poder moderador para equilibrar os demais, a Carta Outubrina consagrou apenas três poderes, em tese, nivelados no mesmo patamar.
Todos os poderes devem curvar-se às competências estipuladas na Constituição, documento político dotado de força normativa e que se reveste de legitimidade para impor limites jurídicos ao Estado. Nasce, então, o maior paradoxo do atual momento constitucional vivenciado pelo Brasil: se o Judiciário deve sujeitar-se à Carta Magna, como atribuir à mais alta Corte a prerrogativa de dizer a última palavra acerca do significado da Constituição? Como conceder ao destinatário das regras o poder de, a pretexto de interpretá-las, desvencilhar-se dos seus mandamentos? Neste caso, sobrevindo um abuso na guarda da Lei Maior, a quem deverá recorrer o povo brasileiro?
Segundo a doutrina de freios e contrapesos, a resposta é muito clara: aos demais poderes. Contudo, um exame mais cuidadoso revelará que nenhum deles se reveste da autoridade para enfrentar o Judiciário, nem o Legislativo e nem o Executivo. Este edita atos administrativos que devem compatibilidade à lei, do contrário, serão invalidados por um controle de legalidade. Quem realiza este controle? Sobretudo, o Judiciário. Do mesmo modo, os atos legislativos devem conformidade à Constituição, sob pena de serem invalidados no controle de constitucionalidade. Quem efetua esta sindicância? Mormente, o Judiciário. Conclui-se que o Judiciário controla os demais poderes, pois realiza um controle de legalidade sobre os atos administrativos e de constitucionalidade sobre os atos legislativos, mas por eles não é controlado.
Não há mecanismo franqueado ao Congresso Nacional ou à presidência da República que permita aquilatar atos tipicamente judiciais emanados do Supremo Tribunal Federal, ainda que intromissivos, mas o inverso é usual e cotidiano. Decisões judiciais não podem ser revistas pelo Legislativo ou pelo Executivo, mas a obra destes sujeita-se ao crivo dos juízes. Se o Judiciário entender de destruir uma lei, basta fazer uso do controle de constitucionalidade. O Legislativo, a seu turno, não revela poderes para destruir uma decisão judicial, seja porque não é dado à lei atingir a coisa julgada (art. 5º,
XXXVI, CF/88), seja porque só lhe cabe sustar os atos do Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou da delegação legislativa (art. 49, V, CF/88). Em se tratando de ato proveniente do Judiciário, não é possível sustar os seus efeitos, por ausência de previsão constitucional para tanto[2]. Isso acaba por desagasalhar o Congresso Nacional, que atualmente não possui instrumentos para defender-se de um Judiciário que faz da Constituição uma folha de papel, a pretexto de exercer o chamado ativismo judicial.
Exatamente pela percepção de que o Judiciário controlava, mas não era controlado, a EC n.º 45/04 criou o Conselho Nacional de Justiça. Ora, também este Sodalício Administrativo não reuniu poderes para domesticar os excessos do STF, entendimento que foi manifestado em decisão proferida pelo próprio Excelso Pretório[3].
Pelo contrário, firmou-se o entendimento pelo qual é o STF que controla os eventuais abusos do CNJ, conclusão advinda da competência para processar e julgar originariamente ações judiciais contra o referido Conselho (art. 102, I, “r”, CF/88, inserida pela EC 45/04). Aliás, o CNJ é órgão alojado na intimidade estrutural do Judiciário, pertencendo a ele física[4] e juridicamente (art. 92, I-A, CF/88).
Poucos ainda hesitam em reconhecer que o povo brasileiro é governado por juízes. Ives Gandra Martins parece ter percebido essa realidade[5]:
Concluo estas breves considerações de velho professor de Direito, mais idoso do que todos os magistrados na ativa no Brasil, inclusive da Suprema Corte, lembrando que, quando os judeus foram governados por juízes, o povo pediu a Deus que lhes desse um rei, porque não suportavam mais serem pelos juízes tutelados (O livro dos Juízes). E Deus lhes concedeu um rei.
