É escopo do presente trabalho analisar os institutos da seletividade e da extrafiscalidade à luz do Direito Tributário e, ao final, esclarecer a razão de ser a seletividade uma forma de realização da extrafiscalidade.
A tributação representa a faceta da atividade estatal dirigida, primordialmente à arrecadação de valores necessários à realização dos fins estatais. A esta finalidade primordial se dá o nome de função fiscal da tributação.
Paralelamente à função fiscal acima descrita, a tributação pode, ademais, prestar-se a outras finalidades, igualmente caras ao Estado, como incentivar ou desestimular o consumo de determinados bens, regular a balança comercial, promover a proteção do meio-ambiente ou favorecer a reforma agrária. A evidenciar tal vocação, a doutrina alemã denomina de tributos intervencionistas aqueles que se prestam à extrafiscalidade.
A extrafiscalidade é traço característico dos impostos reguladores de mercado (SABBAG, 2006, p. 21), mas entre nós pode ser verificada, ainda, em impostos sobre a propriedade, a exemplo do IPVA, cujas alíquotas variam de acordo com o tipo e uso do veículo e do IPTU e do ITR, que serão progressivos se for desatendida a função social da propriedade.
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
(...)
VI - propriedade territorial rural;
(...)
§ 4º O imposto previsto no inciso VI do caput:(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
I - será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
II - não incidirá sobre pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando as explore o proprietário que não possua outro imóvel; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
(...)
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
(...)
III - propriedade de veículos automotores. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
(...)
§ 6º O imposto previsto no inciso III: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
I - terá alíquotas mínimas fixadas pelo Senado Federal; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
II - poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo e utilização.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I - propriedade predial e territorial urbana;
(...)
§ 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá:(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
I - ser progressivo em razão do valor do imóvel; e (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
II - ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
Conforme lição de Roque Antonio Carraza:
Os tributos, de um modo geral, são utilizados como instrumento de fiscalidade, servindo basicamente, pois, para carrear dinheiro aos cofres públicos.
O IPI e o ICMS, pelo contrário, devem necessariamente ser instrumentos de extrafiscalidade, a teor dos já citados arts. 153, § 3o, I e 155, § 2o, III, da CF. Salientamos que estas normas constitucionais, mandando que tais impostos sejam seletivos, não estão dando uma mera faculdade ao legislador, mas, pelo contrário, estão lhe impondo um inarredável dever, de cujo cumprimento ele não pode se furtar.
(...)
Portanto, a seletividade, no IPI e no ICMS, é obrigatória. Ou, seguindo a trilha constitucional, estes tributos devem ser seletivos, em função da essencialidade do produto industrializado (IPI) ou das mercadorias ou serviços (ICMS).
Estamos confirmando, destarte, que o IPI e o ICMS devem ser utilizados como instrumentos de ordenação político-econômica, estimulando a prática de operações (com produtos industrializados ou mercadorias) ou serviços havidos por necessários, úteis ou convenientes à sociedade e, em contranota, onerando outros que não atendam tão de perto o interesse coletivo. (CARRAZA, 2004, P. 89/90)
Conforme adiantado, pois, por CARRAZA, a extrafiscalidade do IPI e do ICMS destina-se a ordenar a política econômica, incentivando ou desestimulando o consumo de determinadas mercadorias ou serviços.
Neste diapasão, há que se salientar que não fica ao alvedrio do Estado escolher, ao seu bel prazer, quais produtos ou serviços devam ser incentivados, pois o Constituinte prescreveu que a seletividade do IPI e do ICMS deverá observar a essencialidade do produto. Portanto, o critério que permite validamente discriminar a tributação entre a miríade de produtos e serviços é clara: a essencialidade.
No caso do IPI, a extrafiscalidade se revela no caráter seletivo do imposto, que incide com alíquotas mais elevadas sobre bens considerados supérfluos e com alíquotas menores sobre bens essenciais para o consumidor final. A essencialidade, pois, é voltada às necessidades do consumidor final (CALMON, 2002, p. 322).
“As alíquotas do IPI são obrigatoriamente baixas ou altas (selecionadas) em função da essencialidade dos produtos. Somos contrários ao princípio da seletividade nos impostos indiretos sobre o consumo, exceto no caso do sale tax americano (imposto sobre vendas a consumidor final); no IPI (seletividade obrigatória) e no ICMS (seletividade facultativa), a seletividade não é de sua essência. A seletividade vem do princípio da justiça. Estes impostos recaem sobre o consumo. A capacidade contributiva visada é a do consumidor final, mas porque deve ser antecipada, atrai a técnica, no caso do ICMS e do IPI, da não-cumulatividade, a permitir o repasse do ônus para a frente, mas apenas sobre o valor adicionado pelos agentes econômicos durante o processo de produção, circulação e consumo dos bens. No final, o consumidor final arca com a tributação toda. Quem consumir mais pagará mais. No entanto, entre nós, a uniformidade das alíquotas, outra característica dos impostos indiretos, plurifásicos, sobre o consumo, resta comprometida não apenas sobre os produtos acabados – o que seria até aceitável, eis que dados ao consumidor final -, mas também sobre inúmeros insumos, o que faz desandar a sua neutralidade, a prejudicar as cadeias produtivas. Aliás, o IPI não era nem para existir; bastaria o ICMS de base ampla, neutro, uniforme, sem exonerações (englobando também o ISS municipal), como são os IVAs europeus, que correspondem aos nossos ICMS, IPI, ISS.
