O objetivo deste artigo é apontar a hermenêutica filosófica contemporânea como teoria da interpretação em geral e demonstrar sua influência na interpretação do Direito.
Em primeiro lugar, adotar-se-á uma definição de hermenêutica adequada para o estudo. Na sequência, será explorada a visão de alguns autores sobre a teoria da interpretação, entrelaçada com a prática da interpretação do Direito.
Hermenêutica
O vocábulo “hermenêutica” é utilizado, geralmente, em duas acepções: como sinônimo de interpretação e como teoria da interpretação.
Carlos MAXIMILIANO (1999, p. 1) manifesta sua repugnância pela primeira aplicação:
Do exposto ressalta o erro dos que pretendem substituir uma palavra pela outra; almejam, ao invés de Hermenêutica, - Interpretação. Esta é aplicação daquela; a primeira descobre e fixa os princípios que regem a segunda. A hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar.
Neste texto, seguiremos seu magistério, lançando mão do termo “hermenêutica” para se referir à teoria da interpretação, e não à interpretação em si.
Hermenêutica e Direito
Interpretar, como o senso comum já denuncia, significa extrair sentido de algo. A interpretação do Direito é um processo dinâmico: “é, ao mesmo tempo, um processo voltado para a determinação do conteúdo e do sentido da norma jurídica com relação a um suposto de fato, e o resultado desse processo” (DINIZ, 1998, p. 232).
A interpretação preenche o espaço existente entre o intérprete e o interpretado, agindo como meio condutor – e não isolante – na sucessão da atividade do conhecimento. O intérprete atua sobre o objeto, mas o objeto também atua sobre o intérprete.
A importância da interpretação é inequívoca e não precisa ser demonstrada pelo simples fato de sua ligação inseparável a qualquer apreensão de sentido. Ainda mais se o exercício interpretativo se desenvolve no campo do saber jurídico: “Toda lei é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos se não verificarem, com esmero, o sentido e o alcance das suas prescrições” (MAXIMILIANO, 1999, p. 9-10).
A hermenêutica – teoria da interpretação – jurídica desenvolveu-se com o fim de organizar racionalmente o processo de interpretação e aplicação do Direito. A seguir, veremos os caminhos traçados pela hermenêutica filosófica contemporânea, capitaneada por Hans-Georg Gadamer, naquilo que interessa à hermenêutica jurídica em seu estágio atual.
Interessante roteiro para um estudo da hermenêutica são as duas faces propostas por Christine O. P. da SILVA, (2001, p. 126): como se dá a compreensão e qual a relação entre o sujeito que interpreta e o objeto interpretado; e a busca do(s) método(s) que viabilize(m) a tarefa de interpretar.
Quanto ao primeiro aspecto, Hans-Georg Gadamer inaugura nova fase na Hermenêutica, completando o caminho iniciado por Schleiermacher, Dilthey e Heidegger[i], ao trazer à tona o estudo da experiência humana e sua inserção no mundo como determinantes da compreensão. O foco direciona-se para o exame das condições em que ela ocorre. Explica Christine O. P. da SILVA (2001, p. 135):
Assim, a partir do século XIX, a hermenêutica sofreu o que ficou conhecido como ‘giro hermenêutico’: no lugar de investigações em torno do método mais seguro para que se pudesse obter sucesso no conhecimento, a atividade hermenêutica passou a investigar o que efetivamente acontece em todo o processo de compreensão humana, numa perspectiva assumidamente fenomenológica.
Presenciou-se uma mudança na antiga visão da dicotomia sujeito/objeto do conhecimento científico: da separação estanque entre o sujeito que interpreta e o objeto interpretado, que seria inerte, passivo, passa-se à acepção de uma influência recíproca, permeada pela historicidade.[ii]
Na definição do homem pela existência, Martin Heidegger instituiu o conceito do Dasein (“ser aí”), aproveitado por Gadamer, que, simplificadamente, pode-se explicar pela possibilidade da descoberta do ser pela sua própria presença (GADAMER, 2003, p. 347), a forma como ocorre no mundo, como se manifesta: “o Dasein já é sempre e constitutivamente relação com o mundo, antes de toda a distinção artificial entre sujeito e objeto” (STRECK, 2000, p. 180).[iii]
Por estarmos no mundo e pela nossa natureza humana resulta que compreender é uma estrutura do homem e do Dasein, um desdobrar das próprias possibilidades. “Toda compreensão, assim, é uma autocompreensão e quem compreende projeta possibilidades de si mesmo” (DINIZ, 1998, p. 219).
Em razão do seu existir, quem compreende tem uma prévia compreensão das coisas, ou uma perspectiva de sentido (LARENZ, 1997, p. 288). Essa pré-compreensão ou tradição, como diz GADAMER (2003, p. 497), se propaga por meio da linguagem. O que é transmitido mostra novos aspectos significativos em face da continuação histórica. “Toda atualização na compreensão pode entender a si mesma como uma possibilidade histórica do compreendido” (STRECK, 2000, p. 192).
Já afirmava LARENZ (1997, p. 443) que “toda a interpretação da lei está, até certo ponto, condicionada pela época”. O intérprete é um ser histórico, imerso na sua realidade (consciência histórica):
Como se apresenta a seu intérprete, o verdadeiro sentido de um texto não depende do aspecto puramente ocasional representado pelo autor e seu público originário. Ou pelo menos não se esgota nisso, pois sempre é determinado também pela situação histórica do intérprete e consequentemente por todo curso objetivo da história (GADAMER, 2003, p. 392).
Para Gadamer, “o compreender é histórico porque históricos são a existência do homem e o mundo que o circunda” (SILVA, 2001, p. 139).
