Resumo: No presente estudo pretende-se abordar, de forma breve, a natureza jurídica do instituto Reclamação, mais precisamente se tal instituto possui natureza jurisdicional ou se decorre do direito de petição, a partir do entendimento do STF.
Palavras-chave: Reclamação. Supremo Tribunal Federal. Direito de Petição. Natureza jurisdicional.
Considerações iniciais: atividade jurisdicional e direito de petição
Antes de se enfrentar diretamente a indagação proposta, faz-se necessário tecer algumas considerações a respeito da definição da atividade jurisdicional, bem como do direito de petição, analisando-se, ainda, o entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 2212, para, após, verificarmos se há diferença entre a Reclamação proposta no STF e aquelas propostas no âmbito de outros Tribunais.
Como se sabe, a atividade jurisdicional é definida como a função ou atividade estatal de (i) resolver conflitos de interesses entre partes privadas ou entre essas e o poder público ou (ii) remover obstáculos legais, impostos ao agir das partes e que somente pelo Estado possam ser removidos. Embora não possamos negar a existência de jurisdição desde o Estado Romano, a forma como a compreendemos hoje depende do desenvolvimento da teoria da separação dos Poderes, o que ocorreu a partir do Estado Moderno. Somente a partir de uma mínima separação entre as atividades legislativa, executiva (administrativa) e judiciária poder-se-ia conceituar a jurisdição da forma como a entendemos na atualidade. Enquanto a atividade legislativa está voltada à elaboração de normas que são caracterizadas pela abstração e generalidade, a atividade jurisdicional busca a aplicação da lei ao caso concreto, e mesmo que se admita uma natureza criativa à atividade jurisdicional, verifica-se que a sua norma possui natureza específica, regulando a relação jurídica posta a seu exame e não irradiando efeitos para além das pessoas que participam do processo judicial.
Por sua vez, a atividade jurisdicional não se confunde com a atividade administrativa. Nesse ponto, cabe destacar a doutrina de Chiovenda, no sentido de que enquanto a administração age de acordo como a lei, o julgador age atuando a lei. Assim, segundo Chiovenda a atividade jurisdicional seria uma atividade secundária e a atividade administrativa primária. Ainda, sustenta o mestre italiano, que a atividade jurisdicional corresponderia à substituição de uma atividade pública a uma atividade alheia, com o escopo de impelir o obrigado a agir em favor do credor ou substituir o seu agir, conforme expressa o texto base. Além disso, a atividade jurisdicional é qualificada pela observância dos princípios da demanda e do contraditório, o que também a distingue da atividade administrativa. Outrossim, traço distintivo fundamental da atividade jurisdicional das atividades perpetradas pelos demais órgãos estatais é a condição de imparcialidade do julgador, que deve manter-se eqüidistante do objeto do processo, o que não se verifica na atividade administrativa.
O Direito de Petição, tal como insculpido na Constituição da República, em seu artigo 5º, inciso XXXIV, decorre da adoção do Estado Democrático de Direito e visa garantir aos cidadãos, frente ao Poderes Públicos, a defesa de direitos, bem como o ataque a ilegalidades e abusos de poder. Note-se, portanto, que, para que seja atingida a finalidade expressa em nossa Carta Magna, o exercício do direito de petição não deveria exigir o preenchimento de demasiados requisitos formais, a fim de que não se estabelecesse restrição a tal exercício. Cabe destacar que o direito de petição pode ser exercido tanto no âmbito administrativo, quanto no judicial, sendo que a decisão proferida em decorrência do direito de petição não produz coisa julgada. Por outro lado, de acordo com o que preceitua a Constituição da República, o exercício do direito de petição prescinde do pagamento de taxas, bem como não se deve exigir capacidade postulatória ao seu manejo.
Feitas essas breves considerações a respeito da atividade jurisdicional e do direito de petição, cabe analisar a natureza jurídica do instituto da Reclamação. Em primeiro lugar, cabe destacar que a Reclamação encontra previsão constitucional no artigo 102, I, ‘l’, da CRFB/88, onde expressa que cabe ao STF processar e julgar, originariamente, a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões. Em seu artigo 105, I, ‘f’, a CRFB/88 preceitua que cabe ao STF processar e julgar, originariamente, a reclamação para preservação de sua competência e garantia de autoridade de suas decisões.
Em sede de controle concentrado de constitucionalidade, o STF, no julgamento da ADI 2212-1/CE expressou que a Reclamação não possuiria natureza jurisdicional, uma vez que o seu exercício decorreria do direito constitucional de petição expresso no artigo 5º, XXXIV, “a”, da CRFB/88. Assim, segundo o voto condutor proferido na ADI 2212-1, embasado nas lições de Ada Pelegrini Grinover, a Reclamação não tem natureza jurídica de recurso, ação, nem incidente processual. Em decorrência de tal entendimento, é possível, segundo a referida decisão, a adoção pelos Estados-membros do instituto de reclamação, permitindo-se a sua regulamentação por meio dos regimentos internos dos Tribunais locais, sem que isso implique em invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito processual (artigo 22, I, da CRFB/88). Outrossim, fundamenta a referida decisão que tal possibilidade está amparada no princípio da simetria.