Ocorre que o IPI deve ser obrigatoriamente seletivo em função da essencialidade do produto, porque assim o determina a Constituição. Esta essencialidade está voltada às necessidades do consumidor final (remédios com pouco IPI e porte de escargot com muito IPI). Na maior parte das vezes, está voltada mesmo às necessidades da produção industrial e às políticas de extrafiscalidade. É o IPI um agente de intervenção na economia e na livre concorrência, além de constituir barreira alfandegária, função reservada aos impostos aduaneiros. Trata-se de um imposto arcaico, que provavelmente se transformará um dia em ICMS interestadual, neste caso com vantagem para a sociedade, pois o ICMS estadual incidirá apenas sobre as operações internas de cada estado. (COÊLHO, 2010, p. 288/289).
Luciano Amaro compartilha este entendimento no sentido de que deverá observar a essencialidade da mercadoria ou serviço tributado, sendo que a seletividade é mandatória para o IPI e facultativa para o ICMS:
“Traço característico do IPI é a seletividade em função da essencialidade do produto (art. 153, § 3o, I), o que dirige as maiores atenções desse imposto para bens suntuosos ou supérfluos, e tende a afastá-lo ou atenuá-lo no caso de produtos essenciais.
O item IV do § 3o do art. 153 (acrescido pela EC n. 42/2003) quer que a lei ‘reduza o impacto’ do IPI sobre a aquisição de bens de capital elo contribuinte do imposto.
A seletividade, obrigatória para o IPI, é permitida em relação ao ICMS (art. 155, § 2o, III). (AMARO, Luciano, Direito Tributário Brasileiro. 13a ed. Sao Paulo, Saraiva, 2007, p. 148, Capitulo ˜Limitacoes ao poder de tributar).
Com efeito, os termos em que vazados os artigos 153, § 3o, I e 155, § 2o, III, da Constituição da República autorizam o entendimento de que, para o ICMS, a seletividade seria facultativa. Abrindo divergência, todavia, CARRAZA entende ser mandatória tanto para o IPI como para o ICMS, tendo em vista que o vocábulo “poderá” exprimiria um poder-dever, pois do contrário poder-se-ia facilmente, pela via da omissão esvaziar a programação constitucional.
Entendemos que a opção constitucional pelo uso ora do verbo será, ora do verbo poderá não possa carecer de significado, tendo sido, de fato, concedida uma faculdade aos Estados adotar a seletividade para o ICMS. Porém, uma vez feita a opção pela seletividade (e todos os Estados adotam a seletividade de alíquotas para o ICMS), o critério deverá ser necessariamente a essencialidade do produto.
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
IV - produtos industrializados;
§ 3º - O imposto previsto no inciso IV:
I - será seletivo, em função da essencialidade do produto;
(...)
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;
III - poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços; (Grifos nossos)
Assim também o ensinamento preciso de Sacha Calmon Navarro Coêlho:
“A seletividade no ICMS é facultativa. No IPI é obrigatória. No ICMS a seletividade não poderá ser muito ampla. Espera-se que duas alíquotas sejam suficientes. Uma para as mercadorias supérfluas e suntuárias, outra para o grosso das mercadorias de grande consumo popular, como se costuma dizer. Todavia, o conceito de mercadoria supérflua não fica ao alvedrio exclusivo do legislador. Adotada que seja a seletividade, e tem o contribuinte o direito de provocar o Judiciário para que declare à luz de critérios técnicos e dos aspectos sociais da Nação, se esta ou aquela mercadoria é supérflua. Assim, o automóvel, em si, não é bem supérfluo, embora um carro Mercedes possa sê-lo. Do mesmo modo, feijão é gênero de primeira necessidade, e caviar é supérfluo. O ICMS é diferente do IPI. Neste a seletividade está intimamente ligada ao processo industrial. No ICMS a seletividade olha para a população em primeiro lugar. Além do que, miríades de alíquotas no processo de circulação criariam problemas muito sérios na formação dos custos e dos preços em território nacional, podendo penalizar uns setores em detrimento de outros, ou mesmo regiões do país, contra o espírito federativo. É precisamente o que está a ocorrer. São dezendas de ‘alíquotas reais’ que as nominais não contam. Verdadeira Babel.” (COÊLHO, 2010, p. 322/323).
A seletividade é uma técnica de incidência de alíquotas cuja variação ocorre em função da essencialidade do produto (SABBAG, 2006, p. 410) e representa uma forma de realização da extrafiscalidade. Com efeito, por meio da seletividade o Estado intervém na economia, privilegiando o consumo de determinados bens (considerados essenciais para o consumidor final, como comida e remédios) e inibindo o consumo de bens reputados supérfluos (como perfumes) ou mesmo maléficos, como os cigarros.
