Resumo: Nesse artigo se discute a fórmula de reajuste aplicada pelas administradoras de planos de saúde aos denominados “contratos coletivos por adesão”, sob a ótica da boa-fé objetiva contratual e das regras do direito consumerista.
Palavras-chaves: Direito do consumidor. Planos de saúde. Contratos coletivos por adesão. Reajustes.
Sumário: Introdução. 1. Regras utilizadas pelas administradoras dos planos de saúde aos contratos coletivos por adesão. 2. Posicionamento legal e jurisprudencial sobre o tema. 3. Conclusão. 4. Referências.
INTRODUÇÃO
Questão tormentosa que vem frequentando os tribunais e que afeta milhares de brasileiros que, órfãos de um sistema de saúde de qualidade que deveria ser prestado gratuitamente pelo Estado, se veem diante da imperiosa necessidade de contratar e manter um plano de saúde, diz respeito aos reajustes aplicados aos denominados “planos de saúde coletivos por adesão”, que é a modalidade de contrato voltada para os profissionais que estão ligados a uma entidade de classe, sindicado ou associação.
Veremos aqui se há limites para esses reajustes, ou se eles podem ser fixados unilateralmente e sem qualquer parâmetro normativo pelas administradoras de planos de saúde.
1. REGRAS UTILIZADAS PELAS ADMINISTRADORAS DOS PLANOS DE SAÚDE AOS CONTRATOS COLETIVOS POR ADESÃO
Não obstante haver a interveniência de um terceiro (sindicatos, centrais sindicais e respectivas federações e confederações, associações profissionais legalmente constituídas, ou, ainda, cooperativas), o liame mantido entre o usuário que adere ao plano e a administradora, nitidamente se trata de uma relação consumerista, eis que o aderente utiliza o serviço como destinatário final[1] bem como que os contratos de seguro de saúde são regidos pelas regras de defesa do consumidor, tal como previsto no parágrafo 2º do artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor[2].
Segundo defendem as administradoras de plano de saúde, essa espécie de contrato não é regida pelas regras de reajustes determinadas pela Agência Nacional de Saúde – ANS a qual fixa, anualmente, através de Resoluções Normativas, o percentual máximo a ser aplicado aos reajustes dos planos de saúde. Defendem e aplicam, sob essa premissa, reajustes sem limites e de forma unilateral, sem nenhum parâmetro plausível que os justifiquem, mediante a simples aplicação da fórmula denominada transferência dos valores de aumento de custos.
2. POSICIONAMENTO LEGAL E JURISPRUDENCIAL SOBRE O TEMA
Fosse essa relação contratual regida exclusivamente pelas normas comerciais e civis, ainda assim, caberia a observância à determinação legal da boa-fé objetiva na contratação e execução dos contratos, conforme preconiza o Art. 422 do CC:
Art. 422: Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
E é também do Código Civil (Art. 421) a norma cogente de observância à função social do contrato, resguardando, sobremaneira, o equilíbrio contratual:
Art. 421: A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
Ou seja, o pacta sunt servanda, que durante tanto tempo reinou quase que absoluto na seara contratual, foi mitigado pela necessidade de atendimento à função social do contrato. Portanto, é ululante que qualquer cláusula contratual que relegue a apenas uma das partes o absoluto e exclusivo poder de reajustar o valor do contrato, sem qualquer parâmetro, índice oficial ou limite, ofende a boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual, posto que coloca a outra parte contratante em injustificável submissão unilateral; razão pela qual a referida cláusula é nula de pleno direito.
Em se tratando de relação de consumo (como é o caso) as normas de ordem pública são mais restritivas ainda, em razão, inclusive, de ser uma das partes considerada hipossuficiente. Vejamos.
Prevê o Art. 6º do CDC:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
E o Código de Defesa do Consumidor continua no Art. 51 a elencar de forma exemplificativa o que se deve entender por ‘cláusulas abusivas’, determinando sua nulidade de pleno direito, ou seja, com efeitos ‘ex tunc’:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;
XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;
§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
Dispensa maiores análises constatar que proceder a reajustes de forma unilateral, sem qualquer índice ou parâmetro oficial, é uma vantagem exagerada praticada pelas administradoras de plano de saúde, que coloca o consumidor em desvantagem excessiva e que se classifica em uma cláusula abusiva, portanto, nula de pleno direito.