Embora seja explicitar o óbvio, magistrados não foram sufragados nas urnas, diferentemente dos membros do Legislativo e do Executivo. Portanto, falece-lhes legitimidade para governarem uma nação. Vive-se, pois, no regime de governo que se pode denominar de juristocracia.
2.2 Corte Suprema e Corte Constitucional
Em parte, o problema foi gerado pela própria Constituição em vigor, que travestiu um Tribunal do Poder Judiciário, que julga causas cíveis e criminais, de Corte Constitucional. Ao contrário da Constituição de 1967, a Carta Outubrina de 1988 arrematou ser função precípua do STF a guarda da Constituição (art. 102), como se os demais órgãos judicantes não devessem todos guardá-la de igual modo. Com isso, por vias transversas, muniu o Judiciário da autoridade para subjugar os demais poderes. Do tema se ocupou Dalmo Dallari[6]:
Eu proponho que o STF seja exclusivamente tribunal constitucional. Que ele não julgue ações civis, ações criminais. Que ele faça controle da constitucionalidade das Leis, das decisões judiciais, dos atos administrativos. Exatamente como existe na Alemanha. A Alemanha tem um tribunal constitucional que é respeitado no mundo inteiro. Um tribunal absolutamente independente, do mais alto nível. (...) O Tribunal Constitucional da Alemanha funciona numa cidade média, em Karlsruhe. Não funciona em Berlim. Não funciona ao lado do Parlamento, ao lado dos órgãos políticos. (...) E o tribunal está lá. Longe desta interferência, desta influência direta dos fatores políticos. Eu acho que isto também deveria ser feito no Brasil. O STF ser apenas constitucional e ser sediado fora de Brasília, longe dos órgãos políticos, Câmara dos Deputados, Senado, do Poder Executivo Federal. E além disto também revendo o seu processo de escolha dos ministros do STF.
A própria Constituição da República investiu o STF de uma autoridade excessiva, quebrando o equilíbrio e a harmonia entre os poderes. Valendo-se de uma metáfora, seria como se um pai, antes de viajar, escrevesse um conjunto de regras de conduta que deveriam ser observadas pelos três filhos gêmeos, durante a sua ausência. A primeira regra seria a harmonia e a concórdia entre eles, todos autônomos e capazes de exercer a autodeterminação. Todavia, uma dessas regras atribuiria a um dos filhos a prerrogativa de dar a última palavra acerca do alcance e significado das normas expressas nos escritos deixados pelo pai. Com efeito, a paridade deixaria de existir.
É desaconselhável que um órgão do Judiciário faça as vezes de uma Corte Constitucional. É o famoso mantra imortalizado por Nélson Hungria: “o Supremo tem apenas o privilégio de errar por último”. Cumpre indagar: errar sobre o quê? Sobre a Constituição, a mesma que delimita a autoridade dos demais poderes, razão pela qual é válido concluir que, em última análise, o Supremo Tribunal Federal arvorou-se na condição de Poder Moderador. Se A = B e B= C, logo, A = C. Se a Magna Carta estipula os limites jurídicos dos Poderes e se cabe ao STF extrair o significado do invólucro textual, a voz do STF comanda os Poderes da República.
Por que os demais poderes da República se prostram diante do STF? É preciso meditar a respeito, porque a questão se reveste de alta indagação. Se é possível levantar uma hipótese, certamente essa é uma delas: se cabe ao Tribunal atuar como Guardião da Constituição, desafiar o Supremo Tribunal Federal equivale ao mesmo que afrontar a Lei Maior. Infringir a Magna Carta de uma nação é tido como profano, porquanto atenta contra o que Konrad Hesse chamava de sentimento constitucional que
habita em uma sociedade.
Se o caráter híbrido do STF, per si, já é um mal, o que se dirá quando o Judiciário brasileiro desfruta de uma ampla discricionariedade para proferir suas decisões judiciais.
É o que passaremos a examinar.