Entre nós, a seletividade alcançou status constitucional em 1969, a partir da qual se transcreveu para o artigo 48 do Código Tributário Nacional. Anteriormente, estava expressa na legislação ordinária (BALEEIRO, 2003, p. 347/348). No que tange ao IPI, a Constituição de 1988, diversamente, não traz a seletividade como norma programática, mas como providência a ser obrigatoriamente adotada pelo legislador. Já relativamente ao ICMS, a seletividade permanece uma faculdade para o legislador e repercutirá conforme a essencialidade da mercadoria ou serviço.
Ao atualizar e comentar a obra de Aliomar Baleeiro, Misabel Derzi explica que a extrafiscalidade do IPI e do ICMS se exprime na forma da seletividade. Diante da impossibilidade de se aferir a capacidade contributiva de cada consumidor final e assim realizar a justiça tributária, a constituição lançou mão da seletividade a fim de que os gêneros e serviços de primeira necessidade fossem tributados mais levemente, o que resultaria no menor preço da mercadoria para o consumidor final. Dessa forma, o consumidor de menor capacidade contributiva, cujo consumo se resume a bens essenciais, suporta uma carga tributária menor do que o contribuinte de maior poder econômico, que ao optar por consumir um produto não essencial pagará mais tributos sobre seu consumo. (BALEEIRO, 2003, p. 349). Citando Moschetti, prossegue a professora afirmando a necessidade de a seletividade isentar de tributos os gêneros de primeira necessidade, pois “... quando se adquire um bem ou serviço essencial, o adquirente não só concorre mas fica, materialmente, constrangido a concorrer para a despesa pública. É, pois, coerente admitir que se realize sempre a previsão constitucional, toda vez que o tributo tenha por objetivo bens ou serviços de primeira necessidade.” (1973)
Conforme anota PAULSEN (2007, p. 308), Alberto Xavier, abrindo divergência dessa posição, ensina que o grau de essencialidade do produto não se relaciona com o preço do bem, mas dependerá de outros critérios adotados pelo legislador, como humanitários, éticos ou sanitários. A guisa de exemplo, cita um medicamento de elevado valor, que poderá ser tributado com alíquota zero, e a barata aguardente, que atrai alíquota elevada. No seu entender, pois, a gradação do IPI obedece a uma lógica distinta da capacidade contributiva do consumidor final, qual seja, a só essencialidade do bem, assim eleita pelo legislador.
Nos tributos fiscais, o parâmetro para a discriminação da carga tributária é a capacidade contributiva. Porém, no manejo dos tributos extrafiscais o legislador é dotado de maior liberdade, para estabelecer critérios diferenciadores, o que pode resultar na violação à isonomia, à livre escolha de uma profissão, ou mesmo à propriedade. Portanto, ressalta Marciano Seabra de Godoi que sem embargo se trate de um fenômeno verificado em diversos países, é urgente a necessidade de se delimitar os limites constitucionais da extrafiscalidade, sobretudo naqueles em que a constituição admite – ou mesmo exige – que os tributos sejam instrumento de cumprimento de finalidades políticas, econômicas e sociais. (GODOI, 2004, p. 220). Esclarece o suprarreferido autor que limites à atuação extrafiscal do Estado, são traçados sobretudo pelos direitos fundamentais, dentre os quais se destacam o princípio da igualdade e o direito de propriedade.
A partir dessas reflexões, entendemos que a seletividade permite que o Estado influencie o comportamento de consumo dos cidadãos, sendo, pois, uma forma de extrafiscalidade. A seletividade é uma técnica necessária para se alcançar uma tributação mais justa e afinada, o quanto possível, com o respeito à capacidade contributiva, mas também tendo em vista outros valores, como critérios éticos, sanitários e de política econômica. Sem embargo de se tratar de uma técnica lícita, é preciso que a sociedade se ponha atenta a possíveis violações a direitos fundamentais de maior envergadura que o objetivo que o Estado visa a alcançar pela extrafiscalidade. As violações a direitos fundamentais pelo direito tributário são veladas e comumente disfarçadas sob a alegação de se estar realizando um bem comum por meio da exação, o que ressalta a necessidade de maior clareza nos limites da extrafiscalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
CARRAZA. Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro, Curso de Direito Tributário Brasileiro 11a ed. Rio de Janeiro: Forense 2010.
DE GODOI, Marciano Seabra. Extrafiscalidad y sus limites constitucionales. Revista Internacional de Direito Tributário, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 219-262, jan./jun. 2004
SABBAG, Eduardo de Moraes. Elementos do Direito Tributário. 8ª ed. São Paulo: Premier Máxima, 2006.
PAULSEN, Leandro. Direito Tributário. Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 9ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-Graduada em Direito pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOLLERO, Barbara Tuyama. A seletividade tributária como forma de extrafiscalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 set 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41077/a-seletividade-tributaria-como-forma-de-extrafiscalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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