E essa prática das administradoras de plano de saúde, de aplicar em planos de saúde coletivos reajustes abusivos e sem nenhum limite ou parâmetro legal, levou a jurisprudência a firmar o entendimento de que aos “planos coletivos por adesão” devem ser aplicados os mesmos percentuais de reajustes fixados pela ANS aos “planos individuais”, até mesmo porque as administradoras de plano de saúde, diante dessa alternativa de reajuste sem limite, tem se negado a contratar planos individuais, não deixando ao consumidor outra via de contratação que não a de contratos coletivos por adesão com cláusulas leoninas; fato notório vastamente noticiado pela imprensa[3] (nota).
Trazemos a baila pequeno mostruário da farta e remansosa Jurisprudência, que adota esse entendimento:
“AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL. PLANO DE SAÚDE. INCIDÊNCIA DO CDC. POSSIBILIDADE. REAJUSTE ABUSIVO CONFIGURADO. MATÉRIA JÁ PACIFICADA NESTA CORTE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 83.
I - A variação unilateral de mensalidades, pela transferência dos valores de aumento de custos, enseja o enriquecimento sem causa da empresa prestadora de serviços de saúde, criando uma situação de desequilíbrio na relação contratual, ferindo o princípio da igualdade entre partes. O reajuste da contribuição mensal do plano de saúde em percentual exorbitante e sem respaldo contratual, deixado ao arbítrio exclusivo da parte hipersuficiente, merece ser taxado de abusivo e ilegal. Incidência da Súmula 83/STJ. Agravo improvido.”. (STJ, AgRg no Ag 1131324/MG, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/05/2009, DJe 03/06/2009).
“PLANO DE SAÚDE COLETIVO. REAJUSTE DE MENSALIDADE POR AUMENTO DE SINISTRALIDADE. NECESSIDADE DE REEQUILÍBRIO CONTRATUAL. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO EFETIVA. REAJUSTE ABUSIVO. SENTENÇA MANTIDA.
1. Contrato de plano de saúde coletivo firmado com a ré. Aumento das mensalidades com base na necessidade de reequilíbrio do contrato. Ausência de comprovação. A ré não juntou nenhuma planilha ou outro documento para comprovar suas alegações.
2. Mensalidade do plano de saúde aumentada indevidamente. Conduta abusiva da ré. Sinistralidade que deve ser objetiva e adequadamente comprovada. Precedentes do Tribunal. Ilegalidade. Procedência do pedido mantida. Recurso não provido” (TJSP; Apelação n. 0066132-87.2010.8.26.0002; 10ª Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Carlos Alberto Garbi; j. 25.06.2013).
3. CONCLUSÃO
Portanto, está claro que à luz da Lei e da Jurisprudência pátria, os reajustes unilaterais perpetrados pelas administradoras de plano de saúde aos contratos coletivos por adesão são ilegais, e por isso devem ser declarados indevidos, e eventuais cláusulas que prevejam essa ilegalidade devem ser declaradas “nulas de pleno direito”.
Consequência desse reconhecimento será a revisão dos valores das mensalidades, caso os reajustes já tenham sido aplicados sem a observância dos percentuais fixados pela ANS bem como, por se tratar de cláusula contratual “nula de pleno direito”, o efeito desse reconhecimento deverá retroagir, para restituir ao consumidor, as diferenças das parcelas porventura pagas a maior.
4. REFERÊNCIAS
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato: os novos princípios contratuais. São Paulo: Saraiva, 2004.
ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. 5. ed. São Paulo:Saraiva, 2003.
CORRÊA FILHO, Luiz Araújo Torres. Planos de saúde e suas cláusulas abusivas.São Paulo: RCN editora e distribuidora, 2004.
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,2004.
NOTAS:
[1]CDC. Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
[2] CDC. Art. 3° - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
(...)
§ 2°- Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”.
[3] Dentre outros meios de comunicação que noticiaram o fato, veja matéria veiculada no Programa Fantástico da Rede Globo: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/06/falta-de-regulamentacao-clara-permite-reajustes-abusivos-de-planos-coletivos.html
Procurador Federal, pós-graduado pela Escola Superior da Magistratura de Pernambuco - ESMAPE e especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília - UnB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMIDES, Geandré. Contratos de planos de saúde coletivos por adesão. Fórmula e limitações dos reajustes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 set 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40903/contratos-de-planos-de-saude-coletivos-por-adesao-formula-e-limitacoes-dos-reajustes. Acesso em: 23 dez 2024.
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