2.3 Accountability Hermenêutico[7]
Todas as decisões judiciais devem ser motivadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX, CF/88). Em apreço ao princípio republicano, os agente públicos devem prestar contas dos seus atos e, no Judiciário, isso é feito na fundamentação. Esta, na pior das hipóteses, poderá ser concisa, jamais inexistente. É o que ocorre nas sentenças terminativas, isto é, que não examinam o mérito. Em tais decisões, o Código de Processo Civil admite a concisão, mas jamais a ausência de fundamentação (art. 165, CPC). Até mesmo nos Juizados Especiais, onde a celeridade e a informalidade dispensaram a feitura de relatório (art. 38, Lei n.º 9099/95), a fundamentação é exigida. Disso resulta a importância que se atribui à exposição de motivos em um julgado, única maneira de viabilizar a eventual interposição de um recurso e de exercer algum controle sobre a atividade judicial.
2.3.1 O Direito, quase sempre, será um instrumento legitimador da vontade do intérprete
O juiz, por ocasião da interpretação do Direito aplicável, deve extrair a norma do invólucro do texto. Aqui reside o perigo. Lamentavelmente, no Brasil, a exigência de fundamentação é um obstáculo facilmente contornável, pois não existe uma Teoria da Decisão que permita aferir objetivamente os resultados de uma lide posta em juízo. A hermenêutica constitucional, a seu turno, oferece um labirinto de possibilidades que permitem a qualquer magistrado decidir como lhe aprouver.
O vocábulo “sentença” provém da expressão em latim sentire[8], que designa o sentimento do julgador. Daí a expressão “a meu sentir”. Isso pode gerar equívocos, porque nenhum juízo tem o condão de proferir decisões lastreadas em sentimentos, ainda que a neutralidade seja um mito não reconhecido pelos processualistas. Segundo os estudiosos da Teoria do Processo, o julgador pode ser imparcial, mas jamais conseguirá ser neutro, pois carrega consigo suas experiências, visões de mundo, traumas, singularidades e outras marcas indeléveis. É o que Francis Bacon denominava de “ídolos da caverna”. Apesar disso, os juízes e Tribunais não devem decidir como gostariam que o Direito fosse, mas sim como o Direito efetivamente o é.
Infelizmente, alguns magistrados não possuem freios inibitórios e acabam proferindo decisões fundamentadas em uma convicção íntima de justiça, traduzindo uma tentativa de supostamente corrigir o Direito posto e substituí-lo por aquilo que consideram adequado. Um elucidativo exemplo pode ser extraído das palavras do Ministro Marco Aurélio, que ocupa uma das 11 cadeiras do STF, aparentemente influenciado pelos ensinamentos de Hans Kelsen:
Idealizo para o caso concreto a solução mais justa e posteriormente vou ao arcabouço normativo, vou à dogmática buscar o apoio. E como a interpretação é acima de tudo um ato de vontade, na maioria das vezes, encontro o indispensável apoio[9].
A declaração do Ministro traduz como uma seríssima confissão: para ele, as leis e os
institutos jurídicos são apenas um pretexto para legitimar a vontade do intérprete, que
possui uma opinião pré-concebida a respeito do caso que lhe é submetido. Sua sinceridade revelou o que já se afirmou alhures, isto é, que a doutrina, a jurisprudência e o ordenamento pátrios permitem ao julgador afirmar qualquer coisa sobre o que quiser. No exemplo do Ministro Marco Aurélio, basta justificar que valeu-se do método tópico problemático.