De sua situação pontual no tempo, decorre que o processo de compreensão está vinculado ao passado, presente e, também, futuro (historicidade): “o passado é compreensível por sua efetividade contrastada com o presente e sua faticidade presente o converte em veículo de uma compreensão projetada para o futuro” (DINIZ, 1998, p. 219). A construção do entendimento ocorre por meio de um processo dialético envolvendo o passado e o presente, que se renova a cada interpretação. Uma interpretação nunca é definitiva, porque as relações da vida, sempre mutáveis, criam novas questões relevantes para o aplicador do Direito (LARENZ, 1997, p. 443).
Em ambos os casos [hermenêutica jurídica e teológica] isso implica que, se quisermos compreender adequadamente o texto - lei ou mensagem de salvação -, isto é, compreendê-lo de acordo com as pretensões que o mesmo apresenta, devemos compreendê-lo a cada instante, ou seja, compreendê-lo em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta. Aqui, compreender é sempre também aplicar (GADAMER, 2003, p. 408).
Assim, dá-se a “fusão de horizontes”[iv]: o horizonte da experiência derivada do momento histórico em que o texto da norma a ser interpretada foi escrito e o da experiência de que faz parte o intérprete. “O objetivo da interpretação é uni-los” (DINIZ, 1998, p. 219).
A fusão dos horizontes, como trabalha os horizontes históricos presente e passado, sob a força da tradição transmitida pela linguagem, determina o caráter produtivo, criativo, construtivo da interpretação. Em decorrência da “consciência histórico-efeitual” (STRECK, 2000, p. 194), o intérprete adiciona sentido ao texto interpretado, o que implica a produção de um novo. A interpretação da lei é uma tarefa criativa (COELHO, 2003, p. 23).
Conclusão
A hermenêutica filosófica de Gadamer debruçou-se sobre as condições em que ocorre a compreensão: a experiência existencial do homem e sua inserção histórica no mundo. Superou-se a prévia visão separatista entre o sujeito que interpreta e o objeto interpretado. Este evoluiu de uma suposta natureza inerte e foi erguido à nobreza pelo reconhecimento de sua influência sobre o intérprete.
O Direito é um objeto cultural, gerido pelo homem, a quem cabe interpretá-lo. O juiz é, antes de tudo, um ser humano, que está inserido no mundo, preso a sua realidade histórica, pois dela não se pode desvencilhar. O compreender é histórico porque o mundo e a existência do homem também o são.
Os novos ditames da hermenêutica filosófica ecoaram na hermenêutica jurídica, antes voltada à formulação de regras para uma atividade interpretativa que se exauria na plenitude do ordenamento jurídico, pela simples subsunção dos fatos às normas. O sentido da norma não é mais descoberto, mas construído pela interpretação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 2ª ed. Porto Alegre: Fabris, 2003.
DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Constituição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 1998.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. vol. 1. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999.
SILVA, Christine Oliveira Peter da. Hermenêutica de direitos fundamentais: uma proposta constitucionalmente adequada. Brasília, 2001. 267 f. Dissertação (Mestrado em Direito e Estado) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
NOTAS:
[i] “Se Schleiermacher havia liberado a hermenêutica de suas amarras com a leitura bíblica, e Dilthey, da dependência das ciências naturais, Gadamer pretende liberar a hermenêutica da alienação estética e histórica, para estudá-la em seu elemento puro de experiência da existência humana. E Heidegger será o corifeo dessa postura que se caracterizará por explicar a compreensão como forma de definir o Dasein (ser-aí).” (STRECK, 2000, p. 177)
[ii] “Mas o que importa agora, naturalmente, é compreender corretamente essa reiterada constatação. Essa constatação não significa uma mera ‘homogeneidade’ entre conhecedor e conhecido, sobre a qual poderíamos alicerçar a especificidade da transposição psíquica como ‘método’ das ciências do espírito. Nesse caso a hermenêutica histórica tornar-se-ia uma parte da psicologia (como pensava de fato Dilthey). Na verdade, a adequação de todo conhecedor ao conhecido não se baseia no fato de que ambos possuam o mesmo modo de ser, mas que recebam seu sentido da especificidade do modo de ser que é comum a ambos. E esta característica consiste em que nem o conhecedor nem o conhecido estão simplesmente dados ‘onticamente’. Eles se dão ‘historicamente’, isto é, possuem o modo de ser da historicidade” (GADAMER, 2003, p. 350).
[iii] Outra contribuição de Heidegger foi a instituição do “círculo hermenêutico”: “Por tal, dizendo de modo simplificado, pretende expressar-se o seguinte: uma vez que o significado das palavras em cada caso só pode inferir-se da conexão de sentido do texto e este, por sua vez, em última análise, apenas do significado - que aqui seja pertinente - das palavras que o formam e da combinação de palavras, então terá o intérprete - e, em geral, todo aquele que queira compreender um texto coerente ou um discurso - de, em relação a cada palavra, tomar em perspectiva previamente o sentido da frase por ele esperado e o sentido do texto no seu conjunto; e a partir daí, sempre que surjam dúvidas, retroceder ao significado da palavra primeiramente aceite e, conforme o caso, rectificar este ou a sua ulterior compreensão do texto, tanto quanto seja preciso, de modo a resultar uma concordância sem falhas” (LARENZ, 1997, p. 286).
[iv] “Todo presente finito tem seus limites. Nós definimos o conceito de situação justamente por sua característica de representar uma posição que limita as possibilidades de ver. Ao conceito de situação pertence essencialmente, então, o conceito do horizonte. Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que pode ser visto a partir de um determinado ponto” (GADAMER, 2003, p. 399).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Rodrigo Bezerra. Perspectiva jurídica da hermenêutica filosófica contemporânea Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 set 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40882/perspectiva-juridica-da-hermeneutica-filosofica-contemporanea. Acesso em: 22 nov 2024.
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