No entanto, analisando-se os requisitos necessários ao ingresso de Reclamação perante os Tribunais, bem como as suas conseqüências, pode-se verificar que tal instituto não representa, na verdade, manifestação do direito de petição, uma vez que possui natureza jurisdicional, correspondendo a uma ação. Cabe referir que os efeitos da Reclamação correspondem a cassar uma decisão judicial, ou provocar que sejam avocados os autos de uma demanda, fim de preservar a competência de tribunal. Desse modo, tem-se que tais efeitos são típicos de medidas jurisdicionais, não se podendo admitir que medidas administrativas tenham o condão de assumir tais efeitos (cassação de decisão ou avocação de autos).
Além disso, para o manejo da reclamação, faz-se necessária a provocação de uma das partes ou do Ministério Público, não podendo ser realizada de ofício, o que constitui característica jurisdicional, já que atos administrativos podem ser praticados de ofício. Ademais, consoante já referido, a Reclamação exige capacidade postulatória, de sua decisão cabe a interposição de recursos, bem como produz coisa julgada. Tais elementos não são encontrados em procedimentos administrativos, o que evidencia a natureza jurisdicional da Reclamação.
Com efeito, a Reclamação possui natureza de ação, de acordo com a lição dos Professores Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha, uma vez que esse instituto possui os elementos de uma ação, quais sejam: partes, causa de pedir e pedido, considerando-se que “há o reclamante e o reclamado, contendo formulação de um pedido e a demonstração de uma causa de pedir, consistente na invasão de competência ou na desobediência à decisão da corte”. (DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da Cunha. Curso de Processo Civil. Meios de impugnação às decisões judiciais. 7ª ed. Salvador: Ed. JusPODIVM, 2009, p. 464). Segundo os referidos autores, a Reclamação não constitui recurso, visto que não prevista em lei como tal (princípio da taxatividade), além do que não há prazo para interposição de Reclamação, que também independe da existência de sucumbência, gravame ou prejuízo ao recorrente para o seu manejo, sendo essas características típicas de medidas recursais.
Por outro lado, a Reclamação não corresponde a um incidente processual, na medida em que não necessita da preexistência de um processo judicial, sendo possível haver reclamação em face de um procedimento administrativo (ex. inquérito policial), bem como a reclamação não altera o curso do procedimento.
Além do STF e do STJ, verificamos que os Regimentos Internos do Tribunal Superior do Trabalho e do Tribunal Superior Eleitoral prevêem a Reclamação, sendo que o Regimento Interno do Superior Tribunal Militar, assim como o Código de Processo Penal autorizam a Reclamação. Em decorrência da decisão do STF na ADI 2212-1, admite-se a Reclamação no âmbito dos Tribunais Estaduais, no entanto, de acordo com o STF, não se admite Reclamação perante os Tribunais Regionais Federais. Nesse ponto, encontramos mais uma contradição no entendimento do STF, uma vez que, se a Reclamação decorre do direito de petição não se poderia impedir o seu intento no âmbito dos Tribunais Regionais Federais. Noutro giro, observa-se que no julgamento do RE 405.031, o STF entendeu ser inconstitucional a Reclamação prevista no Regimento Interno do TST, por ausência de previsão constitucional e legal, o que também contraria o entendimento do próprio STF, no sentido de que a Reclamação decorre do direito de petição. Cabe referir que por se tratar de demanda típica, visto que somente pode ser utilizada em hipóteses previamente determinadas, quais sejam para a preservação da competência e para garantia da autoridade da decisão do Tribunal. Sendo assim, constata-se que a reclamação proposta no âmbito do STF não se diferencia da reclamação proposta no âmbito de outros Tribunais, no que se refere às suas finalidades.
Conclusão
Por todo o exposto, tem-se que está equivocado o entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a Reclamação não possui natureza jurisdicional, decorrendo do direito de petição. Isso porque, tal entendimento contraria os requisitos necessários à propositura de tal instituto (capacidade postulatória, necessidade de provocação, entre outros), bem como os efeitos decorrentes da Reclamação (de sua decisão faz-se coisa julgada, há possibilidade de interposição de recursos de face de decisão proferida em sede de reclamação). Ademais, a decisão proferida no âmbito de ADI 2212-1 contraria até mesmo outros precedentes do STF, que exigem requisitos próprios de instrumentos jurisdicionais para o intento da Reclamação, bem como a necessidade de haver previsão legal e regulamentação de tal instituto.
Referências Bibliográficas:
CHIOVENDA. Instituições. Campinas: Bookseller, 1998. v. 2.
DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da Cunha. Curso de Processo Civil. Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 7ª ed. Salvador: Editora JusPODIVM, 2009.
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da; GOMES, Fábio. Teoria Geral do Processo Civil. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
STF. Tribunal Pleno. ADI 2212-2/CE. Relatora: Ministra Ellen Gracie.
Bacharel em Direito pelo UNIRITTER/RS. Procurador Federal. Especialista em Direito Público pela UnB/CEAD.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DALMAS, Samir Bahlis. A natureza jurisdicional da Reclamação e o entendimento do STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 set 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41015/a-natureza-jurisdicional-da-reclamacao-e-o-entendimento-do-stf. Acesso em: 23 dez 2024.
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