2.3.2 Quando outras fontes exógenas são invocadas para legitimar a vontade do intérprete
Todavia, embora isso seja raríssimo, nem sempre o Direito terá justificativas para legitimar a vontade do intérprete. Em casos mais graves, o Excelso Pretório chega a proferir decisões contra legem. A título ilustrativo, tome-se como exemplo a histórica decisão da mais alta Corte Brasileira que equiparou a união homossexual à união estável, na ADIn 4277[10]. Parece muito claro que os Ministros buscaram corrigir um ordenamento que lhes parecia injusto, sob o argumento (discutível) de que a Constituição é uma ordem concreta de valores. A Constituição é de clareza solar quando estipulou que “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (art. 226, §3º, CF/88). Homem é o portador de cromossomos XY, enquanto mulher é aquela portadora de cromossomos XX. A união entre eles recebeu proteção constitucional, não qualquer outra. Esta foi a decisão dos nossos ancestrais e sua força normativa merecia ser respeitada, pelo menos, até que fosse modificada por quem de Direito. Se a norma é injusta ou atrasada, o caminho democrático é muito simples: emendar a Constituição, afinal, não se trata de uma cláusula pétrea. No momento em que um juiz contraria o texto constitucional, ainda que com o escopo de tornar a lei mais justa, está substituindo o legislador, o que faz tremer no túmulo Montesquieu. Pertinentes são as palavras do jurista Lenio Streck, que parece ter abordado o tema na sua completude[11]:
Um bom exemplo do tipo corriqueiro de ativismo judicial que permeia o imaginário dos juristas brasileiros pode ser extraído da (...) ADPF n. 178. (...) A ação pretendia, inicialmente, que fosse reconhecida e colmatada a pretensa omissão do Poder Legislativo em regulamentar os direitos dos casais homossexuais, muito embora a própria Constituição, no seu art. 226, §3º, aponte para outra direção (...) A perplexidade que surge deve-se à seguinte questão: de que modo poderia haver a referida omissão se a própria Constituição determina que é dever do Estado proteger a união entre o homem e a mulher? Onde estaria a omissão, já que é um comando constitucional que determina que a ação do Estado seja no sentido de proteger a união entre homem e mulher? Note-se: não podemos falar em hierarquia entre normas constitucionais, caso contrário, estaríamos aceitando a tese de
Otto Bachof a respeito da possibilidade de existência de normas constitucionais inconstitucionais. O mais incrível é que a referida ADPF também pretende anular as várias decisões que cumpriram literalmente o referido comando constitucional. Trata-se, pois, de um hiper-ativismo.
De plano, salta aos olhos a seguinte questão: a efetivação de uma medida desse jaez importa(ria) transformar o Tribunal em um órgão com poderes permanentes de alteração da Constituição, estando a afirmar uma espécie caduca de Verfassungswandlung, que funcionaria, na verdade, como um verdadeiro processo de Verfassungsänderung, reservado ao espaço do Poder Constituinte derivado pela via do
processo de emenda constitucional.
Na correta análise de Streck, a norma constitucional do art. 226, §3º é originária e, como tal, ilimitada juridicamente. Inexistindo hierarquia entre as normas da Constituição, à luz do princípio da unidade, é de se reconhecer o seu teor e a sua vigência. Não se pode reputá-la ilegítima, como se pudesse haver uma norma constitucional (originária) inconstitucional. A Tese de Otto Bachof não é acolhida entre nós. O pretexto para invadir a seara do legislador foi o de que este haveria faltado com o seu dever de legislar. Ora, como bem disse o jurista do Rio Grande do Sul, não havia inércia ou mora do Congresso Nacional na sua atividade típica de legislar. Pelo contrário, a norma foi feita em 05/10/1988 e repetida no Código Civil de 2002. Diante do fracasso em encontrar no Direito subsídios jurídicos para esta pretensão, como declarou (e confessou) fazer o Ministro Marco Aurélio, só resta buscar outras fontes alternativas como a moral, a política, a economia etc. No caso em estudo, o STF foi inspirar-se na moral e na sociologia. Esse aspecto também não passou a cavaleiro da crítica de Lenio Streck:
Os argumentos que compuseram a teia discursiva presente nos votos são, na sua grande maioria, sociológicos e/ou de moral. O enfrentamento da questão jurídica principal – qual seja, da legitimidade de a jurisdição constitucional se substituir ao poder constituinte derivado, alterando o texto da constituição – foi evitado pela maioria dos ministros, que se limitaram a afirmar que a ideia de contenção do judiciário, em um caso como esse, representava uma “visão obliqua” (sic) das funções do judiciário no direito moderno, como consignou o Min. Marco Aurélio, em aparte ao voto do Min. Gilmar Mendes.
Apenas para ilustrar o que aqui está sendo dito, é importante consignar que, no voto do relator, por exemplo, está dito que “o órgão sexual é um plus, um bônus, um regalo da natureza. Não é um ônus, um peso, um estorvo, menos ainda uma reprimenda dos Deuses”. Em voto de outro Ministro, lê-se que “a homossexualidade é traço da personalidade, não é crença, ideologia ou opção de vida”. Por esses exemplos, é possível visualizar que o julgamento destas ações foram determinados, muito mais, pelo entendimento pessoal – daí a questão do solipsismo – de cada ministro acerca da matéria, do que por uma interpretação técnica da Constituição. Daí a pergunta recorrente: pode a interpretação do direito depender de opiniões (escolhas) de caráter pessoal?
2.3.3 Natureza alográfica do Direito: a necessidade de um Hermes como mensageiro dos Deuses
Eis o problema. À semelhança de determinadas artes, como, por exemplo, uma peça de teatro ou uma partitura musical, que dependem da intermediação de um elenco de atores ou de uma filarmônica para serem esteticamente compreendidas, o Direito é alográfico. Demanda, pois, a presença de um intérprete para prospectar a norma alojada no texto, como se fosse Hermes, que, na mitologia grega, decodificava a mensagem dos Deuses. Nisso reside o perigo, porque o intermediador pode assenhorear-se do significado. É o raciocínio ensinado pelo Ministro Eros Grau, para quem “os enunciados nada dizem, eles dizem o que os intérpretes dizem que eles dizem”.[12] Infere-se que as leis, em maior ou menor grau, possuem sempre um campo de discricionariedade advindo da subsunção dos fatos ao arquétipo abstratamente previsto no texto legal. É o que percebeu Kelsen, quando utilizou a metáfora da moldura da norma, e Dworkin, nos chamados hard cases. E a discricionariedade, insofismavelmente, é terreno fértil para frutificar a arbitrariedade.
O hermeneuta está munido de inúmeras ferramentas para sacramentar a sua vontade ou o seu íntimo sentimento do que lhe parece justo, mesmo que sua singular visão de justiça não encontre eco nas leis democraticamente elaboradas pelos mandatários do povo. Basta afastar a aplicação dessas leis e há diversas formas de fazê-lo, senão vejamos.
Suponhamos, por hipótese, que o STF arbitrariamente não queira aplicar determinada lei em um caso que lhe é submetido. Para tanto, poderá valer-se do controle difuso de constitucionalidade. Perceba-se que, mesmo não havendo clara agressão dessa lei a qualquer dispositivo constitucional, é possível alegar que a norma paradigma é o misteriosíssimo princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade ou mesmo da dignidade humana, postulados de textura aberta que justificariam fulminar de invalidade qualquer norma do ordenamento. Quase sempre, lançar mão do controle incidental será suficiente para atender ao capricho do Tribunal. Se o controle difuso não se prestar a esse desiderato, outra opção será uma declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, excluindo uma via hermenêutica que supostamente esteja em rota de colisão com a Constituição. Poderá, ainda, valer-se dos tradicionais métodos de solução de antinomias (hierárquico, cronológico e da especialidade). Se nada disso for convincente, certamente o STF fará uso da Teoria da Ponderação de Robert Alexy ou mesmo uma importação da jurisprudência de valores do Bundesverfassungsgericht. Como se vê, não faltam mecanismos para que o STF se assenhore de uma legislação democraticamente elaborada, ditando, ao seu alvedrio, quando (e como) uma lei incidirá no suporte fático.
Em todas as situações acima, operou-se o accountability hermenêutico, ou seja, a prestação de contas foi realizada e, se alguém apontar obscuridade, cabem embargos de declaração. Subsistindo nebulosidade, paciência, o STF tem a prerrogativa de dar a última palavra.
A segurança jurídica reclama que uma lei existente, em favor da qual milita uma presunção de constitucionalidade, seja aplicada ao fato por ela normatizado. Esta é a regra, embora muitos julgados a tenham convolado em exceção. Em um regime democrático, como regra, o indivíduo tem o direito fundamental à aplicação das leis.
2.4. Princípio da proporcionalidade: a katchanga real[13]
George Marmelstein relata uma curiosa anedota que, embora não possua teor jurídico, parece retratar perfeitamente a técnica utilizada em muitas decisões judiciais. Ei-la:
Um rico senhor chega a um cassino e senta-se sozinho(...) O dono do cassino, percebendo que aquela seria uma ótima oportunidade de tirar um pouco do dinheiro do homem rico, perguntou se ele não desejaria jogar.
Temos roleta, black jack, texas holden e o que mais lhe interessar, disse o dono do Cassino. Nada disso me interessa, respondeu o cliente. Só jogo a Katchanga.
O dono do cassino perguntou para todos os crupiês lá presentes se algum deles conhecia a tal da Katchanga. Nada. Ninguém sabia que diabo de jogo era aquele. Então, o dono do cassino teve uma idéia. Disse para os melhores crupiês jogarem a tal da Katchanga com o cliente mesmo sem conhecer as regras para tentar entender o jogo e assim que eles dominassem as técnicas básicas, tentariam extrair o máximo de dinheiro possível daquele “pote do ouro”. E assim foi feito.
Na primeira mão, o cliente deu as cartas e, do nada, gritou: “Katchanga!” E levou todo o dinheiro que estava na mesa. Na segunda mão, a mesma coisa. Katchanga! E novamente o cliente limpou a mesa. Assim foi durante a noite toda. (...)
De repente, um dos crupiês teve uma idéia. Seria mais rápido do que o homem rico. Assim que as cartas foram distribuídas, o crupiê rapidamente gritou com ar de superioridade: “Katchanga!” Já ia pegar o dinheiro da mesa quando o homem rico, com uma voz mansa mas segura, disse: “Espere aí. Eu tenho uma Katchanga Real!”. E mais uma vez levou todo o dinheiro da mesa.
Fácil é perceber que, entre nós, o princípio da proporcionalidade tem sido utilizado como uma “katchanga real”. Como bem observou Marcelo Neves, no Brasil, “... tanto os advogados idealistas quanto os astutamente estratégicos souberam utilizar-se exitosamente da pompa dos princípios e da ponderação, cuja trivialização emprestava a qualquer tese, mesmo as mais absurdas, um tom de respeitabilidade[14]”. Contudo, os advogado não são os únicos a manejar o princípio da proporcionalidade. Juízes e Tribunais têm abusado desse artifício, como um meio de fundamentar suas decisões despidas de respaldo jurídico.
Como é cediço, a aplicação do princípio da proporcionalidade tem como objetivo sindicar atos estatais que restrinjam direitos fundamentais, vale dizer, visa a impor restrições a essas restrições. Para tanto, o hermeneuta deva percorrer um itinerário.
Necessariamente deve passar por três etapas que são tidas como sub-princípios:
a) Adequação;
b) Necessidade e
c) Proporcionalidade em sentido estrito.
Um ato estatal restritivo de direitos fundamentais, quer provenha do Executivo, quer provenha do Legislativo, só poderá ser reputado proporcional se, com a sua utilização, o resultado pretendido pela medida estatal seja alcançado ou fomentado (adequação); o meio eleito pelo Poder Público seja o menos oneroso (e tão eficaz quanto as medidas alternativas) para o titular do direito sacrificado (necessidade) e, por fim, o sopesamento entre os direitos em jogo permita concluir que deva prevalecer a medida em apreço (proporcionalidade em sentido estrito).
A fundamentação de uma decisão judicial deveria perquirir cada um dos elementos sobreditos. Somente assim, atende-se-ia ao que Lenio Streck denominou de fundamentação da fundamentação. Como era de se esperar, o STF tem se poupado de
explicitar todas essas etapas. É o que denuncia Virgílio Afonso da Silva, a saber[15]:
A invocação da proporcionalidade é, não raramente, um mero recurso a um topos, com caráter meramente retórico, e não sistemático. Em inúmeras decisões, sempre que se queira afastar alguma conduta considerada abusiva, recorre-se à fórmula "à luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, o ato deve ser considerado inconstitucional" (...)
Apesar de salientar a importância da proporcionalidade "para o deslinde constitucional da colisão de direitos fundamentais", o Tribunal não parece disposto a aplicá-la de forma estruturada, limitando-se a citá-la. (...) Não é feita nenhuma referência a algum processo racional e estruturado de controle da proporcionalidade do ato questionado, nem mesmo um real cotejo entre os fins almejados e os meios utilizados. O raciocínio aplicado costuma ser muito mais simplista e mecânico.
Resumidamente:
. a constituição consagra a regra da proporcionalidade.
. o ato questionado não respeita essa exigência.
. o ato questionado é inconstitucional.
A pobreza de fundamentação do STF é vislumbrada no julgamento da ADIn 855-2, onde foi aquilatada a proporcionalidade da Lei 10248/93 do Estado do Paraná. O aludido diploma obrigou que os botijões de gás fossem pesados na presença do consumidor, como forma de protegê-lo. A decisão limitou-se a mencionar o princípio, não enfrentando quaisquer de seus elementos. Katchanga!
2.5 Princípio da dignidade humana: um cheque em branco
O princípio da dignidade da pessoa humana, que fundamenta a República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF/88), não foi devidamente densificado pelo texto constitucional, traduzindo verdadeira cláusula geral. Cuida-se de um cheque em branco a ser preenchido pelo STF ou, na linguagem de Kelsen, de uma enorme moldura dentro da qual poderá deslizar o arbítrio do hermeneuta para enquadrar inúmeros suportes fáticos.
Mais uma vez, exemplos não faltam na jurisprudência do STF. Em célebre caso lembrado por Marcelo Neves, o Ministro Antonio Cezar Peluso declarou a inconstitucionalidade de lei estadual autorizadora da briga de galo à luz da dignidade da pessoa humana[16]. Ora, nenhum ser humano é mais ou menos digno se galos são submetidos a práticas crudelíssimas e sádicas. Vê-se a má fundamentação do julgado, que poderia encontrar supedâneo em dispositivos mais pertinentes da Constituição, mormente os que protegem o meio-ambiente.
A dignidade humana pode ser invocada para reconhecer o abortamento de fetos anencefálicos ou para não acolher essa prática; para declarar o direito a uma Marcha da
Maconha ou mesmo para repudiá-la; para admitir a eutanásia como uma prática criminalmente atípica ou para entendê-la como um delito.
3. Conclusão
Em apreço à democracia e à segurança jurídica, impõe-se a alteração do mecanismo de escolha dos Ministros do STF. Hoje, trata-se de verdadeira hipótese de eleição indireta, na medida em que os eleitores elegem o presidente da república e os senadores, para que estes venham a escolher quem investirão no cargo de Ministro do STF[17]. A transferência de suas competências de índole não constitucional para o STJ é medida salutar, como fez, em parte, a EC 45/04. Com isso, somente questões genuinamente constitucionais serão decididas pela Corte. A fixação de mandatos para os Ministros, como sucede na Corte norte americana, também é digna de consideração.
A criação de uma Teoria da Decisão, nos moldes propostos por Lenio Streck, também é medida de rigor. Desse modo, reduz-se a discricionariedade e, por conseguinte, a arbitrariedade. A importação acrítica da jurisprudência de valores da Corte alemã, mixada com as ponderações de Alexy, tem gerado uma verdadeira juristocracia.
Mecanismos jurídicos do Direito Comparado podem amenizar essa indesejada hipertrofia do Judiciário. Dentre eles, a Constituição do Canadá previu a notwishtstanding clause (cláusula não obstante), pela qual o Legislativo poderia aplicar determinada norma, ainda que em desarmonia com a Constituição[18]. Em Israel, possibilita-se ao Parlamento (Knesset), desde que por um consenso maior (maioria absoluta), editar uma lei que contrarie a basic law. Ambas são formas de combater o ativismo judicial, tão caro a um país que se pretende governado pelo povo e para o povo.
Em boa verdade, embora não existam dons premonitórios, é possível antever as tendências jurídicas vindouras da humanidade. Esta tem evoluído de maneira pendular, em um senóide. Após a revolução francesa, a desconfiança nos juízes transformaram os julgadores em bocas da lei (la bouche de la loi), na Escola da Exegese. A impossibilidade de utilizar os métodos tradicionais de hermenêutica para as constituições escritas do ocidente, após a II Guerra Mundial, fez eclodir o neoconstitucionalismo, de modo a reconhecer a normatividade dos princípios e a Constituição como uma ordem concreta de valores. Aparentemente, os abusos desta concepção fazem nascer a necessidade de se restaurar a segurança jurídica, aproximando-se novamente do positivismo jurídico.
No futuro, o Supremo Tribunal Federal não olhará com bons olhos para a postura deste Supremo Tribunal Federal, cujos Ministros se comportam como Hermes, ou seja, mensageiros dos Deuses.
É no que se aposta.
REFERÊNCIAS
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FIGGIS, J. N. e Laurence, R. V. Historical Essays and Studies, London: Macmillan, 1907.
GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. Malheiros. 3 ed. 2005.
MARMELSTEIN, George. “Alexy à Brasileira ou a Teoria da Katchanga”, extraído do blog Direitos Fundamentais do próprio autor.
NEVES, Marcelo. “Abuso de princípios pelo STF”, Observatório Constitucional, CONJUR, 27 de outubro de 2012.
STRECK, Lenio. “As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis”, publicado na Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, Vol. 10, jul/dez. 2011.
STRECK, Lenio. “Quanto vale o Narcisismo Judicial? Um centavo?”, publicado em sua coluna no CONJUR, em 17/05/2012
[1] Figgis, J. N. e Laurence, R. V. Historical Essays and Studies, London: Macmillan, 1907.
[2] A PEC 3/2011, se vier a ser aprovada, permitirá ao Legislativo sustar atos exorbitantes do Judiciário.
[3] ADIn 3367-1.
[4] A propósito, o CNJ está sediado no anexo I do STF, na Praça dos Três Poderes. Situa-se, pois, nas entranhas do Tribunal.
[5] A Lição do Conselho Constitucional da França, artigo publicado na Folha de São Paulo (17/05/2011).
[6] Entrevista concedida a Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania, em 09 de dezembro de 2013.
[7] Expressão utilizada por Lenio Streck, por exemplo, no artigo “Quanto vale o Narcisismo Judicial? Um
centavo?”, publicado em sua coluna no CONJUR, em 17/05/2012.
[8] Sentire: palavra latina que significa sentir, sentimento, cf. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. 2. ed. 1986, 17ª Impressão, p. 715
[9] Trecho do discurso proferido pelo Ministro no dia 17 de junho de 2010, durante uma solenidade para
homenageá-lo pelos vinte anos no Supremo Tribunal Federal.
[10] A referida ADIn é fruto de uma conversão da ADPF 178, lembrando-se que há fungibilidade entre elas.
[11] “As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis”, publicado na Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, Vol. 10, jul/dez. 2011. P. 15 a 17.
[12] Grau, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. Malheiros. 3 ed. 2005. P.48
[13] “Alexy à Brasileira ou a Teoria da Katchanga”, extraído do blog Direitos Fundamentais de George Marmelstein Lima
[14] “Abuso de princípios pelo STF”, Observatório Constitucional, CONJUR, 27 de outubro de 2012.
[15] “O proporcional e o razoável”, Revista dos Tribunais, 798 (2002), p. 32
[16] ADIn 1856/RJ: “A briga de galo ofende [...] a dignidade da pessoa humana porque, na verdade, ela implica de certo modo um estímulo às pulsões mais primitivas e irracionais do ser humano [...]. A proibição também deita raiz nas proibições de todas as práticas que promovem, estimulam e incentivam essas coisas que diminuem o ser humano como tal e ofende, portanto, a proteção constitucional, a dignidade do ser humano.”
[17] A aprovação no Senado de um pretenso Ministro do STF (art. 52, III, “a”) representa a última hipótese
de deliberação em escrutínio secreto que ainda subsiste no texto constitucional, após o advento da EC 76/2013.
[18] Seção 33, Carta de Direitos Canadense de 1982.
Defensor Público do Estado do Acre, Professor de Direito Constitucional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FONTELES, Samuel Sales. A influência de Hermes, deus da mitologia grega, sobre o Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 set 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40832/a-influencia-de-hermes-deus-da-mitologia-grega-sobre-o-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
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